Contas à Vista

A democracia incompleta; e, ao vencedor, o Orçamento

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

22 de março de 2016, 8h05

Spacca
Abraham Lincoln dizia que a “democracia é o governo do povo, para o povo e pelo povo”. A despeito da bela retórica, é um erro jurídico. O que é do povo, e é inalienável, é a soberania; não o governo. É precisa a síntese de Comparato: “O povo soberano não pode e não deve governar”[1]. Democracia ocorre quando se reconhece o povo como titular da soberania. A soberania tem origem e reside, de forma indelegável, no povo. Soberano é quem decide sobre as questões cruciais da sociedade, que impliquem em mudança radical de rotas de governo, ou que se configurem em modificação de uma determinada estruturação política.

Já imaginou ser necessário consultar o povo acerca do aumento da remuneração dos servidores públicos ou sobre a necessidade de aumento das alíquotas do imposto de importação? O governo situa-se no âmbito da democracia representativa, jamais da democracia direta. Não é possível consultar o povo para cada um dos necessários e quotidianos atos de governo. O governo deve ser exercido pelos representantes do povo e trata da condução dos negócios de rotina do Estado, respeitando a Constituição e demais leis do país. O governo presta contas ao povo e incumbe ao povo controlar o governo.

Democracia não é apenas votar nos candidatos oferecidos no cardápio dos partidos políticos a cada dois anos. É mais do que isso. Implica em reconhecer que cabe ao povo decidir seu destino, em especial, nas ocasiões em que podem acarretar mudanças radicais dos rumos anteriormente adotados pela sociedade. Por exemplo, quando se discutir uma emenda constitucional que modifique essencialmente o que tiver sido estabelecido na Constituição, como a questão da pena de morte, do aborto ou da adesão a alguns tratados internacionais.

A Constituição brasileira estabelece no artigo 14 que a soberania será exercida pelo povo por meio do exercício do voto universal, direto e secreto e também pelos seguintes instrumentos: plebiscito, referendo e iniciativa popular (embora não tenha sido estabelecido como e quando se deve convocar o povo para utilizar os dois primeiros).

Porém, falta outro instrumento dentre as opções colocadas na Constituição para o exercício da soberania popular, que é o recall, instituto semelhante ao impeachment que está sendo discutido no âmbito do Congresso Nacional em relação à presidente da República.

Não se busca, a esta altura dos acontecimentos políticos, querer criar regras para alterar o que está em vigor e em movimento — definitivamente não é esse o intuito deste artigo. O que se busca demonstrar é a incompletude de nossa democracia, tão badalada nos discursos políticos e tão abalada pela prática política às vésperas de comemorar 30 anos. Nossos representantes no Congresso não estiveram à altura de adotar esse que é o grande instrumento de garantia da soberania popular, seguramente pelo enorme temor que desperta na classe política, pois a ameaça.

Hoje se ouve o ronco das multidões que foram às ruas de todo o Brasil se manifestando a favor e contra o impeachment da presidente. Pela Constituição, cabe ao Congresso Nacional decidir se ela deve ou não ser retirada do cargo. Aqui está o erro, pois um dos grupos se sentirá traído pelo Congresso, qualquer que venha a ser o resultado. De fato, trata-se de um daqueles momentos em que a soberania, que reside no povo, deveria por ele ser exercida. Nesse caso, a soberania do povo foi sequestrada pelo Congresso Nacional. Existisse o instrumento de soberania popular do recall, o povo seria chamado às urnas para votar, a fim de manter ou “deseleger” a presidente da República. Afinal, foram os votos de 54 milhões de pessoas, há cerca de 18 meses, que a levou a esse cargo. Contudo, somos mais de 142 milhões de eleitores[2] que deveríamos ser chamados às urnas para decidir se a presidente deve ficar ou sair. Observe-se que ela foi eleita por apenas 38% do eleitorado em 2014, pois um quarto dos votantes não compareceu às urnas ou votou em branco ou nulo[3].

Por que tão importante função está no Congresso Nacional? Porque a classe política não quer o povo exercendo sua soberania de forma direta. Eleitor bom, para a classe política, é aquele que vota nos candidatos expostos no horário eleitoral e volta para casa para ver a novela das 8 e o Fantástico durante vários anos. Eleitor ativo, que busca exercer o controle social sobre a classe política, é considerado “um chato”, e é evitado. Afinal, pensam vários políticos, se esse eleitor quer participar ativamente da política, porque não se candidata em vez de ficar cobrando resultados daqueles que elegeu?

O fato é que, pelas regras vigentes, quem decidirá sobre o impeachment da presidente será o Congresso Nacional, e, qualquer que seja a decisão, multidões ficarão frustradas. Era melhor colocar isso nas mãos do povo, que é soberano. Sem intermediários e sem essa de representação popular para o impeachment — atualmente restrito ao presidente da República (artigo 86, CF). Afinal, o que mais se ouve nas ruas é a frase “ele não me representa”. Acabemos com essa espécie de representação da soberania popular — deixemos o povo decidir nestes momentos cruciais para o futuro do país. Isso sim será democrático.

Façamos um paralelo com a dinâmica de uma empresa — uma sociedade anônima, por exemplo. Verifica-se que compete à assembleia-geral nomear e destituir a diretoria (Lei 6.404/76, artigo 122, II). Como regra, que comporta exceções, esse poder não é atribuído nem ao conselho de administração nem ao conselho fiscal e muito menos ao conjunto de todos os que compõem a estrutura da empresa, o que inclui os trabalhadores. O poder de nomear e destituir é concentrado em quem tem o dinheiro, os acionistas. Será que, na nossa sociedade civil, o poder de destituir está concentrado apenas no Congresso porque é ali que estão representados os acionistas? Será a efetiva comprovação de que, no Brasil atual, “nós, o povo”, temos apenas que assistir à assembleia de acionistas decidir sobre nosso futuro — sendo que somos apenas os trabalhadores, “sem ações representativas do capital”?

Isso lembra aquela música do Cazuza que foi um hit no final dos anos 1980, derrocada do regime militar:

Brasil,
Mostra tua cara
Quero ver quem paga
Pra gente ficar assim
Brasil
Qual é o teu negócio?
O nome do teu sócio?
Confia em mim

Não me convidaram
Pra essa festa pobre
Que os homens armaram pra me convencer
A pagar sem ver
Toda essa droga
Que já vem malhada antes de eu nascer.

O fato é: “Ao vencedor, as batatas!”, como relata Machado de Assis, na fala de seu personagem Quincas Borba, em livro com o mesmo nome, escrito entre 1886 e 1891, período dos mais difíceis em nosso país, pois abrange a Abolição da Escravidão e a Proclamação da República. Esse trecho é revelador e nos ensina uma lição indelével:

– Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.

– Mas a opinião do exterminado?

– Não há exterminado. Desaparece o fenômeno; a substância é a mesma.

Quais serão “as batatas” na realidade brasileira atual?

Quem vencer essa disputa terá, dentre outros fatores de poder, o direito de gerir o Orçamento de 2016 (Lei 13.255/16), cuja estimativa de receitas é de R$ 3 trilhões. E esse montante é semelhante a cada ano, um pouco a mais ou a menos. Algo próximo de US$ 1 trilhão. Esse dinheiro vem do meu, do seu, do nosso bolso. Logo, porque devemos pagar tudo isso e não decidir quem vai gerir o dinheiro? Bem ou mal, a atual gestora foi eleita. Porque não somos nós a deliberar sobre sua destituição ou manutenção?

Registre-se que essa dinheirama orçamentária é apenas a parte visível do iceberg do poder, pois ainda existem, para ficar apenas no Direito Financeiro, os incentivos fiscais e creditícios, os avais públicos, as licitações e muito mais coisas do que possa imaginar nossa vã filosofia; e também envolve vantagens corporativas, como auxílio-moradia, nomeações para cargos em comissão ou em tribunais, aumento de subsídios, diárias, vantagens pessoais, tetos remuneratórios e opacidade, muita opacidade nessas relações.

Se pagamos tudo isso, por que nos retiram o direito de decidir acerca de mandar ou não esses agentes políticos para casa? Observem que o recall é um instrumento que pode ser utilizado contra ocupantes de cargos muitos poderosos, como presidente da República, senadores, deputados, ministros do Supremo Tribunal Federal e demais tribunais superiores e outros ocupantes de cargos políticos em todos os níveis da federação. Isso colocaria muito poder nas mãos do povo; logo, é difícil que a ele seja dado tem que ser conquistado. Porém, vocês imaginam multidões nas ruas gritando em prol do direito de exercer o recall? Gritando para que o mesmo seja incluído na Constituição? Confesso que não vejo essa cena. O povo vai às ruas por emoção, não pela razão.

Nessa guerra pelas “batatas”, isto é, pelo comando da máquina estatal e o direito de usar nosso dinheiro, é necessário que existam árbitros que velem pelo respeito às regras do jogo. Nós pagamos o salário do Poder Judiciário exatamente para isso — para zelar pelo respeito às regras do jogo. Essa é sua função e seu dever fundamental: dizer não, quando os direitos fundamentais estão em jogo, como expus em outra coluna.

Já imaginaram se o recall vigorasse em nosso país e pudéssemos aplicá-lo aos agentes políticos como um todo, inclusive para a destituição de magistrados das cortes superiores? Aí daríamos um passo de gigante para nos tornar um país mais democrático.


[1]Fábio Konder Comparato, Ética – Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno. SP, Companhia das Letras, 3ª ed., 2011, pág. 654.
[2] http://www.tse.jus.br/hotSites/CatalogoPublicacoes/pdf/informacoes_dados_estatisticos_eleicoes_2014_web.pdf
[3] http://www.conjur.com.br/2014-out-05/quarto-eleitores-nao-votou-presidente-neste

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    é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.

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