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Crise econômica pode criar "orçamento recurso-zero"

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8 de março de 2016, 8h00

Voltou-se a falar no chamado “orçamento base-zero”, especialmente em razão da forte crise econômica, em que a escassez torna-se mais intensa, e exige-se a busca de soluções para melhor aproveitar os recursos públicos. O tema apareceu na mídia também por ter sido expressamente mencionado na proposta “Uma Ponte Para o Futuro”[1], apresentada pelo PMDB no final do ano passado, sendo interessante e oportuno algumas considerações sobre essa técnica orçamentária pouco conhecida pelo público.

A ideia central da técnica do orçamento base-zero (OBZ) consiste em fazer com que, na elaboração da peça orçamentária, em que são definidas todas as ações governamentais e respectivos recursos que lhe serão destinados, cada item seja avaliado “a partir do zero”, analisando-se a respectiva oportunidade e conveniência de que sejam mantidos e qual a dotação que lhe será destinada. Contrapõe-se à técnica tradicional, largamente adotada e predominante do “orçamento incrementativo”, em que a elaboração do orçamento parte do que já está sendo feito, fazendo-se ajustes no orçamento dos exercícios anteriores, ou seja, atua-se na margem, e não na base, de forma incremental.

Trata-se de técnica que aparece na evolução histórica dos orçamentos públicos, típica em épocas de necessidade de contenção de gastos, atribuindo-se sua origem ao governo americano, que a implantou no setor público no estado da Geórgia, pelo então governador Jimmy Carter, em 1973, e posteriormente no governo federal, baseada na experiência desenvolvida pela empresa Texas Instruments[2].

O orçamento base-zero surgiu a partir de recomendações sobre a qualidade do gasto público, uma preocupação que, como se pode facilmente constatar, não é exatamente nova. A preocupação em desenvolver sistemas de organização do orçamento que permitissem incluir informações não apenas sobre quais órgãos fariam as despesas, mas o que seria feito com o dinheiro público, é ligada a esse propósito: fazer com que o orçamento público, este documento tão extenso e complexo, oferecesse mais informações sobre os objetivos, as funções e os programas a que se destinariam os escassos recursos públicos.

Desde a Comissão Hoover, criada pelo governo americano a partir do final da década de 1940, a evolução do conceito de performance budget e a ideia de vincular as despesas ao desempenho fez com que se desenvolvessem técnicas voltadas a tornar as previsões orçamentárias menos burocráticas, associando-se os gastos ao planejamento e a metas de desempenho e resultado, quebrando a rotina de elaboração dos orçamentos e rompendo a tendência incremental.

Nesse contexto, o orçamento base-zero pretendeu estimular a revisão contínua dos programas e a criatividade dos gestores públicos, com a criação de novas ações governamentais e a eliminação de gastos desnecessários e anacrônicos, bem como a permanência dos programas no orçamento seguinte, além de facilitar a realocação das despesas ano a ano.

Essa técnica tem o mérito de tentar evitar uma série de distorções causadas pela elaboração orçamentária na forma incrementativa, entre as quais se destaca a permanência de gastos desnecessários. Insere-se no contexto de uma das muitas ferramentas desenvolvidas para permitir que os resultados fossem avaliados e que se abandonasse a inércia característica de determinados modelos orçamentários em que programas antigos se acumulam uns sobre os outros e nunca são reavaliados.

Visa por fim ao que o economista Delfim Netto recentemente apelidou de “orçamento geológico”: “O orçamento (…) têm caráter geológico. A condição suficiente para um programa estar no orçamento de 2015 é que tenha estado no orçamento de 2014 e, para ter estado no de 2014, é porque já estava em 2013… E, assim, por uma indução regressiva, qualquer programa — seguramente sem qualquer avaliação de sua eficácia — terá permanecido (…) A geologia corre por conta dos ‘programas’ que se acumulam em camadas. Nunca terminam. Vão se somando uns sobre os outros adquirindo, quando preciso, novos nomes ‘fantasia’”[3].

Programas que já não são adequados, cuja qualidade e efetividade não são boas, e mantém-se em razão do “piloto automático” estão presentes em todos os orçamentos, e foram reconhecidos pelo recém-empossado ministro do Planejamento em pronunciamento recente[4]. Uma análise criteriosa dos orçamentos das três esferas de governo levará “à conclusão de que há incontáveis dispêndios, programas e ações injustificáveis que se perpetuam por inércia sem que sejam questionados em termos de eficácia e eficiência” e que, se fossem reavaliados, “muitos seriam eliminados ou redimensionados, e suas dotações canalizadas para promover o equilíbrio fiscal, custear outras despesas ou reduzir a dívida pública”[5].

Outra distorção causada pelo orçamento incrementativo aparece nas despesas de final de exercício, já tratadas nesta coluna. Com a tendência de manutenção dos programas, ações e respectivas dotações, os gestores públicos esforçam-se para “esgotar” os recursos previstos em cada uma delas, ao observar que o final do ano está chegando, e os valores ainda não foram gastos, evitando que, no exercício subsequente, sejam reduzidas ou extintas, ante a inércia decorrente da técnica incrementativa. O que, evidentemente, acaba gerando gastos desnecessários, voltados única e exclusivamente para manter o orçamento tal como está.

É importante ressaltar, ao contrário do que tem sido propagado, que a ferramenta do orçamento base-zero não está necessariamente relacionada ao fim das vinculações[6], sendo possível a convivência de ambas. Embora as vinculações orçamentárias tenham características que aproximem muito algumas deficiências por ela provocadas das que ocorrem em razão do orçamento incrementativo, por garantirem recursos para determinadas áreas independentemente de reavaliação da permanência dos motivos que a justifiquem, ambas não se excluem. Veja-se, por exemplo, o caso das despesas mínimas obrigatórias para a área da educação, previstas em nossa Constituição. O fato de se assegurar este gasto mínimo em educação, que tem se mostrado fundamental como garantia financeira a respaldar a implementação e permanência desse direito social que é fundamental para nosso Estado Democrático de Direito, em nada impede que se aplique o orçamento base-zero, ainda que mais restrito. Isto é, mesmo que se não reavalie o volume total já predeterminado das dotações, a sua destinação pode ser revista com maior constância. Do montante de recursos aplicados no setor, deve-se reavaliar, programa por programa, ação por ação, a conveniência e oportunidade de cada gasto, extinguindo-se uns, criando-se outros, aumentando ou diminuindo as dotações dos programas conforme a conveniência e oportunidade em cada caso, sempre tendo em vista os resultados e metas, que devem ser aperfeiçoados de modo a promover a melhoria na qualidade do gasto público. Isto sem que, no final, o gasto total do setor seja inferior ao mínimo estabelecido pela Constituição, até porque a realidade mostra que ainda não se atingiu um padrão de educação que permita ser alcançado com gastos inferiores ao que é exigido. O que não é diferente em outros setores, como a saúde.   

Não obstante as vantagens do orçamento base-zero, essa ferramenta não tem sido utilizada, dados os diversos empecilhos que apresenta para sua implementação. São altos os custos, em tempo e dinheiro, e enormes as dificuldades para que se avaliem as despesas públicas item a item, o que tem dificultado o uso dessa técnica, explicando em parte seu pouco sucesso.

Porém, a crise que assola o país atualmente está promovendo uma preocupação ainda maior.

Sabe-se que, mais do que as vinculações, as despesas obrigatórias assumidas pelos governos, e que praticamente não admitem reduções, são cada vez maiores. Pagamento de servidores públicos, despesas essenciais à manutenção da administração pública, como energia, água, limpeza, conservação, pagamento de precatórios, contratos celebrados e já cumpridos etc. compõe um conjunto de gastos que comprometem a quase totalidade do orçamento. Já se estimou que ultrapassassem 90% das receitas, e isso em épocas de normalidade da atividade econômica.

Na situação atual, muitos entes da federação já estão com o orçamento integralmente comprometido no pagamento de despesas de natureza obrigatória, e, mais do que isso, já se fala que essas despesas ultrapassam o montante das receitas. Ou seja, não há mais nenhum recurso disponível para qualquer gasto. Governantes veem-se diante da “escolha trágica” de selecionar quem ficará sem receber o que lhe é devido.

Nesta conjuntura, e do jeito que as coisas vão, daqui a pouco a expressão orçamento base-zero vai ficar desatualizada, e a realidade do país vai dar origem a uma nova técnica orçamentária, o “orçamento recurso-zero”.


[1] Fundação Ulisses Guimarães – PMDB, Uma ponte para o futuro, Brasília, outubro de 2015, www.pmdb.org.br.
[2] PHYRR, Peter, The zero-base approach in government budgeting, in LYDEN e MILLER, Public Budgeting, 1978, p. 253.
[3] DELFIM NETTO, Antonio, Por que não começar do começo em 2017?, in Valor Econômico, 12.5.2015.
[4] “Temos hoje um conjunto de políticas que são implementadas, mas a avaliação da qualidade e efetividade ainda não é boa (…) Eu preciso sistematicamente, ano a ano, avaliar se determinado programa social, se determinado investimento deve ou não continuar” (Valdir Simão, na Folha de S.Paulo, artigo A vez do social, publicado em 2/2/2016). No mesmo sentido, a entrevista publicada na mesma data com o título Programas sociais têm de sair do "piloto automático", afirma ministro.
[5] Marcos Cintra, Por que não se consegue cortar gastos, in Folha de S.Paulo, em 4/1/2016.
[6] Que já foram objeto de referência nesta coluna, especialmente a coluna Vinculações não são a panaceia dos problemas, publicada em 8/4/2014.

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