Opinião

Constituição proíbe que membro do Ministério Público seja ministro de Estado

Autor

  • Luiz Alberto dos Santos

    é advogado consultor legislativo do Senado mestre em Administração doutor em Ciências Sociais professor colaborador da Ebape/FGV e ex-subchefe de análise e acompanhamento de políticas governamentais da Casa Civil-PR (2003-2014)

8 de março de 2016, 17h12

A recente decisão adotada pela Justiça Federal em ação popular, em sede de liminar,  quanto à possibilidade de membro do Ministério Público assumir a função de Ministro de Estado, suscitou o reavivamento de debate que há anos vem gerando dúvidas sobre o exato teor e extensão das vedações estabelecidas no texto da Carta Magna de 1988.

O texto constitucional vigente trata do tema em duas passagens, que devem ser interpretadas sistematicamente, ou seja, em conjunto entre si e com o restante do texto constitucional. Mas, além disso, é preciso extrair a interpretação teleológica do texto constitucional, a fim de que se compreenda os desideratos do Constituinte originário.

A Carta Magna trata extensivamente do Ministério Público. No artigo 128, disciplina a composição da instituição Ministério Público, remetendo, no § 5º, à Lei Complementar da União e dos Estados estabelecer a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público, observadas, relativamente a seus membros, as garantias e vedações que, desde logo, estabelece.

Entre essas vedações, o texto da CF prevê, no inciso II, “d”, a impossibilidade de o membro do Ministério Púbico “exercer, ainda que em disponibilidade, qualquer outra função pública, salvo uma de magistério”.

No inciso II, “e”, previa, originalmente, a vedação de o membro do Ministério público “exercer atividade político-partidária, salvo exceções previstas na lei”, ou seja, remetia, nesse caso, à Lei a possibilidade de abrir exceção ao princípio de que a atividade político-partidária é vedada ao membro do Ministério Público.

Todavia, essa faculdade conferida ao legislador foi retirada pela EC 45, de 2004, que suprimiu a parte final, impedindo, assim, qualquer atividade político partidária por membro do Ministério Público.

Já o artigo 129 trata das funções institucionais do Ministério Público — ou seja, da instituição — e no seu inciso IX prevê que cabe a ele (instituição) “exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas”.

No segundo, caso, a lei pode atribuir, assim, ao Ministério Público, outras funções institucionais, que serão exercidas pela instituição, ou seja, no seu âmbito, através da atuação de seus órgãos e membros, mas que deverão ser compatíveis com a sua finalidade prevista no artigo 127 (defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis), vedando-se, desde logo, “a representação e a consultoria jurídica de entidades públicas”.

Vale registrar que, como cláusula temporária, o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias permitiu que, até que fosse aprovada a Lei Complementar, poderia o Ministério Público continuar a exercer a representação judicial da União, nos termos autorizados pelo artigo 126 da Constituição de 1967, com a redação dada pela EC 1, de 1969. Por força dessa situação, facultou, inclusive, nos termos do § 2º do artigo 29, que os então ocupantes do cargo de Procurador da República optassem entre as carreiras do Ministério Público Federal e da Advocacia-Geral da União. E, conforme o § 3º, poderiam, ainda, optar pelo regime anterior, no que respeita às garantias e vantagens, observando-se, quanto às vedações, a situação jurídica vigente antes de 5 de outubro de 1988.

Com a entrada em vigor da Lei Complementar 73, que estruturou a Advocacia-Geral da União, em 1993, passou a ser plenamente eficaz a vedação, ou seja, mesmo o exercício de função que até então era legalmente autorizada, deixou de sê-lo.

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), órgão criado a partir da Emenda Constitucional 45/2004, editou em 20 de março de 2006 a Resolução 5, onde expressamente previa, no artigo 1º, que estariam proibidos de exercer atividade político-partidária os membros do Ministério Público que ingressaram na carreira após a publicação da Emenda 45/2004.

Definia, ainda, no seu artigo 2º, que os membros do Ministério Público estariam proibidos de exercer qualquer outra função pública, salvo uma de magistério, ressalvados os membros que integravam o Parquet em 5 de outubro de 1988 e que tenham manifestado a opção pelo regime anterior.

Por fim, o artigo 3º expressamente previa que o inciso IX do artigo 129 da Constituição não autoriza o afastamento de membros do Ministério Público para exercício de outra função pública, senão o exercício da própria função institucional.

E o artigo 4º fixava o entendimento de que o artigo 44, parágrafo único, da Lei 8.625/93 não autoriza o afastamento para o exercício de outra função, vedado constitucionalmente. Declarava, ainda, inaplicáveis as leis orgânicas estaduais que autorizavam o afastamento de membros do Ministério Público para ocuparem cargos, empregos ou funções públicas, por contrariarem expressa disposição constitucional, “o que desautoriza sua aplicação, conforme reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal”.

Contudo, sem que tenha havido mudança quer no texto da Constituição, quer na interpretação do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, em 2011 — cinco anos depois — o CNMP adotou a Resolução 72, de 15 de junho, em que revogou os artigos 2º, 3º e 4º da Resolução 5/2006.

Segundo os “considerandos” desse ato, tal deliberação se dava porque “a interpretação sistemática dos artigos 128, § 5º, II, "d" e 129, IX, da Constituição Federal tem gerado interpretações diversas, dentre as quais a que entende ser possível o afastamento do membro do Ministério Público para o exercício de outro cargo público”, e que “não é conveniente a expedição de ato regulamentar restritivo de direito em matéria controvertida, merecendo a matéria uma discussão mais aprofundada”. Finalmente, apontava a “possibilidade de alteração do entendimento jurisprudencial” bem como do próprio CNMP diante da análise de novos argumentos.

Assim, ao teor dessa nova norma, permanece vedado o exercício da atividade político-partidária aos membros que ingressaram após 5 de outubro de 1988, mas deixa de haver a vedação expressa para o exercício de funções administrativas e cargos públicos no Poder Executivo. Contudo, o CNMP não chega a disciplinar positivamente a matéria, ou seja, não autoriza, expressamente, o exercício dessas funções por quaisquer membros do Ministério Público.

No âmbito do STF, o tema foi enfrentado em diversas situações. Destacam-se, em particular, as decisões nas ADIs 2.084, 2.534, 2.622, 2.794, 3.574:

ADI 2084 / SP – SÃO PAULO    Relator:  Min. ILMAR GALVÃO
Julgamento:  02/08/2001           Publicação: DJ 14-09-2001 PP-00049

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTS. 170, V E PARÁGRAFO ÚNICO; E 224, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI COMPLEMENTAR N.º 734/93, DO ESTADO DE SÃO PAULO (LEI ORGÂNICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL). ALEGADA OFENSA A DISPOSITIVOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Interpretação conforme à Constituição dada ao art. 170, V, da Lei Complementar nº 734/93, para esclarecer que a filiação partidária de representante do Ministério Público paulista somente pode ocorrer na hipótese de afastamento das funções institucionais, mediante licença e nos termos da lei, de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Interpretação da mesma natureza dada ao art. 170, parágrafo único, da lei em apreço, para determinar que a expressão "o exercício de cargo ou função de confiança na Administração Superior" seja entendida como referindo a Administração do próprio Ministério Público. Declaração de inconstitucionalidade da expressão "e XVIII deste artigo, bem como a prevista no art. 221 desta lei complementar, se o fato ocorreu quando no exercício da função", contida no parágrafo único do art. 224 da Lei Complementar nº 734/93. Ação direta parcialmente procedente, na forma explicitada.

ADI 2534 MC / MG – MINAS GERAIS – Rel. Min. Mauricio Corrêa
Julgamento:  15/08/2002           Publicação: DJ 13-06-2003 PP-00008

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA CAUTELAR. LEI COMPLEMENTAR DO ESTADO DE MINAS GERAIS. ORGANIZAÇÃO DO PARQUET ESTADUAL – REQUISIÇÃO DE SERVIDORES PÚBLICOS PELO PROCURADOR-GERAL. MATÉRIA DA COMPETÊNCIA DO GOVERNADOR. PRERROGATIVAS DE FORO. EXTENSÃO AOS MEMBROS INATIVOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO. INADMISSIBILIDADE. FILIAÇÃO PARTIDÁRIA, DISPUTA E EXERCÍCIO DE CARGO ELETIVO. NECESSIDADE DE LICENÇA PRÉVIA. AFASTAMENTO PARA O DESEMPENHO DE FUNÇÕES NO EXECUTIVO FEDERAL E ESTADUAL. IMPOSSIBILIDADE. (…)

3. A filiação político-partidária, a disputa e o exercício de cargo eletivo pelo membro do Ministério Público somente se legitimam acaso precedida de afastamento de suas funções institucionais, mediante licença. Precedentes. Interpretação conforme a Constituição dos dispositivos da norma legal que regula a matéria. (…)

5. O afastamento de membro do Parquet para exercer outra função pública viabiliza-se apenas nas hipóteses de ocupação de cargos na administração superior do próprio Ministério Público. Inadmissibilidade da licença para o exercício dos cargos de Ministro, Secretário de Estado ou seu substituto imediato. Medida cautelar deferida em parte.”

ADI 2622 / RO – RONDÔNIA – Relator:  Min. CEZAR PELUSO (Presidente)
Julgamento:  10/11/2011           Publicação: 16-02-2012

EMENTAS: 1. INCONSTITUCIONALIDADE. (…) 2. Art. 100, inc. II, alínea “f”, da mesma Constituição. Membros do Ministério Público. Proibição para ocupar qualquer cargo a título demissível ad nutum. Inadmissibilidade. Impossibilidade de alcançar cargos da administração da própria instituição. Interpretação conforme para esse fim. Ação julgada, em parte, procedente. Precedente. Não pode norma de Constituição estadual proibir nomeação de membro do Ministério Público para cargo de confiança que integre a administração da própria instituição.” (grifo nosso)

ADI 2794 / DF – DISTRITO FEDERAL – Relator:  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE
Julgamento:  14/12/2006           Publicação: DJ 30-03-2007 PP-00068

EMENTA: (…) IV. Atribuições do Ministério Público: matéria não sujeita à reserva absoluta de lei complementar: improcedência da alegação de inconstitucionalidade formal do art. 66, caput e § 1º, do Código Civil (L. 10.406, de 10.1.2002).

1. O art. 128, § 5º, da Constituição, não substantiva reserva absoluta à lei complementar para conferir atribuições ao Ministério Público ou a cada um dos seus ramos, na União ou nos Estados-membros.

2. A tese restritiva é elidida pelo art. 129 da Constituição, que, depois de enumerar uma série de "funções institucionais do Ministério Público", admite que a elas se acresçam a de "exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas".

3. Trata-se, como acentua a doutrina, de uma "norma de encerramento", que, à falta de reclamo explícito de legislação complementar, admite que leis ordinárias – qual acontece, de há muito, com as de cunho processual – possam aditar novas funções às diretamente outorgadas ao Ministério Público pela Constituição, desde que compatíveis com as finalidades da instituição e às vedações de que nelas se incluam "a representação judicial e a consultoria jurídica das entidades públicas". (…)”[1]

ADI 3574 / SE – SERGIPE  Relator:  Min. RICARDO LEWANDOWSKI
Julgamento:  16/05/2007           Publicação: DJe-028  01-06-2007

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI COMPLEMENTAR DO ESTADO DE SERGIPE. MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. EXERCÍCIO DE OUTRA FUNÇÃO. ART. 128, § 5º, II, d, DA CONSTITUIÇÃO. I. O afastamento de membro do Parquet para exercer outra função pública viabiliza-se apenas nas hipóteses de ocupação de cargos na administração superior do próprio Ministério Público. II. Os cargos de Ministro, Secretário de Estado ou do Distrito Federal, Secretário de Município da Capital ou Chefe de Missão Diplomática não dizem respeito à administração do Ministério Público, ensejando, inclusive, se efetivamente exercidos, indesejável vínculo de subordinação de seus ocupantes com o Executivo. III. Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade dos itens 2 e 3 do § 2º do art. 45 da Lei Complementar sergipana 2/90."[2]

A jurisprudência da Corte Suprema, assim, é coerente e incisiva quanto à vedação de que a lei possa ampliar de forma incondicionada o exercício das funções institucionais do Ministério Público, assim como de que o membro do Ministério Púbico exerça a função de Ministro, Secretário de Estado ou do Distrito Federal ou Secretário de Município, em relação à qual, tampouco, houve alteração — para mais ou para menos — a partir da EC 45/2004. Note-se que o mais recente julgado da Corte, de novembro de 2011, é posterior à edição da Resolução 72 de 2011, do CNMP, mas reiterou a jurisprudência até ali firmada pelo Tribunal.

Merece ser transcrito, para o entendimento da posição do STF, o teor do voto do Relator, ministro Maurício Corrêa, na ADI 2.534:

“19. De fato, a Carta de 1988 veda ao membro do Parquet o exercício de qualquer outra função pública, ainda que em disponibilidade, salvo uma de magistério. A abrangência da vedação torna induvidosa sua aplicação a todo e qualquer cargo público, por mais relevantes que se afigurem os de Ministro e Secretário de Estado.

20. De registrar-se que, em face das sensíveis alterações na função institucional reservada ao Parquet, a partir da Constituição vigente foram conferidas inúmeras prerrogativas aos seus membros e ao mesmo passo impostas várias vedações, tudo com o objetivo de garantir isenção e independência à sua atuação, tal como ocorre com a magistratura. Tão profundas foram as modificações que o § 3° do artigo 29 do ADCT-CF/88 facultou aos então procuradores e promotores a possibilidade de optar pelo regime anterior ao que estava se implantando.

21. Este Tribunal, ainda na ADI 2084, analisando questão análoga, decidiu que o "exercício de cargo ou função de confiança na Administração Superior" pelos membros do MP deve ser entendida como exercício na administração superior do próprio Ministério Público apenas, e não na administração pública como um todo, o que exclui a possibilidade de ocupação dos cargos em apreço.”

Já no caso da ADI 3.457, a manifestação da Advocacia-Geral da União, citada pelo voto do relator, não deixava dúvidas sobre a vedação:

“embora seja relevante o argumento de que os membros do Ministério Público, em virtude de sua capacidade e conhecimento, poderiam contribuir com a Administração através do exercício de cargos superiores, tal hipótese não possui amparo no ordenamento jurídico. Ademais, o fato de existirem membros do Parquet atuando como Secretários de Estado, em diversas unidades da Federação, não é fundamento para se legitimar a prática reiterada de inconstitucionalidades.”

Assim, concluía o relator pela inconstitucionalidade da norma atacada:

“Destarte, constato que os cargos de Ministro, Secretario de Estado ou do Distrito Federal, Secretario de Município da Capital ou Chefe de Missão Diplomática, enumerados nos dispositivos ora impugnados, evidentemente não dizem respeito a administração do Ministério Público, ensejando, inclusive, se efetivamente exercidos, indesejável vinculo de subordinação de seus ocupantes com o Executivo, colocando em risco um dos mais importantes avanços da Constituição Federal de 1.988, precisamente a autonomia do Ministério Público.”

A tese reiteradamente adotada pelo STF é consentânea com o que o Constituinte Originário considerou aspecto relevante para estabelecer as garantias e vedações aos membros do Ministério Público.

A Assembleia Nacional Constituinte, em 12 de abril de 1988, deliberou sobre o tema. Na oportunidade, o texto do substitutivo então apresentado por parlamentares de diferentes partidos, consignava as garantias e vedações aos membros do Ministério Público, na forma que veio a ser promulgada em 5 de outubro. O texto foi aprovado por 350 Constituintes, de um total de 383 votantes.

A seguir, na mesma sessão, foi submetida a votos a Emenda 123, do Deputado José Carlos Grecco, que visava permitir o exercício, por membro do Ministério Público, além do magistério, de “cargo administrativo de excepcional relevância, não podendo, durante o afastamento, ser promovido se não por antiguidade.”

Ao encaminhar o voto contrário à proposta, o Deputado José Costa assim se manifestou:

“Sr. Presidente, o que queremos para o Ministério Público? No art. 156 queríamos transformar o Ministério Público, hoje vulnerável e dependente numa instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, com a incumbência de defender a ordem jurídica, o regime democrático, os interesses sociais, individuais e indisponíveis.

Para muitos o Ministério Público teria até virado um quarto Poder. Demos ao Ministério Público, para que desempenhasse essas relevantíssimas funções no interesse maior da sociedade e até da democracia, do estado de direito democrático que pretendemos construir, amplas garantias constitucionais.

Pois bem, demos aos membros do Ministério Público a mesma amplitude das garantias que demos à Magistratura: a garantia da vitaliciedade; a garantia da inamovibilidade; a garantia da irredutibilidade de vencimentos. A essas garantias deveria corresponder a contrapartida das vedações, dos encargos. Em verdade, essas garantias são privilégios funcionais só justificados em função do relevantíssimo papel que cabe na sociedade ao Ministério Público.

Ora, Sr. Presidente, Sras , Srs. Constituintes, agora se pretende que o Ministério Público, contrariamente ao que acontece com o juiz, possa desempenhar funções administrativas. É necessário que o Ministério Público esteja absolutamente separado da Administração.

(…)

Precisamos de um Ministério Público tal como está configurado aqui. Para muitos é até um quarto Poder, mas a sociedade precisa da ação e do desempenho desse Ministério. Todavia, às prerrogativas, privilégios e garantias que estamos dando ao Ministério Público devem corresponder vedações. Esta é a contrapartida, e ele deve ficar absolutamente separado da administração.”

O relator geral da Constituinte, senador Bernardo Cabral, expressou a seguinte posição:

A mens legis que norteou o posicionamento do órgão do Ministério Público no Projeto que há pouco foi aprovado, no respectivo Capítulo, não pode condescender com a presente emenda, em que pese a excelente sustentação feita pelo eminente Constituinte Roberto Jefferson [sic][3]. Por que, Sr. Presidente? Porque o Ministério Público está sendo colocado, em importância, ao lado da magistratura. E é evidente que qualquer desvio de função comprometeria essa independência.

Sei, Sr. Presidente, de conhecimento próprio, e poderia citar o Dr. Fleury, que é do Ministério Público e hoje Secretário de Segurança de São Paulo, mas não posso com uma exceção justificar, convalidar a regra que norteou o Projeto.

Por esta razão, Sr. Presidente, a relatoria opina pela rejeição da emenda.”

A emenda, então, foi rejeitada, com o voto contrário de 268 constituintes, entre 367 presentes.

Tal histórico fortalece a tese de que não existe margem de interpretação possível para que o membro do Ministério Público possa exercer a função de Ministro de Estado, ou de Secretário de Estado ou de Município, senão renunciando ao cargo de membro, ou dele se desligando mediante aposentadoria voluntária por tempo de contribuição ou idade.

O fato de que há 30 ou mais membros do Ministério Público, atualmente, afastados para exercer cargos dessa espécie, ainda que com base em leis estaduais, não convalida a inconstitucionalidade e irregularidade dessas situações, como assinalado, em 2007, pela Advocacia-Geral da União.

A inexistência de mudança de orientação jurisprudencial da Suprema Corte — à luz da própria natureza dos fatos, e da inocorrência de qualquer mudança na ordem constitucional seja para afastar ou ampliar a restrição (sendo que, no caso de mandatos políticos, a EC 45/2004 ampliou as restrições antes existentes) — permite, apenas, argumentar em favor da tese de que àqueles que tenham ingressado antes da promulgação da CF de 1988 e optado pelo regime anterior se poderia permitir tal benefício, como de resto consignava a Resolução 5/2006 do CNMP.

Não deixa de ser criativa a tese, adotada em seu voto pela relatora da proposta de Resolução que foi aprovada em 2011 pelo CNMP, conselheira Claudia Chagas, de que seria possível interpretação sistemática do artigo 128, § 5°, II, "d" com o disposto no artigo 129, IX, da Lei Maior, para concluir que “não há vedação para que membro do Ministério Público exerça outra função pública, desde que afastado de suas atribuições na instituição de origem”, bem como que “a Constituição Federal proíbe apenas o exercício concomitante do cargo de Promotor de Justiça com outro cargo público” (Processo CNMP 0.00.000.000116/2011-18, p. 01), sob a justificação de que o artigo 129, IX, não tem paralelo no Poder Judiciário.

Com efeito, é de difícil sustentação a tese de que o artigo 129, IX, que se dirige à instituição — permitindo que a lei lhe confira outras funções institucionais, desde que compatíveis com seus objetivos — possa justificar que o membro do Ministério Público possa dele se afastar, transitoriamente, para exercer função estranha à instituição. O que parece ser o objetivo do Constituinte, ao assim redigir o inciso, foi impedir o alargamento das funções da Instituição, que, por sua proximidade histórica com o Poder Executivo, poderia passar a ser asfixiada com atividades não expressamente decorrentes do disposto no artigo 127, ou mesmo incompatíveis com o artigo 129, caput, desviando-se, assim, desses.

Também se mostra frágil o argumento de que a autorização para que membro do Ministério Público possa afastar-se para exercer cargo elevado no Governo Federal ou Estadual não coloca o Ministério Público em situação de submissão ou de subordinação, mas contribui para o aprimoramento das políticas públicas, visto que “o membro se afasta e a instituição permanece íntegra e autônoma para o cumprimento de suas funções institucionais” (voto da relatora conselheira Cláudia Chagas, Processo CNMP 0.00.000.000116/2011-18, p. 09).

Sob esse prisma, a instituição passa a depender, apenas, da decisão de seus membros — ao recusarem tais oportunidades — para manter íntegra a sua condição de atuação autônoma e ininterrupta. Se o membro “se afasta” ele deixa, por definição, de exercer as suas atribuições e dar prosseguimento às atividades que vinha desenvolvendo, materializadoras das funções institucionais. Ainda que outro membro possa assumir tais atividades, há claros prejuízos à sua continuidade.

Ademais, sob a lógica da autonomia do membro do Ministério Público, é inegável que a simples perspectiva de ocupação de cargos importantes no Poder Executivo — seja estadual ou Federal — pode exercer atrativo sobre os mesmos, reduzindo, em alguns casos, a sua “combatividade” e disposição de enfrentamento dos Governantes, quando presentes as situações que dariam vezo a sua atuação como Fiscal da Lei, e em defesa dos interesses dos cidadãos.

Todavia, a vedação constitucional afasta, também, a possibilidade do emprego desse meio de “cooptação” — o convite para cargos executivos de destaque — como forma de impedir, materialmente, a continuidade da atuação do membro do Ministério Público em inquérito ou ação judicial sob sua responsabilidade. Ainda que situação dessa espécie nunca tenha explicitados os seus propósitos, não é totalmente impossível que possa ocorrer tal cooptação e impedimento da ação ministerial por meio da oferta de convite para a investidura em cargo importante na Administração Pública, cuja recusa é improvável.

Se a mesma possibilidade ocorresse quanto aos magistrados, risco ainda maior poderia ocorrer. Em ambos os casos, o princípio da inamovibilidade estaria comprometido, fragilizando-se a atuação tanto do Judiciário quanto do Ministério Público. E, por não ter caráter de “punição”, mas de “prêmio”, resulta ainda mais insidiosa a hipótese de que possa o membro do Ministério Público deixar de exercer sua função precípua para atender a convite para cargo de relevo na Administração, mas estranho ao Ministério Público.

Já quanto à ampliação das funções institucionais do Poder Judiciário, a ausência dessa permissão à lei, no plano federal, não afasta o que estabelece o artigo 125, § 1º, que remete às Constituições dos Estados dispor sobre as competências dos tribunais, observada, porém, a compatibilidade com os princípios da Constituição Federal.

O que o texto constitucional almeja, assim, é tanto impedir o afastamento do membro do Ministério Público, que deixa de exercer o seu cargo para exercer outra função, sem desligar-se funcionalmente da instituição, quanto o exercício de qualquer outra função concomitante ao mesmo, mediante, por exemplo, exercício de cargos acumuláveis. Por isso, o mesmo artigo 128 veda, também, o exercício da advocacia e até mesmo a mera participação em sociedade comercial (alíneas b e c do inciso II). Trata-se de situação que, por ser vinculada ao exercício do cargo pelo membro, nada tem a ver com o inciso IX do artigo 129, que remete à lei dispor sobre as funções da instituição.

Assim, observando-se a questão sob o prisma das duas possibilidades interpretativas abordadas nesse exame — sistemática e teleológica — e igualmente à luz da firme jurisprudência do STF, e à míngua de fatos novos no plano jurídico-constitucional, inexiste hipótese de conciliação entre o interesse pessoal dos membros do Ministério Público de ocuparem espaços decisórios na Administração Pública, até mesmo como forma de “defesa de interesses” da instituição ou da categoria que integram, e os limites estabelecidos pela Constituição de 1988, em contrapartida às relevantes e necessárias garantias que lhes foram atribuídas para o adequado exercício de suas indispensáveis funções no regime democrático brasileiro.

Inexiste, assim, “evolução interpretativa”, mas verdadeira guinada na interpretação adotada pelo Conselho Nacional do Ministério Público que revela o atendimento de interesse quiçá corporativo, mas em detrimento da mens legis e da própria origem do comando constitucional que veda, ao membro do Ministério Público, o exercício de cargos e funções no âmbito do Poder Executivo, ressalvadas as situações permitidas pela própria Carta Magna em relação aos que ingressaram no Parquet anteriormente à sua vigência.


[1] No mesmo sentido: MS 26.698, Rel.. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 28-2-2008, Plenário.

[2] No mesmo sentido: RE 742.055, rel. min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 10-6-2013, DJE de 14-6-2013; MS 26.595, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 7-4-2010, Plenário, DJE de 11-6-2010; ADI 3.298, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 10- 5-2007, Plenário, DJ de 29-6-2007.

[3] O encaminhamento a favor da Emenda foi feito pelo Dep. Roberto Rollemberg, do PMDB de São Paulo, que enfatizou em sua argumentação: “Sr. Presidente, Srs. Constituintes, não é admissível que se exclua a possibilidade da utilização dos representantes do Ministério Público em função de alta relevância, porque é absolutamente coerente e econômico para o Estado se utilizar figuras, de representação e de responsabilidade inerentes à sua função no Ministério Público, nos cargos de alta relevância. Funcionário público, em função pública, em cargo de alta relevância é coerente, é econômico, é democrático e, sobre tudo, uma segurança, porque, além da responsabilidade que vai representar e assumir, tem ele a representatividade e a responsabilidade de membro do Ministério Público. Portanto, somam-se duas responsabilidades de melhor forma de atender à segurança, aos cargos, às funções públicas. É exatamente a utilização desse setor do funcionalismo de alto gabarito, concursado e efetivamente respeitado pela comunidade.”

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  • Brave

    é advogado, especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (Enap) e mestre em Administração e Doutor em Ciências Sociais (UnB). Consultor Legislativo do Senado Federal. Ex-subchefe de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil da Presidência da República.

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