Opinião

Sobre o acordo entre mineradoras e governos no caso de Mariana (MG)

Autores

  • Onofre Alves Batista Júnior

    é pos-doutorando em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal) doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal) professor associado do Quadro Permanente da Graduação Mestrado e Doutorado da UFMG e sócio-conselheiro do Coimbra Chaves & Batista Advogados.

  • Tarcísio Diniz Magalhães

    é professor de Direito e Política Tributária e pesquisador pós-doutor na Faculdade de Direito da Universidade McGill.

27 de março de 2016, 7h13

Desde a veiculação de nossa coluna anterior, indicando a imperiosa necessidade de composição de uma solução global/holística para o desastre ambiental de Mariana (MG)[1], os governos da União e dos estados mineiro e capixaba, assessorados, respectivamente, pela AGU, pela AGE-MG e pela PGE-ES, têm atuado, com o maior afinco e dedicação, no bom propósito de garantir a integralidade da reparação dos danos causados pela Samarco (e suas corresponsáveis Vale e BHP Billiton), compreendido o desastre em sua dimensionalidade tanto socioambiental quanto socioeconômica.

Nesse meio tempo, a ação civil pública que havia sido proposta pelos três entes no Distrito Federal foi deslocada, por prevenção, da capital do país para o foro da capital de Minas Gerais. Recebida a ação em Belo Horizonte, houve imediato provimento liminar, com determinação à Samarco de: depósito inicial de R$ 2 bilhões e bloqueio dos bens de suas controladoras; elaboração de planos de ação e estudos técnicos; adoção de medidas; indisponibilização das licenças e concessões para exploração de lavras; suspensão da possibilidade de distribuição de dividendos, juros de capital próprio, bonificações de ações ou qualquer outra forma de remuneração dos sócios; tudo sob pena de multas diárias de R$ 150 mil ou, até mesmo, de R$ 1,5 milhão.

Paralelamente, as três empresas envolvidas na catástrofe já vinham se mostrando predispostas a manter um canal de diálogo aberto para tratativas junto ao poder público, na busca por um acordo amplo e eficaz para pôr fim aos litígios e amparar, o mais rápido possível, os vários atingidos. Nesse compasso, foram feitas, no decorrer dos últimos meses, inúmeras (e longas) reuniões e rodadas de debate, com a presença dos representantes das corporações, de políticos (Presidência da República, ministros, governadores de estado, prefeitos) e técnicos governamentais (Ibama, ANA, Ministério e secretarias de Estado do Meio Ambiente), de advogados públicos e membros do Ministério Público federal e estadual, bem como de integrantes da sociedade civil, incluindo, é claro, os diretamente afetados.

Desde o início, o objetivo foi buscar uma solução inovadora, que fugisse da vala comum, preservando empregos e priorizando as vítimas, sem redundar, como não raras vezes ocorre, em simples fracasso e maior sofrimento para a sociedade. Pois bem se sabe, pela experiência brasileira dos últimos anos, que os mecanismos tradicionais de bloqueio de recursos de empresas, criando-se uma montanha de dinheiro a ser administrada por agentes públicos, nunca funcionaram de verdade. O resultado sempre foi impunidade, desemprego, inação, enfim, ineficiência total, a deixar o povo sem qualquer amparo por longos períodos. Morosas batalhas judiciais são claramente ineficazes, tendendo a levar à produção de efeitos pífios e tardios (depois de décadas).

À guisa de ilustração, vale novamente recorrer à experiência norte-americana no tratamento do trágico incidente no Golfo do México, em que houve preocupação constante de se chegar a um Consent Decree entre os governos federal e dos estados do Alabama, Florida, Louisiana, Mississippi e Texas, e as rés BPXP e BP Entities, encerrando uma infinidade de ações propostas pelo poder público e por particulares. Depois de redigido o acordo, no valor histórico de US$ 20,8 bilhões, foi franqueada oportunidade de participação popular, para os fins de cumprir as exigências do Oil Pollution Act, de 1990 (33 U.S. Code Chapter 40), com abertura para comentários e sugestões às minutas dos planos arquitetados, pelo prazo de 60 dias (findo em 4 de dezembro do ano passado)[2].

Com o mesmo espírito, porém de forma ainda mais célere e transparente do que ocorrido nos Estados Unidos, os governos brasileiros redigiram, após consultas junto às comunidades e aos movimentos sociais[3], e contando com o indispensável apoio da força-tarefa mineira comandada pelo secretário Tadeu Leite, uma extensa minuta de Termo de Transação e Ajustamento de Conduta, que está prestes a ser submetida à homologação judicial. O texto, que prevê diversos eixos temáticos, programas sociais no campo econômico e ambiental e medidas compensatórias, certificando-se de incluir a população nos processos decisórios, está pautado em normas-princípios e diretrizes que deverão nortear toda a execução programática, a qual é deixada a cargo de uma fundação privada, cujo patrimônio será formado por aportes financeiros das empresas responsabilizadas[4]. O programa de recuperação se faz acompanhar, ainda, de um arrojado sistema de governança, estrutura e gerenciamento, para melhor apropriação, pela população, dos objetivos ali alvitrados[5].

Recapitulando: quanto mais rápido a empresa voltar a produzir, mais fácil será obter os recursos necessários à recuperação integral; quebrada, restaria apenas uma imprestável massa falida. No mais, evitando-se que o dinheiro destinado aos atingidos transite por fundos ou cofres públicos, ficam por conta dos agentes privados, e não da coletividade, todos os gastos com a recuperação. Para além da ineficiência, responsabilizar o Estado ou deixar que agentes públicos se ocupem das complexas tarefas de recuperação social-econômica-ambiental (contratação de dragagem de rio, promoção do replantio, reconstrução de casas por meio de lentas licitações, e assim por diante) equivaleria a socializar parcela considerável dos custos desencadeados a partir do incidente, aliviando assim os encargos que deveriam recair exclusivamente sobre os verdadeiros responsáveis: as sociedades empresárias, que sempre lucraram com a exploração dos valiosos recursos minerais pertencentes ao povo.

Aliás, sobre o funding, é preciso esclarecer que o montante acordado para as indenizações e reparações não tem limite máximo, podendo ultrapassar a cifra dos R$ 26 bilhões. Não poderia ser mesmo diferente, já que a recuperação dos danos causados deve ser integral[6]. A minuta do termo contém cláusulas expressas (subseção I.5), com redação cristalina sobre a composição do patrimônio da fundação mediante aportes anuais a serem feitos pela empresa Samarco (ou, subsidiariamente, pela Vale e BHP), os quais variarão de acordo com as exigência dos projetos e medidas a serem executados. Dispõe o parágrafo 2º da cláusula 203 da minuta do acordo que “a revisão das medidas reparatórias não se submete a qualquer teto, as quais deverão ser estabelecidas no montante necessário à plena reparação dos impactos socioambientais e socioeconômicos descritos, conforme os PRINCÍPIOS e demais cláusulas deste Acordo”[7].

O que acontece, no entanto, é que algumas balizas foram pré-fixadas, mas única e exclusivamente para os primeiros exercícios e no que diz respeito à compensação, tendo em vista a impossibilidade prática de aporte e aplicação de volume maior de recursos[8]. É dizer: foram definidos limites apenas em relação ao fluxo de caixa e às medidas compensatórias, sem prejuízo da necessidade de reparação, em sua integralidade, dos danos causados, para os quais não há falar em qualquer limitação prévia[9].

Em síntese, é possível prever que o processo de restauração das regiões atingidas ocorrerá de forma muito mais rápida do que se fosse necessário esperar a prolação de sentenças, após longa instrução probatória. O plano global evita, por certo, o risco de decisões conflitantes e capazes de dispersar recursos, impondo prazos para constituição do fundo, início do funcionamento das operações, elaboração e execução dos programas, tudo sujeito à aplicação de elevadas multas.

Em que pesem todos os esforços encetados, com grandes avanços na modelagem de um acordo amplo e razoável, críticas recentes têm colocado em dúvida a possibilidade de se chegar, efetivamente, a uma resolução satisfatória, em tempo hábil e que atenda a todos.  Entretanto, de pé no chão, a situação exige que se leve em conta a viabilidade financeira do fluxo de caixa das empresas e a urgência no atendimento à população afetada, sem que isso implique em concessões indevidas. Não custa lembrar que os valores previstos não se sujeitam a nenhum teto, no que tange às reparações e indenizações.

Certo é que nada do que se pensou será passível de concretização enquanto se insistir em questionamentos vagos e imprecisos. A viabilidade do intricado programa de monitoramento, estruturação de projetos e acompanhamento do plano de restauração ambiental do Rio Doce, que pretende garantir transparência na aplicação dos recursos, privilegiando a interlocução institucional e social com os entes e a população envolvida, depende, em última análise, de uma atuação colaborativa e coordenada entre os diversos atores estatais, de ambas as esferas estadual e federal (MP, advocacia pública, órgãos governamentais, prefeituras, sociedade civil organizada). Sem cooperação e um diálogo construtivo entre os poderes democráticos, o resultado seguramente será a prorrogação, por tempo indeterminado, da reparação dos danos, em prejuízo da população carente, que não pode esperar.

Ninguém suporta mais ter de aguardar por longos anos para ver algum resultado concreto, sobretudo quando há indivíduos em situações precárias. A proteção dada pelo acordo, que é ampla e sensata, merece ser abraçada o quanto antes, sob pena de nunca se tornar realidade.


[1] http://www.conjur.com.br/2015-dez-08/pulverizacao-acoes-samarco-requer-reuniao-juizo-unico.
[2] http://www.justice.gov/opa/pr/us-and-five-gulf-states-reach-historic-settlement-bp-resolve-civil-lawsuit-over-deepwater; http://www.justice.gov/enrd/deepwater-horizon.
[3] http://www.agenciaminas.mg.gov.br/noticia/comunidades-atingidas-pela-barragem-da-samarco-debatem-acordo-coletivo-com-uniao-e-estados
[4] Como primeira ideia, foi considerada a possibilidade de se atribuir à Samarco a obrigação de colocar em prática os programas reparatórios. Ocorre que a empresa é especializada em mineração, não estando apta a fazer o árduo e específico trabalho de recuperação do meio ambiente e dos danos produzidos nas esferas social e econômica. Daí, surgiu a alternativa inovadora que veio a ser prestigiada no acordo: criar uma pessoa jurídica privada especializada, que seria financiada inteiramente pela Samarco, Vale e BHP (incluindo os custos administrativos), fiscalizada pelo Ministério Público e controlada por um Comitê Interfederativo (com representantes da União, dos dois estados e dos municípios), por um Conselho Consultivo (preenchido pelas vítimas, pela sociedade civil e por experts) e por uma auditoria externa independente. Partiu-se da premissa de que, muitas das vezes, o poder público se mostra muito bom no controle, mas ineficaz na execução de programas complexos. Assim, o intuito foi fazer uso dos eficientes mecanismos privados, sem necessidade de envolver licitações e procedimentos administrativos, funcionários estatais, dinheiro público, mas mantendo a completa transparência e a possibilidade de policiamento pela população, órgãos públicos e meios de comunicação.
[5] A participação de atores da sociedade civil é essencial à legitimação política das soluções aventadas. Não por outra razão, a inicial da ACP dispôs sobre o engajamento e a mobilização da população nas atividades do programa, com vistas a contribuir com o seu reposicionamento, diante da relação direta que mantêm com o meio ambiente e das interrelações sociais subjacentes (urbana, campo e estuário). Seguindo essa lógica democrática e participativa, o acordo só foi concluído depois que as vozes dos atingidos e demais interessados foram ouvidas. Mas a participação direta do povo não se encerrou por aí. Ao nível da estrutura de governança, tem-se que o Conselho de Administração não pode desacatar as opiniões do Conselho Consultivo, de composição popular. Qualquer discordância deverá ser fundamentada e, persistindo as dissidências, cabe ao Conselho Interfederativo (Estado) resolver o impasse. De qualquer forma, as decisões sempre poderão ser impugnadas judicialmente, já que a fase de execução judicial do acordo não será extinta, mantendo-se vivo o processo.
[6] Para se ter uma ideia, apesar de a área danificada corresponder a 2.000 hectares, serão reparados, a título de compensação, 40.000 hectares de mata (ou seja, 38.000 a mais); serão, também, destinadas verbas (R$ 500 milhões) para o financiamento de obras de saneamento e tratamento de esgotos e a recuperação de 5.000 nascentes. Mas tais medidas, em particular, têm natureza compensatória, pretendendo aprimorar a qualidade da água do rio, para torná-la melhor do que antes do desastre. Não visam indenizar ou restaurar, mas compensar perdas irreparáveis e o tempo que o rio ficou sujo. Já os gastos com a recuperação integral não têm previsão máxima, podendo ser superiores aos valores previsto no acordo.
[7] Por sua vez, o parágrafo primeiro do mesmo dispositivo prevê que “caso a FUNDAÇÃO, a AUDITORIA INDEPENDENTE ou o COMITÊ INTERFEDERATIVO, a qualquer tempo, verifiquem, com fundamentos em parâmetros técnicos, que os PROGRAMAS são insuficientes para reparar, mitigar ou compensar os impactos decorrentes do EVENTO, a FUNDAÇÃO deverá revisar e readequar os termos, metas e indicadores destes PROGRAMAS, bem como realocar recursos entre os PROGRAMAS, após aprovação pelo COMITÊ INTERFEDERATIVO”.
[8] Durante os anos de 2016-2018, foi determinado que seriam aportados R$ 2 bilhões, R$ 1,2 bilhão e mais R$ 1,2 bilhão. Já para os exercícios de 2019 a 2021, fixaram-se valores mínimo (R$ 800 milhões) e máximo (R$ 1,6 bilhão), entre os quais poderão variar os aportes anuais, a depender dos projetos. Em arremate, ficou acordado expressamente que, a partir de 2019, o valor seria em quantia suficiente e compatível com a execução dos planos (cláusula 231), havendo, ainda, disposição no sentido de que deverão ser depositados R$ 240 milhões ao ano, durante um período de 15 anos (cláusula 232), dentro dos respectivos orçamentos anuais, mais R4 500 milhões para coleta e tratamento de esgoto e destinação de resíduos sólidos (cláusula 169).
[9] Houve até mesmo a preocupação de segregar as despesas finalísticas da fundação das despesas de caráter administrativo, com aportes financeiros em separado, por parte das empresas responsáveis (cláusulas 238 a 240).

Autores

  • é advogado-geral de Minas Gerais, mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa e doutor em Direito pela UFMG, pós-doutorado em Direito (Democracia e Direitos Humanos) pela Universidade de Coimbra e professor de Direito Público da Universidade Federal de Minas Gerais.

  • é assistente do advogado-geral de Minas Gerais. Mestre em Direito e Justiça pela UFMG e doutorando em Direito e Justiça pela mesma universidade.

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