Opinião

Uso compulsivo de escutas pode destruir seriedade de investigações

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18 de março de 2016, 11h41

Isso começou lá atrás, faz muito tempo. O escriba vem repicando no tema, avisando, prevenindo, criticando, apontando desvios e buscando providências. Cuidava-se da interceptação telefônica e ambiental, legalizada depois de projeto de lei levado a discussão durante algum tempo, existindo antes, diga-se de passagem, um grampeamento clandestino, mas sempre posto sob repressão, se e quando descoberto. Na verdade, o país, em muitas particularidades, imita os Estados Unidos da América do Norte, buscando, no passado, aqueles filmes em que o FBI, representado por detetive cujo nome era Eliot Ness, identificado por chapéu de feltro sempre a lhe proteger a cabeça, lutava contra os mafiosos. Às vezes, observando-se as possibilidades da época, um ou outro colaborador metia um gravador de rolo no peito depois de lhe rasparem a pelugem, gravando conversas sinistras. Os brasileiros se impressionaram com aquilo, a partir, inclusive, do Serviço Nacional de Informações (SNI), criado por Golbery. Daquele tempo à frente, houve evidente aperfeiçoamento, partindo-se para a interceptação telefônica e ambiental, agora estilizada pela utilização de dezenas de artifícios.

Apresentou-se ao meio repressivo, há poucos anos, um instrumental produzido, primitivamente, no sul da país, mais precisamente em Santa Catarina, adquirindo-se o know how de um grupo representado, na origem, por um ex-funcionário público. Dizem as notícias que o sistema teria sido criado por técnicos gerados na Universidade Federal daquelas plagas, resultando litígio judicial acentuado. Pelo sim ou pelo não, o Ministério Público do Estado de São Paulo adquiriu aquele método por meio de chamamento (convite ou licitação) ao qual só a empresa citada atendeu. A justificativa era razoável, pois havia requisitos técnicos não atingidos por outras empresas, também iniciantes, postas a funcionar no país. Afirme-se, apenas por se cuidar de incidente curioso, que em outros Estados da Federação houve, também, propostas e aquisições de sistemas assemelhados, mas existia uma espécie de “reserva de mercado”, na medida em que possíveis candidatos se omitiam.

De fato, o Ministério Público do Estado de São Paulo se familiarizou com o aparato denominado “Guardião”, pondo-o a funcionar com bastante proficiência, havendo época em que, valendo-se da ajuda prestada pela Polícia Militar, implantaram-se escutas permanentes subsidiadas por cerca de 40 policiais militares sediados, ao que consta, em Presidente Prudente. Não se sabe exatamente como aquilo funcionava. Em princípio, os espiões eletrônicos precisavam da coonestação, auxílio e intermediação das provedoras de telefonia atuando em torno, mas alguns, embora sem afirmativa expressa, dizem que tal intermediação seria dispensável, caso houvesse disposição a trabalhos diretos.

A utilização repetida de meios hábeis ao aperfeiçoamento de qualquer atividade humana estimula o ideário. Assim, paralelamente à implantação da escuta referida, houve hipóteses de colocação de “grampos” em institutos penais, no Estado de São Paulo e fora dele, pois, já nessa segunda fase, outros estados da Federação, com relevo para órgãos do Ministério Público, se haviam encantado com a ideia. Houve, inclusive, um escândalo, logo depois ultrapassado, de gravação áudio-visual de encontro íntimo de um casal numa penitenciária conhecida, captando-se então as tertúlias, os afagos e as confidências feitas pelo preso à parceira e vice-versa. Pairava sobre o todo suspeita de atividade espúria realizada por organização criminosa vicejando no país. Aliás, o uso do “Guardião” foi abertamente admitido por eminente representante do Ministério Público do Estado de São Paulo. Em suma, “temos e vamos usar”.

A vulgarização do uso da interceptação mencionada atingiu quase todos os estados da Federação. Paralelamente, juízes estaduais e federais se apaixonaram pela forma inovadora de captação de provas, comunicando-se repetidamente com os órgãos de persecução e investigação, numa cooperação estreita, fixando-se prazos quase indefinidos para a finalização da vigilância. Dentro de tal contexto, a pesquisa e a descoberta de indícios relativos às chamadas infrações habituais deixou a plano secundário aquela tradicionalíssima atividade física de esconder-se o mocinho nas sombras das esquinas, buscando elementos de comportamento infracional dos investigados.

Bastava a utilização de fones de ouvido ou, quiçá, nem mesmo destes, pois a arte da eletrônica permitia gravação remota e captação posterior, isto quando os técnicos tinham tempo ou vontade para a instrumentalização de vozes ou imagens. No meio daquilo tudo, veio a chamada videoconferência, hoje produzida em manquitolagem, pois repetidamente as tentativas não dão certo numa teimosa implantação, gerando-se, às vezes, episódios tragicômicos, porque os partícipes acham que as traquitanas foram desligadas, libertando-se então de maiores formalizações. É aí que as coisas extravagantes acontecem, levando as partes, ao fim, à perplexidade, porque os personagens, colhidos em maior grau de descontração precisam mandar cortar, na gravação, aquilo que não pode ser cortado. Mormente, se houver impugnação de um ou outro interveniente. Funciona tudo, diga-se de passagem, como nas atividades domésticas. Quando as visitas se vão, resta eventualmente um comentário xistoso, uma crítica mordaz, não se sabendo exatamente o que fazer com aquelas adiposidades inconvenientes.

Em aditamento a isso, as empresas produtoras de aparelhagem análoga põem ofertas públicas de disseminação das possibilidades de perenização de tais atividades. É fácil a comprovação. A própria “internet”, seguidamente, tem ofertas de relógios ou canetas adequados ao espiolhamento da privacidade alheia, a preços muito módicos, diga-se de passagem, tornando-se risível, então, a recomendação, posta em alguns grupamentos de executivos, no sentido de deixarem os celulares fora, tomando-se como exemplo os pistoleiros do faroeste americano, obrigados ao penduramento de armas atrás do balcão. Assim, o menino que gravou uma conversa com o senador Delcídio (votado este à desconfiança, hoje, dos companheiros de Senado e fadado ao degolamento), poderia ter feito gravação mais sofisticada. Não fez porque havia a chamada confiabilidade pela qual, aliás, o próprio presidente da Suprema Corte não tem muito apreço, pois falava com o procurador-geral da República, durante uma sessão, com a mão protegendo a boca, desconfiado de que alguém pudesse fazer leitura labial (o escriba aprendeu isso faz muito tempo, pois levava a uma fonoaudióloga menino surdo-mudo. Tomou lições junto). Certa vez, diga-se apenas para suavizar o tema, estava numa sustentação oral quando um desembargador mal-humorado disse ao outro: “Isso é besteira!”. Evidentemente, o vetusto juiz ouviu poucas e boas. Era preciso.

Cuida-se, perceba-se, de variação sobre o mesmo tema. É sempre a espionagem, caracterizada como a captação de atividades humanas postas em sigilo parcial ou total. Há, é claro, restrições múltiplas à publicidade: são as intimidades da produção de máquinas especiais, os compassos de música em elaboração, os despachos judiciais postos sob censura, as convenções mantidas por delinquentes, os encontros de casais (legítimos ou não), as fórmulas, enfim, dos soros destinados à cura ou vacinação contra moléstias contraídas pela picada de mosquitos (o zika, por exemplo). Aquilo vale muito dinheiro. Pense-se na falada pílula contra o câncer, constando ter sido levada a patenteamento nos órgãos competentes. O tema é tratado de forma bastante leve, já se vê, mas a suavidade não impede a seriedade do conjunto.

O escriba, em passado recente, afirmou que o Brasil se transformara em um “alcouce eletrônico”. Procurem-se os dicionários de sinônimos, com breve passagem por aquele prefaciado por Chico Buarque: o vocábulo é sinônimo de prostíbulo, reduto de meretrício, lugar de prostituição, enfim. Dizem do frequentador de bordel, um libertino, pornógrafo, voluptuário, cevão, putanheiro, azevieiro, dissoluto, imoral, pecadorasso, luxurioso, libidioso… e vai por aí. A interceptação, nesse aspecto genérico, é tudo isso e mais  alguma coisa, porque devasssa aquilo que o ser humano tem de mais secreto, íntimo, pundonoroso, restrito, ligando-se os mistérios aos comportamentos concretizados em discrição. Dir-se-á que os bons propósitos do espião, acompanhados da localização de crimes consumados ou apenasmente encetados, constituiriam atividade nobilitadora. Em outros termos, produz-se o mal para a obtenção do bem, misturando-se a espionagem nos constrangimentos e escrúpulos do próprio agente. O ser humano trabalha constantemente sobre metáforas. Veio à memória do escriba a imagem de um filme em preto e branco passando episódios da ditadura: havia um dentista, colhido no meio da burguesia, encarregado da obtenção de segredos dos torturados. Ele furava os dentes dos infelizes sem anestésicos usando brocas, chorando enquanto as vítimas soltavam urros de dor. Obviamente a justificativa grotesca vinha em seguida: ele, o torturador, atingia os nervos dos molares expostos, mas que chorava, chorava.

Vem tudo ao mundo concreto quando se pensa no acidente de percurso divulgado nesta quarta-feira (16/3), constando ter havido a divulgação de conversa telefônica de Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente da República e Dilma Rousseff, ocupando o trono presidencial. A moça trava curto diálogo com o metalúrgico, dizendo-lhe estar remetendo um papel contendo dizeres não especificados na conversa, mas sugerindo que o interlocutor o usasse em caso de necessidade. Perceba-se: de um lado a presidente da nação. Do outro, alguém, certamente, posto sob investigação e grampeado pela Polícia Federal. Aquilo seria uma rotina de trabalho, não estivesse do lado de lá a 1ª mandatária da nação. O outro — o Lula — tinha suas conversas e, com certeza, seus eventuais diálogos por computador espionados permanentemente por ordem e conta do juiz processante. Vai daí, não se sabe por quais cargas d’água, foi descoberto que a interlocutora do investigado era a presidente da República. Um susto com certeza. O escrivinhador, numa associação de ideia serelepe, se lembrou, enquanto compondo o texto, de uma crônica do genial Luis Fernando Verissimo, filho do autor de O Tempo e o Vento, mas diferenciado por talento próprio: alguém dançava bolero com uma rapariga (bolero sem marido traído não vale). Sussurrava no ouvido da parceira (é assim que funciona). Repentinamente, ouviu-se um “Glup”, seguido de tosse compungida e dito rouco: “ — desculpe, engoli seu brinco” . Deve ter sido assim, quando se percebeu que Dilma estava lá, no Planalto, falando com Lula. Em outros termos, “Ops”! E agora? Eis a questão. O juiz, de sua parte, afirma ter mandado interromper o grampo bem antes daquilo, uma hora talvez. Deve poder prová-lo. A Polícia Federal acentua ter obedecido imediatamente, oficiando à provedora, mas, no meio-tempo, o grampo fatídico captara o diálogo entre um e outra. Aquela conversa fatídica foi mandada ao magistrado. Aconteceu, então, o desenlace compulgente, pois o pretor, desfazendo o segredo imposto ao espiolhamento, mandou a discrição para à favas, tornando-se o fato conhecido do mundo inteiro, não só do Brasil.

O assunto parece risível, mas é extremamente sério, porque o compulsivo uso da interceptação telefônica e ambiental, no Brasil, copiado do comportamento infantil dos americanos do norte, mais a delação premiada, também importada de lá, corporificaram conjunto de condutas que só poderiam levar, no fim, a uma destrutiva falta de seriedade em parte da atividade jurisdicional. Brincou-se com fogo, diversão esta que não teve da Suprema Corte a censura adequada, ressalvada a posição de um ou outro ministro provido de dose maior de premonição. Chegou-se à solerte afirmativa de que a captação de diálogo entre advogado e cliente seria legítima, porque, se o causídico era protegido pelo segredo profissional, o interlocutor não o era. Podia-se, portanto, grampear o parceiro, estendendo ao advogado a quebra do segredo do cliente. Tal raciocínio, se produzido na Roma de Sócrates ou Platão, estimularia a ira de qualquer filósofo menor.

O conteúdo do diálogo entre a presidente da República e o novo ministro não é importante, porque tal prova ou indício é absolutamente ilegal, não resultando, aliás, em comprometimento deliquencial. Não se diga que este cronista é simpático ao casal. Não, “procurando bem, todo mundo tem pereba, só a bailarina é que não tem”. Há pecados, sim, mas devem ser captados com a preservação máxima de conteúdo ético do Estado, enquanto investigação e jurisdição. A figura do odontólogo a verrumar chorando os dentes dos perseguidos, não serve para justificar os atos ilícitos daqueles que se dizem os mocinhos. No fim, é difícil separar uns e outros, porque o desnaturamento ameaça borrifar perseguidores e perseguidos. Há, no grampeamento na conversa da presidente com o atual ministro, o vazio que se poderia denominar “buraco negro”. As explicações vão e vêm, como no ping-pong. Ver-se-á onde — ou na mão de quem — o jogo vai parar. No fim, o todo é muito feio.

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