Opinião

Filhos desenvolvem consciência política ao acompanhar pais em votação

Autor

  • Lucas Andre Netto Cardoso

    é diretor na Secretaria de Administração da Prefeitura Municipal de Louveira (SP) mestrando em Direitos Humanos pela PUC-SP e bacharel em Direito pelas Faculdades de Campinas (Facamp).

12 de março de 2016, 7h08

Introdução
Tem sido recorrente nas eleições brasileiras discussão cujo deslinde ainda se encontra pendente de parâmetros objetivos: eleitores poderiam votar acompanhados de seus filhos?

A presente abordagem visa a discorrer sobre o tema problematizando a questão, sem ignorar entendimentos em sentido contrário (como já publicado nesta revista[1]), mas trazendo elementos capazes de informar a adoção de um posicionamento de acordo com os preceitos de um Estado Democrático de Direito.

Tudo isso tendo-se em consideração a influência que o direito à educação há de exercer para a formação de cidadãos, haja vista os deveres que incumbem ao Estado e à família, bem como as formas como a sociedade em geral pode, com isso, colaborar, visto que somente assim será possível trabalhar por um caminho para a efetivação da cidadania, com o essencial respeito à dignidade humana.

Entre os argumentos no sentido da absoluta impossibilidade de que os filhos menores acompanhem seus pais no momento do voto, elencam-se: i) a única hipótese de o eleitor ser acompanhado no momento do voto seria em decorrência de inviabilidade física de o fazer sozinho; ii) inexistiria permissão de seu acompanhamento por criança e por adolescente, ainda que seja filho; iii) a quebra do sigilo do voto pode gerar implicações penais; iv) caso haja o acompanhamento por adolescente, seria possível caracterizar-se ato infracional equiparado a crime (artigo 312 do Código Eleitoral); v) a insurgência do eleitor contra proibição do presidente da mesa quanto a seu acompanhamento por criança e adolescente pode caracterizar violação ao artigo 347 do Código Eleitoral (crime de desobediência eleitoral)[2].

No entanto, afigura-se, desde logo, absurdo — irrazoável[3], portanto — cogitar-se a prática de ato infracional pelo adolescente que acompanha seu pai no momento do exercício do sufrágio. Além disso, não se coaduna com o Estado Democrático de Direito, vedar-se, de pronto e em absoluto, que os pais possam votar acompanhados de seus filhos, até porque tal medida possui inequívoca aptidão a fomentar a cidadania, a formação de crianças e jovens e a criação de consciência política, a fim de que possam contribuir para os rumos da sociedade em que estão inseridos.

Estado Democrático de Direito e cidadania
A configuração do Estado brasileiro como Democrático de Direito é paradigmática, influenciando não somente o conteúdo jurídico que dele decorre, mas também e principalmente a sociedade a que visa conformar. Ao dissertar sobre a fórmula política do Estado Democrático de Direito, Willis Santiago Guerra Filho assevera que:

O primeiro artigo da Constituição de 88 define, assim, a República Federativa do Brasil como um Estado Democrático de Direito, e elenca os princípios sob os quais ela se fundamental. Todo o restante do texto constitucional pode ser entendido como uma explicitação do conteúdo dessa fórmula política, explicitação essa que, por mais extenso que seja esse texto, ainda é e sempre será uma tarefa inconclusa, além de ser uma tarefa de primordial importância (…).

Inicialmente, vale recordar, com Pablo Lucas Verdú, que “a fórmula política de uma Constituição é a expressão ideológica que organiza a convivência política em uma estrutura social”. Trata-se, portanto, do elemento caracterizador da Constituição, principal vetor de orientação para a interpretação de suas normas e, através delas, de todo o ordenamento jurídico[4].

Há de se ter em vista, ainda, que tal fórmula política abarca dois princípios fundamentais, quais sejam o princípio do Estado de Direito e o princípio democrático: “O Estado de Direito, portanto, atende primordialmente às exigências de legalidade, enquanto a democracia é um princípio de legitimidade, tendo aquela um caráter formal, cujo conteúdo é preenchido por este último”[5].

Os fundamentos do Estado Democrático de Direito pátrio são assinalados pelos incisos do artigo 1º da Constituição Federal, nos quais se compreendem: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. A cidadania, em sentido amplo, relaciona-se ao “reconhecimento do indivíduo como pessoa integrada na sociedade estatal”[6] e, em sentido estrito, ao direito de votar e de ser votado[7]. A irradiação da cidadania sobre a ordem jurídica e a realidade social possui estreita relação com a dignidade humana, considerada valor axial[8] de um Estado que se pretende Democrático de Direito.

A partir de tais elementos, cumpre-se discorrer, então, sobre os direitos de sufrágio e de voto, cotejando-os com os paradigmas normativos supraevidenciados, de modo a fornecer o conteúdo jurídico capaz de informar a possibilidade de que pais os exerçam acompanhados de seus filhos que não tenham capacidade eleitoral ativa.

Sufrágio e voto
Sufrágio e voto são termos comumente confundidos. A própria Constituição Federal não lhes confere tratamento uniforme, como se observa a partir do disposto em seus artigos 14, caput — sobre o sufrágio universal — e 60, parágrafo 4º, II — que dispõe ser o voto universal cláusula pétrea[9].

Ambos são direitos inseridos na esfera do Direito Eleitoral, que tutela, como bens jurídicos, “a democracia, a legitimidade do acesso e do exercício do poder estatal, a representatividade do eleito, a sinceridade das eleições, a normalidade do pleito e a igualdade entre os concorrentes”[10].

José Afonso da Silva compreende o sufrágio como “direito público subjetivo democrático”, “direito político fundamental nas democracias políticas”, ao passo que o voto se caracteriza como ato essencial para seu exercício, constituindo “sua manifestação no plano prático”[11].

No âmbito dos direitos humanos, há de se destacar que o direito de a pessoa tomar parte nos rumos de seu país foi consagrado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem em seu artigo XXI e reforçado pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos em seu artigo 25.

A Constituição Federal, em seu artigo 14, parágrafo 1º, prevê: i) a obrigatoriedade do voto para os maiores de 18 anos (inciso I do mencionado dispositivo); assim como ii) a facultatividade do voto para os maiores de 16 e menores de 18 anos (inciso II, alínea “c” do tipo constitucional em comento). Destarte, o ordenamento jurídico brasileiro reconhece capacidade eleitoral ativa àqueles maiores de 16 anos, sendo ela conceituada pelo Glossário Eleitoral disponível no portal do Tribunal Superior Eleitoral como “Reconhecimento legal da qualidade de eleitor no tocante ao exercício do sufrágio”[12].

Considerando-se, portanto, a dimensão do direito de sufrágio — sendo este capaz de condicionar a legitimidade da atuação em nome do Estado —, é relevante pontuar que seu exercício se dá por meio do voto, em cujas características se inserem a personalidade, a liberdade, a igualdade, assim como as qualidades de ser direto, secreto e periódico[13].

Quanto a eventual quebra do sigilo do voto — conceituado por José Afonso da Silva como “garantia constitucional de eleições livres e honestas”[14] —, é importante se proceder à diferenciação entre direitos e garantias propriamente ditas, para o que a compreensão de Paulo Bonavides[15] é elucidativa, evidenciando que “existe a garantia sempre em face de um interesse que demanda proteção e de um perigo que se deve conjurar”, apresentando-se como meio de defesa de um direito, mas com ele não se confundindo.

Enquanto se presta a defender o direito de voto de ameaças à liberdade com que deve ser exercido, o segredo consubstancia-se em verdadeira garantia. Como tal, prestando-se à consecução de suas finalidades — o livre exercício do direito de sufrágio —, não se vislumbra razão suficiente para que incida de modo absoluto a vedar que os pais levem seus filhos que não tenham capacidade eleitoral ativa às cabines de votação como exercício da cidadania, constituindo medida capaz de, desde cedo, fomentar na criança e no adolescente o desejo de participar dos destinos da sociedade em que estão inseridos.

Promoção da educação política
A Constituição Federal, em seu artigo 205, estabelece ser a educação direito de todos e dever do Estado e da família, devendo também a sociedade colaborar com sua promoção e desenvolvimento, preparando as pessoas para o exercício da cidadania.

Dalmo Dallari, ao discorrer sobre os princípios que orientam o direito de votar — possibilidade de agir livremente (autenticidade) e consciência da significação de seu ato —, observa caber aos governos democráticos a promoção da educação política do eleitorado, a fim de que se fomente a responsabilidade mediante a “divulgação sistemática de conhecimentos, por meio de programas escolares, e concedendo ao povo amplas possibilidades de exercício livre dos direitos políticos, aproveitando os efeitos educativos da experiência”[16].

É perceptível, na realidade brasileira, a urgência com que se impõe o preparo de pessoas capazes de decidir, de lutar e influir nos rumos da sociedade política, econômica, cultural e social.

Carolina Alves de Souza Lima é didática ao abordar a educação como direito humano, vindo a possibilitar o pleno desenvolvimento do ser humano — o que se dá inicialmente junto à família e que, posteriormente, é compartilhado na vida em sociedade —, proporcionando a formação da pessoa e preparando-a para o exercício da cidadania, mediante a reflexão e a crítica[17].

Conforme se nota a partir do próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, aqueles que ainda não podem votar em razão da idade — menores de 16 anos — são dotados de ampla proteção normativa, incumbindo ao Estado, à família e à sociedade a busca de soluções capazes de assegurar o livre desenvolvimento de sua personalidade, incluída a formação de consciência política.

Além disso, no que concerne a eventuais condutas atentatórias ao exercício do sufrágio, podem o Ministério Público, os partidos políticos e os poderes constituídos exercer ampla fiscalização, havendo mecanismos legais capazes de providenciar a adequada tutela dos bens jurídicos em questão — além dos crimes previstos nos artigos 299 a 301 do Código Eleitoral e no artigo 146 do Código Penal, a legislação prevê, entre outras, a possibilidade de ajuizamento de ação para investigação judicial eleitoral por abuso de poder (artigos 1º, I, d e h, 19 e 22, XIV, todos da Lei Complementar 64/90), ação por captação ilícita de sufrágio (artigo 41-A da Lei 9.504/97), ação por conduta vedada a agentes públicos (artigos 73 a 78 da Lei 9.504/97) e ação de impugnação de mandato eletivo por abuso de poder econômico, corrupção e fraude (artigo 14, parágrafo 10, da Constituição Federal).

Tais possibilidades se encontram à disposição das autoridades públicas para o combate ao cerceamento à liberdade no exercício do sufrágio. A democracia, a legitimidade e a sinceridade das eleições, assim como a representatividade e a normalidade do pleito, podem muito bem permanecer respeitadas sem que se anule por completo a possibilidade de que os filhos estejam presentes com seus pais em tal decisiva ocasião para o futuro político do país.Observados tais fatores, conclui-se que o acompanhamento dos pais por seus filhos menores que ainda não podem votar é medida apta a contribuir para a formação de sua personalidade, assim como para o desenvolvimento de sua consciência política, promovendo-se a consciência cívica da relevância de tal momento na condução do destino de sua comunidade. Afinal, como já assinalava Aristóteles, “o homem é naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade”[18].


[1] Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-out-24/sigilo-impede-eleitor-votar-acompanhado-crianca-adolescente. Acesso em 1º/dez/2014.
[2] SANTIN, Valter Foleto; GARCIA, Renato; NAKAI, Sandra Tamiko. Sigilo impede eleitor de votar acompanhado de criança e adolescente. Disponível em http://www.conjur.com.br/2014-out-24/sigilo-impede-eleitor-votar-acompanhado-crianca-adolescente. Acesso em 1º/dez/2014.
[3] “E esse teste da irrazoabilidade, conhecido também como teste Wednesbury, implica tão somente rejeitar atos que sejam excepcionalmente irrazoáveis. Na fórmula clássica da decisão Wednesbury: ‘se uma decisão […] é de tal forma irrazoável, que nenhuma autoridade razoável a tomaria, então pode a corte intervir’. Percebe-se, portanto, que o teste sobre a irrazoabilidade é muito menos intenso do que os testes que a regra da proporcionalidade exige, destinando-se meramente a afastar atos absurdamente irrazoáveis.” (SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais 798-2012: 23-50, p. 29).
[4] GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: RCS Editora, 2007, p. 15 a 17.
[5] GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria Processual da Constituição. 3. ed. São Paulo: RCS Editora, 2007, p. 156.
[6] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 36ª edição, revista e atualizada até a Emenda Constitucional 71, de 29.11.2012. São Paulo: Malheiros Editores, 2013, p. 106.
[7] GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 7. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2011, p. 6.
[8] GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria Processual da Constituição, cit., p. 183.
[9] GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Direito Eleitoral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 25.
[10] GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral, cit., p. 20.
[11] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, cit., p. 352, 358 e 359.
[12] Disponível em: http://www.tse.jus.br/eleitor/glossario/termos-iniciados-com-a-letra-c#capacidade-eleitoral-ativa. Acesso em 16/jul/2015.
[13] GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral, cit., p. 44 a 47.
[14] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, cit., p. 362 e 363.
[15] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 29ª ed. atualizada. São Paulo: Malheiros Editores, 2014, p.537 a 541.
[16] DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 189.
[17] SOUZA LIMA, Carolina. “O Direito à Educação e as suas Dimensões”. Comentários ao Artigo 14 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. P. 225 a 238. Em: Comentários ao Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Wagner Balera e Vladmir Oliveira da Silveira (coord.) / Mônica Bonetii Couto (org.). Curitiba: Clássica, 2013, p. 225 e 226.
[18] ARISTÓTELES. A política. Tradução de Nestor Silveira Chaves. 2ª ed. rev. Bauru, SP: EDIPRO, 2009, p. 16.

Referências bibliográficas
ARISTÓTELES. A Política. Tradução de Nestor Silveira Chaves. 2ª ed. rev. Bauru, SP: EDIPRO, 2009.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 29ª ed. atualizada. São Paulo: Malheiros Editores, 2014.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 7. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2011.
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GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: RCS Editora, 2007.
_________. Teoria Processual da Constituição. 3. ed. São Paulo: RCS Editora, 2007.
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SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais 798 – 2012: 23-50.
SOUZA LIMA, Carolina Alves de. “O Direito à Educação e as suas Dimensões”. Comentários ao Artigo 14 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. P. 225 a 238. Em: Comentários ao Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Wagner Balera e Vladmir Oliveira da Silveira (coord.) / Mônica Bonetii Couto (org.). Curitiba: Clássica, 2013.

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    é diretor na Secretaria de Administração da Prefeitura Municipal de Louveira (SP), mestrando em Direitos Humanos pela PUC-SP e bacharel em Direito pelas Faculdades de Campinas (Facamp).

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