Opinião

Ministério Público amplia cada vez
mais atribuições

Autor

  • Eloisa Arruda

    é secretária de Direitos Humanos e Cidadania da cidade de São Paulo professora de Direito da PUC-SP e procuradora de Justiça aposentada do Ministério Público de São Paulo.

8 de março de 2016, 10h23

Em 1988, nos trabalhos desenvolvidos pela Assembleia Nacional Constituinte, havia forte vontade política para escrever a história de um novo Ministério Público. Era grande o entusiasmo com os resultados obtidos por promotores de Justiça na proteção ao meio ambiente lesado, aos direitos do consumidor e a outros direitos difusos desde a edição, então recente, da lei de ação civil pública.

Concebeu-se, assim, uma instituição fortalecida, com a marca da independência. Conferiu-se autonomia funcional aos integrantes da carreira, com lógica clara. Se o Ministério Público já estava fazendo um trabalho de ponta em um modelo ultrapassado, o que não faria se tivesse autonomia assegurada na Constituição? E, renovada a Instituição, nasceram batalhas homéricas contra a corrupção. Multiplicaram-se, em todo o país, as investigações criminais contra o colarinho branco. O poder político, que havia sobrevivido por séculos, era agora questionado, afrontado, como nunca havia sido desde a época da colônia.

Tais transformações foram a mola propulsora das grandes investigações, como as que ocorrem nos dias atuais (Lava jato, mensalão, caso Celso Daniel entre tantas outras). Os promotores e procuradores, em investigações antes inexistentes, queriam — e agora buscam — saber o destino das verbas públicas dado que foram descobrindo, incrédulos, que em seguidos desvios elas sobravam em mãos de gente inescrupulosa e, ao mesmo tempo, faltavam na mesa do brasileiro, acostumado com uma trajetória de penúria e dificuldades.

Aos poucos os membros da instituição foram multiplicando as frentes de trabalho. O novo promotor de Justiça, bastante diferente do promotor público do passado, cuidava, agora, de investigar e propor as ações necessárias. Ao mesmo tempo, não descuidava das antigas obrigações, fiscalizando determinadas atividades e fazendo aparecer o Ministério Público em um sem número de atividades, entre o fazer o tradicional trabalho e cuidar das novas propostas. Ao mesmo tempo, mergulhava mais e profundamente, no campo da investigação criminal, a ponto de incomodar e ter o novo modelo questionado no Supremo Tribunal Federal. Enfim, ano após ano, foram sendo agregados novos conceitos.

A trajetória de sucesso permitiu colocar o Ministério Público no centro da investigação, ampliando sua atuação de qualidade para muito além do só ajuizamento das ações. O promotor de Justiça do Século XXI incorporou atribuições muito modernas em favor da população. Hoje, ao lado de tudo o que já fazia ele também cuida da proteção ao patrimônio público e social, trabalha nas frentes contra a improbidade administrativa de políticos, age de braços dados com a sociedade, desenvolvendo metas de inclusão social, lutando em favor da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa com deficiência, na defesa do meio ambiente, em favor do consumidor, no enfrentamento do tráfico de drogas, sem perder de vista a necessidade de assistência ao consumidor, ao dependente químico, marcando presença também nas diretrizes gerais da habitação e urbanismo, no novo conceito de cidades e evoluindo em ações propositivas de uma Instituição em tudo preocupada com a proteção aos Direitos Humanos e ao respeito ao princípio da Dignidade da Pessoa, bens maiores de uma Constituição renovada.

Com tantas e tão importantes atribuições, está, agora, na encruzilhada de sua existência. Precisa rever, necessariamente, seu papel para as próximas décadas. Sim, porque não pode dormir em berço esplêndido, acreditando que o modelo trazido em 1988 — e lá se vão três décadas — irá lhe assegurar modernidade suficiente para um milênio. Não irá. A Instituição é tão móvel quando a mobilidade da própria sociedade que ela representa.

Hoje, há mais a ser feito. A justiça negociada já se desenha como definitiva, na perspectiva da incorporação de uma moderna delação premiada no processo penal, em tudo compatível com as melhores experiências internacionais de combate ao crime organizado. É a incorporação do plea bargaining dos americanos. A infiltração de agentes, o cruzamento de dados bancários e fiscais, relativizando o direito à intimidade, ao lado do bloqueio e sequestro de bens de origem ilícita ou duvidosa apontam para a necessidade de uma Instituição dinâmica e antenada com as dificuldades e mazelas de seu tempo.

O promotor de Justiça da nossa era não pode esperar que a verdade chegue pronta em sua frente de trabalho. Absolutamente. Precisa encontrar forças para, rompida a tradição do trabalho em gabinetes, interagir com a sociedade, perseguir a boa prova (nas áreas criminal e cível), investigar por excelência, para reunir evidências que permitam um investimento sério em resolução de conflitos sempre e quando possível ou em ações penais e civis de resultados. Deve avançar para uma atuação cada vez mais preventiva, hoje distante de nossa realidade. Não pode, por exemplo, ver a imprensa divulgar ano após ano, gráficos estatísticos de aumento de criminalidade e ausência de políticas públicas destinadas a uma série de direitos fundamentais nas diversas cidades do país, sem participar da discussão na formulação de tais políticas ou ao menos cobrá-las de forma mais rígida. O Ministério Público é protagonista de transformação social. É o seu papel preponderante. É a sua alma moderna.

De outra parte, a instituição precisa de uma segunda tnstância também moderna. Os procuradores que atuam diretamente nos tribunais precisam de uma perspectiva que incorpore o Ministério Público da nossa época. Se fomentar uma atuação mais madura poderá conceber a criação de Câmaras de Atuação Especial em várias frentes. No enfrentamento do crime organizado, no combate à improbidade e na preocupação contra os crimes que afetam a ordem econômica e tributária. Tais câmaras, dinâmicas, renovariam a capacidade e o esforço de Procuradores de Justiça, viabilizando uma atuação integrada, justamente no momento de maior aprofundamento profissional. A perspectiva é em tudo superior ao atual modelo de atuação.

Em São Paulo, de onde escrevemos, a própria chefia da instituição precisa ser rejuvenescida. Precisa incorporar, de forma definitiva, modelo de gestão profissional, oxigenado, que viabilize a condução de seus membros, sem sobressaltos, ao limiar de uma nova era. A exemplo do que já acontece em vários Estados da Federação, o Ministério Público daqui precisa ser comandado por jovens procuradores e promotores. É inarredável a necessidade de participação da primeira instância nos rumos e no comando da instituição. Um Ministério Público com a marca da independência não pode focar um modelo hierarquizado, incompatível com a sua própria vocação constitucional. A democracia do nosso tempo pede que os ares do comando também sejam revistos.

O projeto em construção, que traduz a legítima aspiração de grande parte da carreira, com quem tenho convivido ao longo de quase noventa visitas diferentes desde dezembro do ano passado, em todos os pontos do Estado, é o de um Ministério Público renovado para continuar a serviço do povo. É hora de aperfeiçoar e aprofundar o debate sobre ele. Não defendo um projeto pessoal de poder. Nem defendo a permanência prolongada de um grupo, o que contraria a impessoalidade na administração pública e destrói a necessidade de alternância. Defendo, sim, a transposição, segura, serena, porém firme e combativa, do Ministério Público do passado, para aquele que, em futuro próximo, estará aparelhado para proteção da sociedade, focadas as necessidades do nosso tempo. Sigamos juntos nessa jornada.

*Texto atualizado às 14h23 do dia 9/3 para acréscimos.

Autores

  • Brave

    é procuradora de Justiça, ex-secretária estadual da Justiça e professora da PUC-SP, com mestrado em Direito Processual Penal e doutorado em Direito Penal pela mesma instituição. É candidata ao cargo de procuradora-geral de Justiça do MP-SP.

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