Justiça Tributária

Protesto de dívida fiscal é totalmente ilegal e absolutamente imoral

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

14 de março de 2016, 8h00

Spacca
Apesar de decisões judiciais em sentido contrário, o envio de certidões de dívida fiscal (CDAs) para cartórios de protesto é um ato totalmente ilegal e absolutamente imoral.

A ilegalidade já demonstramos em nossa coluna de 7 de janeiro de 2013, sob o título Contribuinte deve protestar e não ser protestado, e em 23 de novembro de 2015 aqui afirmamos que o Protesto de CDA, além de inútil, é ilegal e desagradável.

Já existem decisões do Superior Tribunal de Justiça e de tribunais estaduais reconhecendo a suposta legalidade da Lei 12.767, que resultou da MP 577, de 27 de agosto 2012. Essa MP deveria tratar apenas de assuntos relacionados a energia elétrica. No Congresso, ela recebeu um “contrabando”, por meio de emenda que introduziu um parágrafo único ao artigo 1º da Lei 9.242/1997, que trata de protesto de títulos e documentos de dívida. Ou seja: para tratar de questões de energia elétrica, o Congresso resolveu mexer na lei dos protestos!

O artigo 1º da Lei 9.242 apenas define o que é protesto como “o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida”. Tal artigo recebeu (dentro da MP sobre energia elétrica!) um único parágrafo para dizer que entre os títulos citados fazem parte “as certidões de dívida ativa da União, dos estados, do Distrito Federal, dos municípios e das respectivas autarquias e fundações públicas”.

Ora, a Lei Complementar 95 de 26/2/1998 é muito clara em seu artigo 7º, inciso II a ordenar que a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão. Leis complementares estão logo abaixo da Constituição e suas emendas (CF artigo 59) e assim não podem ser ignoradas na elaboração de qualquer outra lei.

Sobre tal assunto, já se manifestara o Superior Tribunal de Justiça da seguinte forma:

“Se a CDA comprova o inadimplemento do débito fiscal, gozando inclusive de presunção de certeza e liquidez, não há sentido em admitir que ela seja levada a protesto, porque a finalidade deste, nos termos do art. 1º da Lei 9.492/1997 é a prova do inadimplemento e o descumprimento da obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida. A única forma de se cobrar dívida fiscal é por meio de execução fiscal e, para tanto, basta que a Fazenda Pública instrua a petição inicial executiva com a CDA. Assim, o protesto não se enquadra no procedimento legal previsto para a cobrança da dívida ativa.” (AgrRg no Rec. Esp. 1.277.348, Relator Min. Cesar Asfor Rocha).

Nossa jurisprudência é tão volúvel quanto os nossos políticos. Se estes trocam de partido como nós de camisa, aquela muda ao que parece conforme os interesses de grupos organizados. No campo econômico, tais interesses são por todos conhecidos.

Mudou-se a jurisprudência sobre fianças, a permitir penhora de único imóvel do fiador. Atirou-se ao lixo o artigo 6º da Carta Magna, onde se afirma que a moradia é um dos direitos sociais, para atender ao lobby de imobiliárias e proprietários de imóveis.

De igual forma, a proibição da agiotagem e a limitação de juros caíram sob o peso dos interesses dos verdadeiros donos deste país, que são os donos do capital, as instituições financeiras que, diante de qualquer crise, sempre recebem lucros fabulosos. O parágrafo único do artigo 1º da Constituição, que Sobral Pinto declamou em memorável discurso — “Todo poder emana do povo…” — é hoje apenas peça de retórica!

Claro está que, se a CDA é por si só prova de inadimplência e pode ser executada sem mais formalidades, o protesto interessa apenas aos cartórios, verdadeiras minas de ouro, que já abocanharam boa parte das formas de promover justiça: divórcios, inventários, conciliações e, com o novo CPC, até o usucapião.

De tempos em tempos, vemos que os limites a que nos submetemos nesta coluna, para cuidar apenas de Justiça Tributária, quase se transformam em uma espécie de censura.

Em 30 de janeiro de 2015, escrevi artigo onde fui um pouco além dos limites desta coluna, eis que na noite anterior havia assistido na TV a um show de heavy metal.

Da música Justiça para Todos, assinalei algumas frases que me causaram muito impacto: "O martelo da Justiça te esmaga"; "A senhora Justiça foi violentada”; "Lobos poderosos cercam sua porta"; "Eu não posso acreditar no preço que nós pagamos" e "Nada pode nos salvar". Não é essa a Justiça que devemos aceitar. 

Mesmo com as diversas decisões judiciais reconhecendo a suposta legalidade do tal protesto de CDA, não podem os brasileiros se resignar com tal iniquidade.

Em decisão recente (8 de março), a 11ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, na Apelação 1005756-94.2015.8.26.0309, decidiu que:

“Em que pese o entendimento do Colendo Órgão Especial, não cabe o protesto em tela, por fundamento diverso, qual seja, o previsto no artigo 620, do CPC — Princípios da menor onerosidade ao devedor e da razoabilidade para o credor — A Fazenda Pública, já possui a prerrogativa de promover a execução fiscal pertinente com constrição judicial de bens do devedor — Inteligência da Lei nº 6.830/80 e do Código Tributário Nacional — O protesto da CDA inviabiliza a obtenção de crédito no sistema financeiro causando danos graves aos devedores fiscais. Recurso da FESP improvido”.

Claro está, portanto, ser ilegal o protesto de CDA.

Devemos ainda invocar o artigo 37 da Constituição, onde todos os poderes da República ficam obrigados a obedecer não só ao princípio da legalidade, mas também ao da moralidade.

Moral é relativo aos costumes. Trata-se de se proceder com justiça: ser correto, decente, honesto, íntegro, justo e probo. Em síntese, conforme as regras éticas e dos bons costumes. Moral é o conjunto dos princípios e valores de conduta do homem.

Se o credor da CDA pode executá-la sem protesto, esse ato serve apenas para prejudicar o devedor, para impedi-lo de exercer o direito do artigo 5º inciso XXXV da Constituição. Isso não é correto, decente, honesto, íntegro, justo ou ético.

Desde 7 de julho de 2014, encontra-se em andamento no Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.135, apresentada pela Confederação Nacional da Indústria. O relator atual é o ministro Roberto Barroso. Esperamos que a decisão seja conforme a lei e a moral. Se assim não for, é porque "a senhora Justiça foi violentada”. 

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    é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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