Observatório Constitucional

Repercussão Geral retoma seu curso com o novo Código de Processo Civil

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26 de março de 2016, 8h00

O instituto da repercussão geral, introduzido em nosso sistema pela Reforma do Judiciário, consiste em requisito especial para a admissão do Recurso Extraordinário: “o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros”.

A Emenda Constitucional 45, ao introduzir o parágrafo 3º ao artigo 102, objetivou diminuir a demanda por recursos por meio de um “filtro qualitativo”.[1] A ideia era, com o novo requisito de admissibilidade, permitir ao Supremo Tribunal Federal analisar apenas as questões relevantes para a ordem constitucional, cuja solução extrapola o interesse subjetivo das partes, e fazê-lo uma única vez, sendo dispensado de se pronunciar nos processos de matéria idêntica.

A exigência de se demonstrar a repercussão geral da matéria constitucional para o conhecimento do Recurso Extraordinário reforça a natureza objetiva do mesmo. Buscou-se, assim, o fortalecimento do papel da corte como guarda da Constituição e não como corte recursal.

A inovação não foi de todo inédita, o ordenamento constitucional brasileiro já havia previsto instrumento semelhante. A Emenda Constitucional 7/1977, também chamada Reforma do Poder Judiciário, introduziu na Constituição de 1967 a “arguição de relevância da questão federal” (artigo 119, parágrafos 1º e 3º).

Na verdade, a repercussão geral configura como que uma arguição de relevância ao avesso, na medida em que a maioria que se busca é para impedir o prosseguimento do recurso extraordinário. [2] Conforme destacado por Luís Roberto Barroso, ao exigir-se o voto de dois terços de seus membros para que a repercussão geral seja afastada, a norma dá legitimidade à decisão e evita que questões relevantes sejam preteridas por maiorias apertadas.[3].

Regulamentado pela Lei  11.418 de 2006, que acrescentou os artigos 543-A e 543-B ao Código de Processo Civil, e pela Emenda 21 ao Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, o instituto da Repercussão Geral vem sendo aplicado desde 3 de maio de 2007. Até março deste ano, foram analisados 887 temas de repercussão geral, reconhecida repercussão geral a aproximadamente 600 recursos extraordinários e julgado o mérito de 275 desses recursos. Ou seja, em quase 10 anos, pouco menos da metade das repercussões gerais reconhecidas já tiveram seu julgamento encerrado no Supremo Tribunal Federal. Podemos constatar, portanto, que o instituto ainda não alcançou todos os seus objetivos. Por outro lado, os próprios ministros da Suprema Corte têm demonstrado dúvidas quando da sua aplicação. Não raro, presenciamos dificuldades em plenário para fixar a tese do julgamento da repercussão geral, muitas vezes prendendo-se a elementos subjetivos ou peculiaridades da causa que levou ao recurso extraordinário em julgamento.

Ora, a tese mostra-se fundamental para a aplicação do entendimento aos recursos sobrestados pelos tribunais inferiores. A correta determinação da “questão constitucional”, com repercussão geral, é essencial para a adequada objetivação do recurso extraordinário e, assim, possibilitar a aplicação do entendimento do Supremo aos demais recursos sobre o mesmo tema.

No julgamento do RE 845.779, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, discute-se o direito de transexuais serem tratados socialmente de forma condizente com sua identidade de gênero. A tese formulada no plenário virtual consiste em saber “se a abordagem de transexual para utilizar banheiro do sexo oposto ao qual se dirigiu configura ou não conduta ofensiva à dignidade da pessoa humana e aos direitos da personalidade, indenizável a título de dano moral”. Pois bem, a questão constitucional é “transexual tem direito a escolher o banheiro de acordo com sua identidade sexual”? Ao se objetivar tal questão, caberia ao Supremo analisar a matéria à luz da Constituição Federal. No entanto, durante o julgamento, suspenso por um pedido de vista do ministro Luiz Fux, em muitos momentos os ministros se questionaram sobre questões fáticas, subjetivas, do processo em exame: o transexual chegou a entrar no banheiro? Ele estava vestido de acordo com a sua identidade sexual?

Já no RE-RG 837311, ao analisar se o candidato aprovado em concurso público fora das vagas abertas no edital tem direito à nomeação, os ministros tiveram tanta dificuldade de decidir a matéria de forma objetiva que chegaram a cogitar julgar o mérito e não dar repercussão geral à matéria. O recurso teve o mérito julgado em outubro, mas a tese só foi fixada em dezembro de 2015, após o relator suspender o julgamento para melhor elaboração da tese a ser fixada.

Enfim, estes são apenas dois exemplo de como o próprio Supremo ainda está apreendendo a julgar os Recursos Extraordinários com repercussão geral, a fixar com clareza e objetividade as teses que serão aplicadas pelos tribunais, destacando a questão constitucional dos elementos subjetivos da causa.

A introdução da repercussão geral para a admissibilidade do recurso extraordinário levou parte da doutrina a questionar os efeitos desse requisito frente ao princípio constitucional da “tutela efetiva dos direitos”. Luiz Guilherme Marinoni, por exemplo, acredita que tal exigência “conspira para a realização do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva”, uma vez que acaba por estimular a compatibilização vertical das decisões judiciais, em homenagem ao valor da igualdade, mas desprivilegiando a justiça do caso concreto.[4]

Dúvidas doutrinárias dessa espécie, aliadas às dificuldades práticas de implementação e aplicação da sistemática da repercussão geral pelos tribunais de origem incentivaram mudanças no instituto. Nesse contexto, o novo Código de Processo Civil (Lei 13.105, de 2015) buscou atender demandas da advocacia por maior previsibilidade, celeridade, segurança e uniformidade no julgamento e aplicação da repercussão geral. Aprovou-se, incialmente, um Código de Processo Civil que regulamentava a repercussão geral de forma a privilegiar a justiça do caso concreto, não mais o caráter objetivo do recurso extraordinário e a racionalização do trabalho do Supremo Tribunal Federal.

A Lei 13.105, de 2015, como destacou José dos Santos Carvalho Filho nesta Coluna em artigo de 13 de junho de 2015, trazia quatro grandes transformações: I) possibilidade de impugnação da decisão do tribunal de origem que aplicou a sistemática da repercussão geral; II) fim do juízo de admissibilidade prévio no tribunal de origem; III) prazo para o Supremo Tribunal apreciar o mérito dos processos-paradigmas da repercussão geral; e IV) possibilidade de desconsideração de vício formal do recurso extraordinário tempestivo.[5]

Diante da publicação da referida lei, muitos anteviram a total inviabilização do instituto da repercussão geral, como alertado, inclusive, por José dos Santos Carvalho Filho. Assim, antes mesmo da entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, a Lei 13.256, de 2016, revogou a maior parte das mudanças significativas introduzidas na sistemática da repercussão geral.

O artigo 1.030 do Novo Código foi completamente reformulado. Inicialmente, previa apenas a remessa ao Superior Tribunal de Justiça ou ao STF após o prazo para contrarrazões, independentemente de juízo de admissibilidade pela origem. Caberia, portanto, à Suprema Corte, além do juízo de admissibilidade, a aplicação da sistemática da repercussão geral, conforme o caso: negar seguimento a controvérsia cuja repercussão geral não havia sido reconhecida ou cuja decisão recorrida estivesse em conformidade com o entendimento exarado na sistemática da repercussão geral; reformar decisão contrária ao entendimento fixado em repercussão geral. Ou seja, grande parte da agilidade e objetivação buscada pela reforma do judiciário teria ido por terra. Pior, colocar-se-ia o Supremo na posição de reformador de última instância, de confirmador de sua própria jurisprudência de forma reiterada. Por mais que a segurança jurídica e a isonomia de tratamento dos jurisdicionados eventualmente possam justificar tal medida, o novo procedimento diminuiria o papel dos tribunais de origem e do Supremo Tribunal Federal.

Assim, a alteração de 2016 restabelece o procedimento que a Suprema Corte vem tentando consolidar desde 2007. Cabe, novamente, ao presidente ou vice do tribunal recorrido negar seguimento a recurso que discuta questão constitucional sem repercussão geral (artigo 1.030, I, a) ou interposto contra acórdão que aplicou entendimento do STF reconhecido no regime da repercussão geral (artigo 1.030, I, a, parte final) ou em julgamento de recursos repetitivos (artigo 1.030, I, b). Poderá, também, encaminhar ao órgão julgador para que realize o juízo de retratação (artigo 1.030, II); sobrestar o recurso que versar sobre controvérsia de caráter repetitivo ainda não decidida pelo STF (artigo 1.030, III); selecionar o recurso representativo da controvérsia (artigo 1.030, IV); ou realizar o juízo de admissibilidade e remeter o feito ao STF se o recurso tratar de matéria constitucional ainda não submetida à sistemática da repercussão geral ou o órgão julgador tenha se recusado a fazer o juízo de retratação (artigo 1.030, V).

A tentativa de possibilitar recurso da decisão do tribunal que aplica a sistemática da repercussão geral também foi abortada. Agora, só caberá agravo interno (artigo 1.030, parágrafo 2o), conforme orientação jurisprudencial fixada pelo próprio Supremo Tribunal Federal no AI-QO 760.358, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 3 de dezembro de 2009, e nas Reclamações 7.569 e 7.547, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe 11 de dezembro de 2009. A intenção que orientou as decisões do Supremo, no ponto, parece ser a mesma que determinou a alteração da legislação antes mesmo da entrada em vigor do Novo Código: impedir que a diminuição do número de recursos extraordinários intentada pela introdução do requisito da repercussão geral fosse trocada por inúmeros agravos contra sua aplicação.

Permanece como grande inovação, todavia, a possibilidade de ajuizamento de Reclamação dirigida ao Supremo Tribunal Federal após decisão em agravo interno contra decisão do Tribunal que aplicou a sistemática da repercussão geral (artigo 988, IV e parágrafo 5o, II). Outra inovação mantida pela alteração legislativa de 2016 foi a fixação do prazo de um ano para o julgamento do recurso extraordinário repetitivo e sua preferência sobre os demais feitos, com exceção do habeas corpus e dos processos que envolvam réus presos (artigo 1.037, parágrafo 4o).

Também privilegia a justiça do caso concreto, buscando defender a parte da chamada “jurisprudência defensiva” dos tribunais superiores, a previsão de desconsideração do vício formal de recurso tempestivo (artigo 1.029, parágrafo 3o) e a possibilidade de remessa ao STJ do recurso extraordinário que o Supremo entender consistir em ofensa reflexa à Constituição (artigo 1.033).

Diante do confronto das mudanças pretendidas pelo novo Código de Processo Civil (Lei 13.105, de 2015) e do que efetivamente foi mantido pela “reforma” operada pela Lei 13.256 de 2016, podemos concluir que o objetivo que se consolida é o da busca da celeridade nos julgamentos do Supremo Tribunal Federal. Uma decisão após dez, quinze anos, principalmente em matéria de direitos fundamentais, pode ser completamente ineficaz. O caminho escolhido pela Reforma do Judiciário, em 2004, vem agora a receber aperfeiçoamentos com o novo Código de Processo Civil, mas sem perder sua essência, como garantido pela lei, de modo a permitir a racionalização do trabalho do Supremo Tribunal Federal. Ressalte-se que a técnica da jurisdição discricionária é há muito tempo utilizada com sucesso nos Estados Unidos, país cuja Suprema Corte realiza um notável trabalho de proteção dos direitos fundamentais.

 


[1] Braghittoni explica que diante da crise do Supremo Tribunal Federal, e de todo o Poder Judiciário, diante do número imenso de causas, verifica-se a tentativa constante de se diminuir a demanda de recursos através da criação de “filtros”. A exigência da demonstração da repercussão geral é um “filtro qualitativo”, na medida em que estabelece um sistema de avaliação de admissibilidade de recursos a partir de um «juízo valorativo de importância». Cf. BRAGHITTONI, R. Ives. Recurso Extraordinário: uma análise do acesso do Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Editora Atlas, 2007, p. 1-2.

[2] AMARAL JUNIOR, José Levi Mello do. «Argüição de (Ir)relevância na Reforma do Poder Judiciário», In: Revista de Direito Público nº 7, Jan-Fev-Mar/2005, p. 96.

[3] BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, p. 101-102.

[4] Cf. MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. 2ª Edição revista e atualizada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 56.

[5] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Novo CPC provoca mudanças estruturais na Repercussão Geral, In: Observatório Constitucional. Consultor Jurídico, 13 de junho de 2015.

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