Opinião

STF não fez uma leitura honesta do artigo 5º, inciso LVII da CF

Autor

  • Bruno Torrano

    é assessor de ministro no Superior Tribunal de Justiça mestre em Direito e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

8 de março de 2016, 7h31

Três fatos recentes conturbaram as cabeças pensantes dos mundos jurídico e não-jurídico: (i) a morte de Antonin Scalia, lendário Ministro da Suprema Corte dos Estados Unidos; (ii) o julgamento do habeas corpus 126.292/SP, no qual o Supremo Tribunal Federal, revendo jurisprudência consolidada em 2009, consignou a tese de que a “execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência”; e (iii) a confirmação científica de que a teoria das ondas gravitacionais de Albert Einstein estava correta.

Mas qual a relação deste último acontecimento com os dois primeiros? Simples: Einstein teria afirmado, certa vez, que a “coincidência” é o modo encontrado por Deus para permanecer no anonimato. Nada mais apropriado para os fins aos quais me proponho neste ensaio: a fatalidade biológica de Scalia e, desculpem-me a audácia, a fatalidade jurídica cometida pelo Supremo Tribunal Federal na interpretação do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição podem ser compreendidas para além do limitante universo da eventualidade. Mais do que em uma dimensão temporal, os eventos aproximam-se em uma dimensão radicalmente simbólica: a morte do texto.

Muita coisa boa já foi dita, aqui na ConJur, sobre a mudança de entendimento do Supremo Tribunal Federal. O professor Lenio Streck, por exemplo, elaborou crítica certeira quando, ao defender a aplicação do (ainda válido) artigo 283 do Código de Processo Penal e apontar a ausência dos requisitos normativos para a objetivização do raciocínio realizado pela Corte Suprema, concluiu que “os tribunais de segundo grau não estão vinculados a essa decisão; não existe nenhum dever jurídico-constitucional de obediência a ela”[i].

Minha aproximação ao problema é muito mais restrita. Uma homenagem a Antonin Scalia deve levar em consideração o processo de simplificação interpretativa a que, segundo ele, a adoção do originalismo semântico conduz: do ponto de vista jurídico, nenhum raciocínio de cunho moral, intencional, político ou de direito comparado é mais convincente do que a mera determinação do significado das palavras contidas na lei, tal como eram ordinariamente aceitas no momento da promulgação do ato normativo. Sendo assim, na lição textualista, uma boa interpretação do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição dispensa argumentos como o de que “nenhum país do mundo possui tantos recursos” ou de que “admitir a execução penal apenas após o trânsito em julgado colabora com a impunidade”. Vale, nesse ponto, o polêmico brocardo de Scalia: garbage in, garbage out (entra lixo, sai lixo). Na atividade judicante, o magistrado deve estar ciente de que um texto normativo por ele considerado como “injusto” deve ser interpretado de modo a levar a resultados por ele considerados como “repugnantes” ou “reprováveis”.

Claro, dizer que algo pode ser simplificado é muito diferente de dizer que esse algo é, ou pode ser, simples; não obstante, ainda que na complexa atividade hermenêutica diária apareçam textos que não proporcionam uma resposta jurídica clara ao problema concreto, a teoria de Scalia consigna que “a maior parte das questões interpretativas possuem uma resposta correta”[ii], bem como que existe “um mundo de diferença” entre um “teste objetivo” (o texto) e “testes que convidam juízes a dizer que o direito é aquilo que eles pensam que deve ser”[iii].

De forma resumida, pode-se dizer que o originalismo semântico assenta-se, principalmente, nas seguintes premissas:

i) Entrincheiramento constitucional: o principal objetivo jurídico-político de uma Constituição é entrincheirar certos direitos no tempo, com o objetivo de prevenir que gerações futuras tentem descarta-los[iv].

ii) Autodisciplina judicial: o direito estabelece procedimentos (“como” fazer?), e esses procedimentos importam mais do que a noção pessoal de justiça do magistrado (“o que” fazer?): “é precisamente em razão de as pessoas divergirem sobre o que é sensível e desejável que nós elegemos aqueles que devem escrever nossas leis”[v]. Bons juízes, cientes da responsabilidade política que detêm, sabem que a expressão “interpretar a lei” não é a mesma coisa que “fazer justiça”.

iii) Supremacia do texto: “Quando decide uma questão governada pelo texto de um instrumento legal, o advogado ou juiz cuidadoso não confia nem em memória, nem em paráfrase, e sim examina as próprias palavras do instrumento”[vi]. Supremacia do texto não é o mesmo que exclusividade do texto: “o textualista rotineiramente leva o propósito (do texto) em consideração, mas em suas manifestações concretas, tais como deduzidas da leitura atenta do texto”[vii].

iv) Sentido original: às palavras de um texto legal deve-se conferir o sentido que elas tinham no momento da promulgação da lei. Quando o significado daquilo que está escrito é alterado pelo intérprete, a lei muda e acaba por ser aplicada retroativamente: “mudar a lei escrita, tal como adotar o direito escrito em um primeiro momento, é função dos dois primeiros setores do governo — legisladores eleitos e […] oficiais executivos eleitos”[viii].

A concretude de toda essa concepção ganhou especial clareza com a publicação da obra Reading Law: The Interpretation of Legal Texts. Nela, Antonin Scalia e Bryan Garner oferecem ao público uma incrivelmente exaustiva lista de princípios e cânones interpretativos deduzidos das premissas acima explicadas, os quais retratam o método conhecido por “leitura honesta” ou “leitura justa” (fair reading): ao interpretar o texto legal, o magistrado deve perquirir “como um leitor razoável, plenamente competente na linguagem, teria entendido o texto no momento em que ele foi promulgado”[ix].

Dito tudo isso, indaga-se: a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal poderia ser considerada uma “leitura honesta” do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição da República (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”)? A resposta, a meu ver, é um sonoro não.

Na linha do ensinamento de Scalia, há dois pontos iniciais a serem destacados. Primeiro, o texto do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição da República é formado por palavras mandatórias (mandatory canon): ele impõe um dever (“Ninguém será…”), e não abre a possibilidade de discricionariedade[x]. E segundo, o dispositivo caracteriza-se por possuir termos de técnica jurídica, como “trânsito em julgado”, “culpa” e “sentença penal condenatória”, que devem ser entendidos como significados especializados[xi], e não ordinários.

À luz do originalismo semântico, talvez o mais destacado defeito interpretativo da tese assentada pelo Supremo Tribunal Federal no habeas corpus 126.292/SP resida na nítida violação ao manifesto propósito do texto[xii] de estabelecer um critério objetivo para distinguir o adequado grau de intervenção estatal a ser empregado em duas situações jurídicas que demandam tratamento diferenciado: “réu culpado” e “réu não-culpado”. Por derrapagem, a má-compreensão (ou manipulação) das palavras contidas no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição da República resulta em efeitos jurídicos não suportados, internamente, pelo texto, tendo em vista que esvazia a principal consequência jurídica que se relaciona ao reconhecimento de culpa (“considerado culpado”): o início de cumprimento de pena.

Sim: parece razoável sugerir que a cautela do Constituinte em determinar a espera do “trânsito em julgado” como conditio sine qua non para a rotulação de alguém com o grave selo de “legalmente culpado” deve estar relacionada a algum efeito jurídico empiricamente demonstrável. Para Scalia, esse seria um mandamento derivado do Surplusage Canon, que se liga a uma conotação mais ampla de presunção de eficácia e efetividade do texto: “Se possível, a toda palavra e a toda provisão deve-se dar efeito (verba cum effectu sunt accipienda)”[xiii].

No HC 126.292/SP, todavia, o entendimento do Supremo Tribunal Federal leva exatamente ao oposto: a mais clara característica da tese da execução “provisória” da pena é substituir os termos “considerado culpado” (rectius: formação jurídica da culpa) e “trânsito em julgado” — expressamente presentes no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição da República — pelas expressões, supostamente compatíveis com o texto, “presunção concreta de culpa” e “acórdão confirmatório de sentença condenatória”.

Embora os defensores dessa tese geralmente invoquem a distinção existente entre o caráter provisório da execução (ligado ao julgamento de segundo grau) e o subsequente caráter definitivo (ligado ao trânsito em julgado), o fato é que a antecipação da execução penal não permite discernir a diferença prática que posteriores “trânsito em julgado” e “formação jurídica de culpa” podem conferir à situação prisional do réu que já se encontra, desde o julgamento da apelação criminal, cumprindo pena com base na “presunção de culpa” criada pelo Supremo Tribunal Federal. De forma mais direta: em termos de execução de pena, o STF equiparou o grau de intervenção estatal destinado a uma classe específica de réus “não-culpados” — mas “presumivelmente” culpados por construção jurisprudencial — com o grau máximo de intervenção estatal destinado aos réus “já culpados”: o início imediato da execução penal. Não há nada, no artigo 5º, inciso LVII, da CF, que permita isso. E, em uma leitura honesta, “nada deve ser adicionado àquilo que o texto estatui ou razoavelmente faz implicar (casus omissus pro omisso habendus est)”[xiv].

Dificilmente um magistrado viola o texto da Constituição afirmando, aos quatro ventos, que está violando o texto da Constituição. De modo geral, a má-interpretação faz-se acompanhar por toda sorte de fundamentos que tentam, muitas vezes, justificar o injustificável. Em um jogo semântico entre “culpa” e “presunção de culpa”, o Supremo Tribunal Federal reescreveu a parte final do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição da República, de modo a deixá-lo com a seguinte redação: “ninguém será considerado culpado até a prolação de acórdão confirmatório de sentença penal condenatória”. Você pode até não concordar com o originalismo semântico proposto por Scalia — tal como eu não concordo em inteireza. Mas, nesse caso, um dos lirismos do norte-americano aplica-se perfeitamente: “The Constitution is dead, dead, dead!” (A Constituição está morta, morta, morta!).


[i] Cf. o artigo “Teori do STF contraria Teori do STJ ao ignorar lei sem declarar inconstitucional”, disponível em http://www.conjur.com.br/2016-fev-19/streck-teori-contraria-teori-prender-transito-julgado.

[ii] SCALIA, Antonin; GARNER, Bryan A. Reading Law: The Interpretation of Legal Texts. Minnesota: Thomson/West, 2012, p. 6.

[iii] Idem, p. 22.

[iv] Cf. SCALIA, Antonin. A matter of interpretation. New Jersey: Princeton University Press, 1997. Mesma interpretação da teoria de Scalia, quanto a esse ponto específico de teoria constitucional, pode ser encontrada em EISGRUBER, Christopher. Should constitutional judges be philosophers?. In:  Hershovitz, Scott [ed]. Exploring Law´s Empire: the jurisprudence of Ronald Dworkin. Oxford: Oxford University Press, 2006.

[v] SCALIA, Antonin; GARNER, Bryan A. Reading Law: The Interpretation of Legal Texts. p. 22.

[vi] Idem, p 56.

[vii] Idem, P. 20.

[viii] Idem, P. 82.

[ix] Idem, p. 33. Sim, eu estou ciente de que, talvez, o maior problema dessa teoria seja a que determina a construção do significado do texto a partir de argumentos históricos relativos à linguagem socialmente compartilhada no momento em que ele foi promulgado. Isso, principalmente no contexto americano, pode ser visto como um empecilho para a evolução do pensamento jurídico e social, pois demanda a retroação da atividade cognitiva para mais de dois séculos atrás. Especificamente neste ensaio, todavia, nada há a objetar. De um lado, a finalidade, aqui, é fazer uma homenagem póstuma a Antonin Scalia, e não criticar suas convicções. De outro – e ainda mais importante –, creio ser possível sugerir, sem maiores polêmicas, que a proposta de decifrar o significado aceito no contexto da edição do ato legislativo é muito mais plausível em uma realidade, como a nossa, governada por uma Constituição promulgada no recente ano de 1988.

[x] SCALIA, Antonin; GARNER, Bryan A. Reading Law: The Interpretation of Legal Texts. Ob. Cit., p. 112. A constatação de que não se abre discricionariedade em “mandatory words” é do próprio Scalia.

[xi] Idem, p. 76.

[xii] “A presunção contra ineficácia garante que o manifesto propósito do texto será promovido, e não impedido”. Idem, p. 63.

[xiii] Idem, p. 174.

[xiv] Idem, p. 93.

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