Opinião

É possível uma teoria crítica do Direito sem Marx e Engels?

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17 de março de 2016, 6h58

“Entre direitos iguais decide a força”
(Karl Marx, em O capital)

“É evidente que o conjunto da legislação tem o objetivo de proteger os proprietários contra os despossuídos. As leis são necessárias exatamente porque existem os despossuídos e, mesmo que poucas leis o expressem diretamente […], a hostilidade em face do proletariado está na base do ordenamento jurídico. E isto se demonstra quando os juízes, especialmente os juízes de paz, eles mesmos burgueses e com os quais o proletariado se relaciona com mais frequência, interpretam nesse sentido hostil, e sem vacilações, o espírito das leis”
(Friedrich Engels, em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra)

O (ab)uso instrumental da filosofia ficou patente, na última semana, com o pedido de prisão preventiva do ex-presidente Lula. O esforço dos promotores do caso em ironizar personagem tão afamado quanto um ex-presidente da República apenas explicitou um misto de ignorância e desleixo com as referências inusitadas a Marx, Hegel (Engels?!) e Nietzsche. A partir disso, irrompeu nas redes sociais uma vingança expressa em sarcasmo, por parte dos subalternos estudiosos das disciplinas formativas do Direito que, a despeito de tal vexaminosa atuação dos promotores, continuam ocupando esta posição na educação jurídica. Diante das críticas quanto a sua indigência filosófica, um dos promotores, arrogantemente, respondeu: “vão caçar o que fazer. Vão catar coquinho”. Resposta tão digna quanto o elevado nível de seu conhecimento filosófico.

Mas, talvez, a questão fundamental, que toda essa fratura da cena político-jurídica desvela, é a incapacidade que têm as teorias jurídicas, de fortes influências liberais, de compreender as contradições e a dinâmica do direito contemporâneo. As explicações desta “politização” do judiciário têm sido expressas, basicamente, em uma sincera crítica garantista, denunciando um importante golpe aos princípios do (neo)constitucionalismo no plano normativo, porém inábil quanto a fazer qualquer análise no plano fático; e, concomitantemente, uma abordagem difusa da existência de um Estado de Exceção, flertando com uma teoria schmittiana do poder. Em suma, como se a predominância de fatores econômicos e políticos fossem sintomas de algum comportamento anômalo do sistema jurídico e não elementos estruturais de seu funcionamento.

Por este motivo, mais do que nunca, é momento de romper o cerco das teorias tradicionais e lançar mão das armas da crítica ao/do Direito. Em primeiro lugar, é necessário visualizar o direito não somente como um fenômeno normativo (um puro dever ser) de mediação social, mas como um espaço privilegiado do conflito de classes, que disputam, inclusive em suas frações, os contornos da hegemonia política de uma conjuntura histórica determinada. Com este diagnóstico, para além da evidente relação do conteúdo das normas jurídicas provenientes de embates encarniçados no interior do parlamento, é indispensável avaliar que o direito também possui categorias gerais capazes de fazer a sua forma social assumir uma especificidade em relação a outros tipos de normatividade — a lição é do jurista soviético Evgeni Pachukanis, que se mostra indispensável em um momento como o atual. O que significa que o Direito não é um mero instrumento de uso político, embora em alguns momentos essa faceta apareça a qualquer observador, possuindo um vínculo estrutural com a reprodução da sociedade capitalista em suas múltiplas expressões.

Outro aspecto importante, na verdade o centro das discussões atuais, é o horizonte de possibilidades dos processos interpretativos do direito. A decisão é a bola da vez! O lugar da perplexidade! O assombro dos juristas, no entanto, deve-se aos pressupostos paleopositivistas — a interpretação como um momento de reprodução de um suposto sentido originário do texto e, portanto, neutro do ponto de vista epistemológico e político — ou mesmo a utopia garantista da regulação da atividade do intérprete por marcos principiológicos presentes na Constituição. Em ambos os casos, não se faz presente uma semiologia do poder capaz de compreender que os processos de significação se situam, igualmente, no terreno da luta de classes. A batalha em torno da concreção do texto normativo é, claramente, uma disputa por hegemonia em um terreno minado pelas sobrevivências de um poder aristocrático. Isso não significa que não se deve combater no campo dos sentidos do direito, contudo deve-se ter a clareza dos limites da forma jurídica e, em nenhum momento, cair no conto da realização de justiça via um certo positivismo de esquerda.

Dadas as insuficiências das teorias tradicionais do direito, nomeadamente as normativistas e as decisionistas, a comunidade de juristas comprometida com uma perspectiva mais crítica a respeito do fenômeno jurídico precisa superar a ingenuidade de que as armas constitucionais ou das garantias fundamentais darão suporte necessário em contexto de virulenta luta de classes. Os usos do Direito têm limites intrínsecos e somente o resgate da tradição de Marx e Engels (e não Hegel…), tão tripudiada pelos promotores paulistas (além de injustamente relacionados à figura de Lula que, contemporaneamente, tão pouco tem a ver com eles), pode oferecer saídas para os juristas críticos.

A emergência conjuntural do(s) caso(s) Lula não cria assimetria alguma no contexto do Direito brasileiro. Pelo contrário, apenas põe sob os holofotes, justamente pela sua capacidade de mobilização política, a seletividade do sistema penal tão flagrante e sumariamente relegado em relação à classe subalterna — basta observar a superpopulação de presos provisórios em nosso país. E, além disso, coloca em xeque a ideologia da Constituição de 1988 — com seu “ministério público” a defender a sociedade — como uma vitória dos setores populares, que se traduziu na teoria/filosofia do direito em (neo)constitucionalismo ou pós-positivismo, isto é, o estreito horizonte da utopia da efetividade de direitos. É, em síntese, momento de compreender essa crise, que está sendo tateada pela comunidade jurídica, e, sem as contribuições das teorias críticas do direito, continuaremos afogados na hostil, e sem vacilações, espuma da história, tendo não mais que a força por tábua de salvação.

Autores

  • é professor de Antropologia Jurídica do Curso de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e secretário-geral do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS).

  • é professor de direito em Santa Catarina (SOCIESC) e coordenador do GT de Direito e Marxismo do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS).

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