Direitos Fundamentais

A proteção dos animais e a legitimidade jurídico-constitucional da zoofilia

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11 de março de 2016, 19h14

Prezados leitores, depois de um período de repouso, retomamos agora a nossa coluna quinzenal, desta feita trazendo um tema altamente polêmico e, aparentemente, mesmo um tanto quanto surreal, como, aliás, o próprio título já evidencia. O mote que nos levou a enveredar por essa trilha — que diz respeito tanto ao Direito Ambiental (proteção da fauna) quanto aos direitos fundamentais do animal humano — foi uma recente decisão do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, proferida em 8 de dezembro de 2015. Nessa decisão, foi discutida a constitucionalidade da legislação alemã protetiva dos animais naquilo que reformada em julho de 2013, designadamente, em virtude da introdução de dispositivo sancionando (na condição de uma infração administrativa — Ordnungswidrigkeit), expressamente a utilização de animais para fins sexuais, para além de proibir a disponibilização de animais para práticas sexuais por parte de terceiros, coagindo os animais a comportamentos não típicos da respectiva espécie.

A decisão foi provocada mediante a interposição de reclamação constitucional (Verfassungsbeschwerde), movida por pessoas (do sexo masculino e feminino) que, em virtude da atração sexual que sentem por animais, impugnaram a alteração legislativa acima referida, por ofensiva à garantia do nulla poena sine legem (artigo 103, parágrafo 2º da Lei Fundamental da Alemanha), ou seja, da legalidade e tipicidade estrita, além de violadora de seu direito à autodeterminação sexual, deduzido do princípio da dignidade humana e do direito ao livre desenvolvimento da personalidade (artigo 1º c/c artigo 2º, parágrafo 1º da Lei Fundamental).

Com relação ao primeiro argumento, o Tribunal Constitucional afastou a impugnação por entender que a descrição levada a efeito pelo dispositivo legal impugnado circunscreve adequada e suficientemente o suporte fático mediante os elementos textuais da ação sexual (sexuale Handlung), obrigar/coagir (zwingend) e comportamento contrário ao da espécie (artwidrigen Verhaltens), todos acessíveis por meio da interpretação, com destaque para o termo ação sexual, já desenvolvido (concretizado) também pela jurisprudência.

Porém, a questão mais polêmica diz respeito à invocação, pelos autores, de seu direito à autodeterminação sexual, igualmente afastada, pois o Tribunal Constitucional entendeu não ter ocorrido violação de direitos fundamentais, pois o indivíduo é obrigado a tolerar medidas estatais que não resultem em violação do núcleo essencial de seu direito à autodeterminação existencial e desde que observados os critérios da proporcionalidade.

Argumentaram os juízes da 3ª Câmara do 1º Senado do Tribunal que a proteção do bem-estar dos animais por meio da proteção contra práticas sexuais dissonantes das características da respectiva espécie constitui um objetivo legítimo, ancorado tanto na legislação infraconstitucional protetiva dos animais quanto na norma constitucional definidora de uma tarefa estatal prevendo o dever estatal de proteção dos animais, a teor do artigo 20, alínea “a” da Lei Fundamental. Além disso, o legislador ordinário dispõe de ampla liberdade de ação no sentido de estabelecer o alcance da proteção dos animais, inclusive no que diz com práticas sexuais coercitivas e violadoras das características da espécie.

No mais, a medida legislativa impugnada harmoniza com as demais exigências da proporcionalidade, em especial pelo fato de o peso da intervenção não ser desproporcional em relação ao objetivo almejado. Com efeito, ainda de acordo com a argumentação do Tribunal Constitucional Federal, embora a medida legislativa interfira na autodeterminação sexual dos reclamantes, mas o suporte fático da norma legal apenas se perfectibiliza quando o animal é coagido à prática sexual que lhe é estranha enquanto espécie. Além disso, o legislador não se está a valer do Direito Penal, mas, sim, opera ao nível de uma mera infração administrativa, cuja persecução obedece ao princípio da oportunidade, recaindo no âmbito da discricionariedade vinculada da autoridade administrativa. Assim, é possível que em face de circunstâncias especiais o potencial lesivo da conduta seja tão baixo que uma persecução (e sanção) não se revele como cogente. Com isso (ainda o tribunal), o legislador pode partir da premissa de que o objetivo almejado com as disposições legais prevaleça em relação às concretas consequências da intervenção para os que por ela forem afetados.

Desde logo, embora sucinta, a decisão do Tribunal Constitucional da Alemanha ingressa em seara altamente polêmica, seja do ponto de vista jurídico, seja do ponto de vista da moralidade, merecendo por certo uma análise muito mais alentada do que a que se pode aqui levar a efeito, ainda que limitado o enfrentamento da questão aos aspectos constitucionais.

O que importa ser frisado, desde logo, é o fato de o tribunal ter conhecido da reclamação constitucional, admitindo, portanto, a violação, em tese, de direito fundamental dos autores da ação. Dito de outro modo e à míngua de fundamentação adicional da decisão, do julgado se pode inferir que, em princípio, as práticas sexuais com animais situam-se na esfera do âmbito de proteção do direito de personalidade, designadamente, do direito de autodeterminação sexual das pessoas humanas, remetendo a solução do problema, ao menos no que toca a essa vertente, a um juízo de ponderação com base nos critérios da proporcionalidade.

Assim, seguindo-se tal linha de entendimento, a proteção dos animais e o direito à autodeterminação sexual (por sua vez vinculado ao direito geral de personalidade) são, nessa esteira, submetidos, em caso de conflito, à lógica de uma “concordância prática” e, portanto, encontram-se sujeitos ao balanceamento judicial no controle dos atos legislativos, administrativos e judiciais quando se cuidar de recurso contra decisão judicial eventualmente invasiva de direitos fundamentais ou da proteção da fauna.  

Outro aspecto a considerar, ainda em caráter preliminar, é o fato de que o Tribunal Constitucional Federal alemão, ao que tudo indica, adotou no caso a teoria externa no que diz com o âmbito de proteção e os limites dos direitos fundamentais, no sentido de que em princípio o direito geral de personalidade e o direito à autodeterminação sexual agasalham em tese todos os comportamentos que lhes são referidos, estando, todavia, abertos a intervenções restritivas, que, por sua vez, hão de ser avaliadas do ponto de vista de sua legitimidade constitucional.

De qualquer sorte, mesmo nessa primeira aproximação, há que reconhecer que o caso é altamente controverso, assim como controversa a decisão do Tribunal Constitucional Federal, que, embora não no mesmo contexto, já se posicionou sobre a proteção dos animais no âmbito do conflito com outros direitos fundamentais ou bens jurídicos de estatura constitucional.

Outrossim, abstraindo a questão jurídica, assume relevo também a dimensão moral, vez que tal perspectiva igualmente se manifesta como problemática e demandaria um enfrentamento que aqui não é objeto de nossa atenção.

Como o problema aqui esboçado, a partir da decisão do Tribunal Constitucional Federal, não só quedam em aberto uma série de questões a serem discutidas, inclusive no que diz com a possibilidade (ou não) de recepção no Brasil de um entendimento no mesmo sentido, o que, à evidência, implica em adequada contextualização e harmonia com o marco normativo pátrio.

De qualquer sorte, por hoje o que se pretendeu foi apresentar o caso e desde logo lançar algumas considerações preliminares, de modo a que se possa, na próxima coluna, prosseguir no trato de tema tão atual e polêmico.

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    é professor titular da Faculdade de Direito e dos programas de mestrado e doutorado em Direito e em Ciências Criminais da PUC-RS. Juiz de Direito no RS e professor da Escola Superior da Magistratura do RS (Ajuris).

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