Opinião

STF deve analisar três grandes indagações sobre parlamentarismo

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15 de março de 2016, 17h03

O Supremo Tribunal Federal decidirá esta semana sobre a possibilidade ou não de ser o parlamentarismo objeto de Emenda Constitucional. O parlamentarismo não está no rol narrado artigo 60, § 4º, da Constituição da República de 1988, que define as matérias que não podem ser objeto de deliberação, conhecidas como “cláusulas pétreas”.

Um dos temas mais significativos da teoria constitucional brasileira, desde a promulgação da nossa Constituição, tem sido a discussão do alcance de sentido do termo cláusula pétrea. O artigo 60, no § 4º, expõe de forma aparentemente taxativa que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais”. A impressão inicial é que esse comando normativo abrangeria a totalidade dos limites materiais ao poder de reforma constitucional, que, em nosso país, é usualmente concretizado através de emendas constitucionais e, excepcionalmente, por meio de revisão (artigo 3º do ADCT).

A dúvida, porém, no que tange à discussão em torno da mudança do sistema de governo para o parlamentarismo, decorre sobretudo do fato de que é a única matéria, em toda a nossa história, que já foi submetida duas vezes à consulta popular, tendo sido, nas duas vezes, rejeitada.

A primeira fez parte de um acordo para garantir a posse do vice-presidente João Goulart, após a renúncia do presidente Jânio Quadros. A Constituição de 1946 foi emendada às pressas para trocar o presidencialismo pelo parlamentarismo. A Emenda Constitucional 4, de 2 de setembro de 1961, retirou poderes do presidente da República, que passou a compartilhá-los com o Conselho de Ministros. Fazia parte do acordo a consulta popular, que, quando feita, em 1963, decidiu pelo retorno ao presidencialismo.

A segunda vez foi decidida na Assembleia Constituinte de 1987/1988. Os constituintes optaram por manter o presidencialismo, mas inseriram norma no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) prevendo uma consulta popular cinco anos após a promulgação da Constituição de 1988. Em 1993, foi realizada a consulta, que confirmou a opção presidencialista.

O que deve ser decidido, agora, é se essa dupla rejeição pelo titular do Poder Constituinte, o povo, tem consequências em matéria de limitação do poder de reforma. Apesar de inexistir cláusula explícita vedando a discussão sobre o parlamentarismo, haveria alguma limitação implícita?

Apesar da clareza do texto constitucional, o STF já proferiu diversas decisões que acolhem a possibilidade de construções interpretativas, elevando o âmbito de proteção dos direitos individuais. E isso tem ampliado a fronteira que separa o “querer” do Congresso, órgão que responde pela reforma da Constituição, e a vontade do constituinte, que optou por retirar do alcance da mudança determinados conteúdos, preservando a própria essência da Constituição.

Exemplo claro da mencionada ampliação foi o reconhecimento da intangibilidade dos direitos para além do artigo 5º, como o da anterioridade tributária (ADI 939-7/ DF) ou o caso da aplicação imediata da nova regra sobre coligações partidárias eleitorais (ADI 3.685/DF), que deu ao STF a oportunidade de defender que “além de o princípio constitucional da anterioridade eleitoral conter em si mesmo elementos que o caracterizam como uma garantia fundamental oponível até mesmo à atividade do legislador constituinte derivado, a burla ao que contido no art. 16 da Constituição ainda afronta os direitos individuais da segurança jurídica e do devido processo legal” (grifo nosso).

No dia 16 de março, o STF enfrentará, em sede de mandado de segurança (MS 22.972, Rel. Min. Teori Zavascki), uma discussão doutrinária deflagrada logo após o plebiscito de 1993, que cristalizou o sistema presidencialista em nosso ordenamento, rejeitando, por meio de consulta direta (um raro exemplo de exercício pleno da soberania popular no Brasil), o parlamentarismo como sistema de governo. Reforçou-se, desde então, a ideia de que o comando do artigo 2º do ADCT restaria plenamente realizado, tendo sido o sistema de governo escolhido em definitivo, ao menos enquanto a Constituição continuasse em vigor.

A questão do sistema de governo, de fato, repercute diretamente na compreensão de outros princípios, como o direito ao voto direto (no parlamentarismo o primeiro-ministro pode ser escolhido indiretamente pelo Legislativo), o respeito à autonomia federativa (possibilidade ou não de governos estaduais e municipais parlamentaristas) ou, ainda, o princípio da separação dos poderes (já que o presidente da República teria de si deslocado um leque considerável de atribuições). Por isso, a interpretação favorável a uma mudança de sistema de governo por meio de emenda constitucional não pode deixar de abordar de forma suficiente outras consequências até então pouco exploradas, tanto no âmbito doutrinário, quanto no jurisprudencial.

O ministro Teori Zavascki, relator do Mandado de Segurança que decidirá sobre a constitucionalidade de proposta de Emenda 20-A, deflagrada há mais de 20 anos, precisará de argumentos sólidos para defender, se for o caso, a pertinência de uma proposição que afetará a história constitucional brasileira, que, em 127 anos de República, só conheceu um único e breve momento parlamentarista (1961/1963) tido por muitos como um “golpe branco”, pois retirou de João Goulart a legítima pretensão de governar o país, devendo-se lembrar que tal episódio ocorreu em um cenário onde as forças políticas restavam enfraquecidas e divididas tal qual o nosso momento atual, não obstante as diferenças no plano político-econômico mundial.

Serão basicamente três grandes indagações para o problema: (i) se o sistema presidencialista seria cláusula pétrea, argumento reforçado em face das rejeições populares acima referidas; (ii) não sendo o sistema presidencialista cláusula pétrea, se haveria necessidade de manifestação expressa do povo, através da consulta plebiscitária; (iii) caso haja a mudança no texto constitucional, se tal mudança teria eficácia imediata ou somente para as próximas eleições.

A primeira posição (i) toma o rol de cláusulas pétreas como aberto. Admite que há outras cláusulas além daquelas literalmente citadas pelo Texto Constitucional. No caso da discussão sobre o parlamentarismo, daria força especial à consulta popular, congelando a possibilidade de, através do poder constituinte derivado, rever o tema. É a posição que dá maior dignidade à consulta realizada, o que é paradoxal, já que, as cláusulas pétreas significam uma barreira à decisão majoritária. Em respeito à consulta popular, essa interpretação cria uma vedação absoluta ao poder de reforma.

A segunda (ii) é minimalista em relação ao rol de cláusulas pétreas. Considera que apenas há vedação absoluta quando o Poder Constituinte expressamente vedou a reforma. Essa vertente, por sua vez, subdivide-se em duas. Uma primeira defende que a consulta popular seria apenas uma forma de ativar o Poder de Reforma com data certa para acontecer. Independentemente do resultado da consulta, o Poder de Reforma estaria autorizado a revisitar a matéria.

Já a segunda vertente daria à consulta um status especial, mas não impõe um limite intransponível ao Poder de Reforma. Exige apenas que ato de igual natureza, portanto com igual força legitimadora, a consulta popular, desfaça o poder limitador criado pela consulta anterior, o que autorizaria, desse modo, a mudança do sistema de governo para o parlamentarismo.

A terceira posição (iii), que admite a mudança do sistema de governo brasileiro, considera que, com base na experiência constitucional republicana recente, na qual a solução parlamentarista foi estrategicamente ativada e implementada para obstruir o legítimo exercício do Presidente da República (Jango), qualquer modificação que venha a ser aprovada somente poderia ter efetividade para o governo subsequente.

A preocupação maior, sobretudo para os espíritos desarmados das conveniências políticas de última hora, é sem dúvida sobre o momento da aplicação da decisão do STF na hipótese de autorização ao Poder de Reforma para transpor eventuais limites à mudança do presidencialismo para o sistema parlamentarista, o que daria ao Poder Legislativo poderes nunca antes concedidos ou imaginados. Se a escolha for pela constitucionalidade da proposição, não parece razoável supor que a mesma tática equivocada e já julgada pela história, ocorrida em 1961, seja novamente ressuscitada, permitindo a esse Congresso que aí está, eleito dentro de uma outra sistemática, a ampliação de suas funções e de suas competências.

Caso o STF adote posicionamento que permita a mudança, entendemos que a eventual Emenda à Constituição não pode significar uma mudança aplicável de imediato, mas deve regular um futuro novo governo eleito diretamente. Há de dar-se ouvido aos ecos das gerações presentes e passadas que vivenciaram, em sua plenitude, as mudanças com todas suas consequências decorrentes.

A soberania popular retratada expressamente como princípio constitucional, concretizada através do voto, da iniciativa de lei popular, do plebiscito e do referendo, não pode e não deve ser expressão morta ou valor menor nos argumentos técnicos que serão expostos no julgamento do dia 16 de março. Em tempos de utilitarismo jurídico que parece tudo justificar, a vigília diária pela resistência da Constituição nunca foi tão necessária.

Artigo produzido pelo grupo Recife Estudos Constitucionais (REC/CNPq), formado pelos professores Adriana Rocha de Holanda Coutinho, Flávia Danielle Santiago Lima, Glauco Salomão Leite, Gustavo Ferreira Santos, João Paulo Allain Teixeira,  José Mário Wanderley Gomes Neto, Luiz Henrique Diniz, Marcelo Casseb Continentino e Marcelo Labanca Corrêa de Araujo.

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