Opinião

No pedido de prisão de Lula, torturaram Marx, Hegel e Nietzsche

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11 de março de 2016, 11h30

Não quero ser um “abutre epistêmico”, mas não dá para deixar de comentar o recente pedido de prisão preventiva do ex-presidente Lula. Antes de tudo, vou citar o jurista Pedro Serrano, que deixou claro, ao criticar os promotores signatários do pedido de preventiva, que o episódio representa um ponto fora da curva do Ministério Público de São Paulo. Deixemos isso como dado, em uma espécie de juízo sintético a priori kantiano, já que tantos filósofos foram citados nas referidas peças processuais. Minha crítica, portanto, vai blindada por esse juízo: não preciso bater na pedra para verificar que é dura. Ou seja: não preciso dizer que o MP-SP não é assim como os promotores fizeram transparecer.

Nas peças em liça, é possível perceber um conjunto de raciocínios teleológicos. Subjetividade na veia. Assim: tenho um juízo conclusivo; na sequência, procuro um modo de justificar aquilo que já sei (e que quero que aconteça). Às peças, aplica-se a minha aporia da “travessia da ponte”, que está em Verdade e Consenso: "Como é possível atravessar o abismo gnosiológico do conhecimento, chegar ao outro lado, para depois retornar e edificar a ponte… pela qual já passei?"

E já que os promotores citaram Nietzsche, trago à baila outra frase do filósofo: "Fatos não existem; só existem interpretações". Bingo. Para ele, tudo é interpretação. Niilismo. Têm razão, pois, os promotores, paradoxalmente, porque fatos (que fundamentem a prisão preventiva) não há; só há, mesmo, a interpretação (deles).

Peço desculpas pelas ironias, mas não posso deixar de me espantar. Talvez a ironia seja o melhor modo de criticar o pedido de preventiva (deixo a discussão da denúncia para outro artigo). Vinte e oito anos de Ministério Público me fizeram ver muita coisa. Inclusive a luta na constituinte para que o MP tivesse as garantias da magistratura. Porém, será que as conquistas foram postas na Constituição para que (alguns de) seus membros agissem sem responsabilidade política? Sem accountability? Basta pedir? Assim? E na moringa não vai água?

Supondo que o pedido de preventiva dos promotores vingue, cabe a pergunta: que fizemos com os requisitos do artigo 312 do CPP? Deixando Lula de lado, como explicar o pedido de prisão de dona Marisa? Como agiremos no dia seguinte? Direito não pode ser produto de desejos, paixões e ideologias. Mas não pode mesmo.

Os promotores dizem que todos são iguais perante a lei. De fato. Assim deve ser. No entanto, se isso é assim, a partir desse “precedente”, o MP-SP deverá pedir a prisão preventiva de toda e qualquer pessoa envolvida em delitos como os apontados na denúncia. Teríamos voltado aos tempos anteriores à Lei Fleury? Nem naquela época a prisão preventiva era manejada desse modo. Quer dizer que o ex-presidente e sua família devem ser presos porque ele (e o resto da família?) podem incitar à violência? De novo, o fator Minority Report? O que é isto, a ordem pública? O que é isto, o clamor popular? Quando procurador junto à 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, os desembargadores e eu colocávamos a mão em concha para ouvirmos o clamor das ruas, toda vez que esse argumento era esgrimido retoricamente, como um conceito ômnibus.

Não há muito o que falar. O pedido dos promotores fala por si. Confundir Engels com Hegel já seria suficiente para desqualificar a peça e oferecer uma denúncia por crime epistêmico. Sem considerar que o pedido vem recheado de argumentos ad hominem, confundindo Direito Penal do fato com Direito Penal do autor. Juízos subjetivos como os de que "a conduta do ex-presidente deixaria envergonhados Marx e Hegel" devem ir para a história… Para ensinar como não se deve fazer uma peça processual. Os promotores dizem que sua peça não é política. Pois é. Porém, por que a alusão à Marx e Engels (confundido com Hegel)? Não está nisso a maior prova de que estão agindo ideologicamente? Não quero imitar o analista de Bagé, com sua psicanálise galponeira, mas não está muito evidente isso?

Urgentemente, o Direito de Pindorama necessita dar uma parada para respirar. Fomos longe demais com voluntarismos e decisionismos. Está na hora de levar a sério a frase de que devemos levar o Direito a sério. Ele não é o que o juiz ou o promotor querem que seja. Não, não quero que você denuncie alguém com base na sua consciência ou no seu desejo político. Não, não quero que você decida conforme sua consciência. De novo, vou dizer — porque sofro de LEER — o que digo há 20 anos: eu, como cidadão, não quero saber o que você pensa — na sua linguagem privada — sobre a política, impostos, política etc. Isso eu lhe pergunto em um bar ou em uma confraternização. No fórum, na vida pública, quero apenas que você aja de acordo com a lei e a Constituição. Se você, juiz ou promotor, não consegue suspender seus pré-juízos, não pode ser um agente político do Estado. Não pago seu salário para que você substitua a lei pelos seus juízos políticos ou morais. Simples assim.

A culpa disso tudo é o modo com que conduzimos o Direito. Nos lambuzamos com a democracia. Achamos que estamos ainda nos tempos da Escola do Direito Livre. Faculdades que despejam analfabetos funcionais. Cursinhos que treinam alunos para quiz shows. Literatura básica usada nas aulas e em peças processuais que deveria ter uma tarja com a inscrição “o uso constante desse material fará mal à sua saúde mental”, como nas carteiras de cigarro. Eis os ingredientes para uma tempestade perfeita.

No entanto, polianamente (todo hermeneuta é otimista), penso que esse episódio pode ser benéfico. Serve de alerta para que paremos para refletir. Salvemos pelo menos a Constituição. E, a propósito, já que os signatários do pedido de preventiva invocaram, ainda que erradamente, o filósofo Hegel, há uma célebre frase dele, que pode ser aplicada por aqui: "Deutschland ist kein Staat mehr" (Alemanha não é mais um Estado). Pode até o Brasil estar carcomido pela má política e pela corrupção, mas não é a qualquer custo que iremos combater esses males. Sem o respeito às garantias constitucionais, aí sim daremos razão à frase de Hegel, de que o Brasil não é mais um Estado.

Aproprio-me de uma frase que não lembro de quem é: Deus morreu, Marx, Nietzsche e Hegel (sic) morreram, Elvis se foi… E, confesso, eu não estou me sentindo muito bem.

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