Opinião

Nascimento de criança não pode prejudicar ação de pensão para grávida

Autor

  • Ricardo Amin Abrahão Nacle

    é advogado. Mestre e especialista em Processo Civil pela PUC-SP. Professor do Curso de Especialização em Processo Civil da PUC-SP. Membro efetivo da Comissão de Direito Processual Civil da OAB-SP. Membro efetivo da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SP.

5 de março de 2016, 7h29

Entre os três princípios norteadores da ordem jurídica civil constitucional, fortemente inspirada pelos valores da dignidade da pessoa humana, da solidariedade e da igualdade material, destaca-se, na lição do sempre saudoso professor Miguel Reale[1], a operabilidade, cuja função visa à máxima concretização do direito.

A despeito dessa brevíssima advertência, parece-nos que muitos operadores do Direito esforçam-se em interpretar o sistema jurídico com a particular finalidade de dificultar a sua eficácia. É o que ocorre, por certo, com diversos aspectos da Lei 11.804/08, entre eles aquele que diz respeito às consequências processuais derivadas do nascimento da criança após o ajuizamento da ação de alimentos gravídicos.  

O nascimento jamais poderá, salvo por obra de interpretação jurídica que conduza, com todo respeito, ao absurdo, ao teratológico, ao retrocesso dos direitos fundamentais, implicar a extinção do processo sem resolução de mérito, em profundo e inaceitável prejuízo do recém-nascido, como se o processo fosse uma corrida maluca e desesperada contra o tempo.

Sob os estritos domínios do processo civil constitucional, o nascimento ocasionará o fenômeno da sucessão processual, de sorte que o nascituro (na figura da sua mãe) será sucedido, por certo, pelo recém-nascido. Tal orientação parece ser reafirmada sob a ótica no novo CPC, de cujas diretrizes extrai-se, entre outras, a priorização do julgamento de mérito.

Essa, sem nenhuma dúvida, é a interpretação mais consentânea com os ideais da instrumentalidade das formas, da economia processual, da dignidade da pessoa humana e da proteção da criança, todos eles impostos pela Constituição Federal.

Particularmente sobre a instrumentalidade processual nas demandas de alimentos gravídicos, convém chamar a atenção para a lúcida advertência de Flávio Luiz Yarshell, para quem o processo “não deve gerar indevidos obstáculos à obtenção da prestação jurisdicional devida (aspecto negativo da instrumentalidade) e, de outro lado, o processo deve, tanto quanto possível, ser instrumento apto à obtenção dos resultados desejados pelo ordenamento, quer sob o ângulo do escopo jurídico (atuação da vontade concreta do direito objetivo), quer sob o prisma do escopo social (eliminação da controvérsia e consequente pacificação social) — é a chamada efetividade do processo”[2].

Bem por isso, negar vigência ao artigo 6º da Lei 11.804/08, a pretexto de afronta ao artigo 226, parágrafo 7º da CF, é um prejudicial disparate. Uma rematada ilegalidade e um odioso retrocesso aos direitos da criança. É ferir de morte, em abjeta inversão de valores, a dignidade da criança em defesa do suposto pai.

Há precedentes do Tribunal de Justiça de São Paulo afirmando que o nascimento não resulta na impropriamente denominada “perda do objeto”, mas tão apenas, nos termos do parágrafo único do artigo 6º da Lei 11.804/08, em conversão dos alimentos gravídicos em pensão alimentícia, com a alteração do polo ativo[3]. É o que prevê, com todas as letras, o parágrafo único do mencionado dispositivo legal:

Parágrafo único.  Após o nascimento com vida, os alimentos gravídicos ficam convertidos em pensão alimentícia em favor do menor até que uma das partes solicite a sua revisão. 

Esse é o pensamento, também, de Douglas Philips Freitas: “Em momento algum há o impedimento de haver tal concessão após o nascimento do infante, até porque a referida demanda não tem o condão de discutir a paternidade, mas outorgar à genitora o benefício de ser custeada (e reembolsada) parte de suas despesas decorrentes da gravidez (…) Ademais, extinguir a ação com o nascimento da criança é favorecer o suposto pai em locupletar-se com sua omissão financeira em socorro à genitora, por conta de um judiciário moroso que não conseguiu, a tempo, decidir a demanda pelo nascimento do menor”[4].

Nessa mesma linha, opondo-se, com acerto, contra a tese da prejudicialidade superveniente derivada do nascimento, posiciona-se o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul[5].

Tudo que se sustentou até aqui a respeito da consequência processual resultante do nascimento da criança no decorrer da demanda de alimentos gravídicos não se altera frente à outra discussão: a necessidade de a autora da ação requerer, expressamente, a conversão dos alimentos gravídicos em pensão alimentícia.

No nosso sentir, a conversão dos alimentos gravídicos em alimentos provisórios situa-se na classe dos pedidos implícitos, de tal modo a ser presumido do pedido principal.

A legislação aplicável, especificamente o parágrafo único do artigo 6º da Lei 11.804/08, não impôs que para que ocorresse a conversão lá contemplada houvesse pedido expresso da parte demandante. Muito ao contrário, deixou bem claro o dispositivo legal em exame que aquela consequência da conversão ocorreria automaticamente, de modo que derivaria da própria demanda de alimentos gravídicos.

E, nesse ponto, cabe lembrar ensinamento básico de hermenêutica, segundo o qual se o legislador não exigiu, não caberá o intérprete fazê-lo. 

Nesse sentido, destaca-se a doutrina de Francisco José Cahali: “A conversão se fará automaticamente, sem necessidade de requerimento ou providências próprias, além daquelas de regularização processual (anotações no distribuidor em razão da modificação da parte autora), a ser determinada de ofício tão logo se tenha ciência do nascimento”[6].

Raciocinar em sentido contrário seria infirmar o propósito protecionista para o qual a legislação foi criada e contrariar o princípio da legalidade, exigindo providência que a lei não exigiu. Uma vez promovida a ação de alimentos gravídicos, o pedido de conversão deles em pensão alimentícia é implícito, de tal sorte que a demanda deverá prosseguir e ter o seu julgamento de mérito. Tal conclusão se mantém ainda que o réu não tenha sido citado, especificamente porque, à luz da especificidade da Lei 11.804/08, os alimentos gravídicos não se submetem à regra da Lei 5.478/68, de tal sorte que não retroagem a citação, mas sim ao início da gravidez[7].


[1] Visão Geral do Projeto de Código Civil, em http://www.miguelreale.com.br/artigos/vgpcc.htm, consultado em 13/8/2014.
[2] http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/temas-de-direito-processual-na-lei-118048-acao-de-alimentos-gravidicos–_-parte—i/3135, consultado em 25/9/2014.
[3] Agravo de Instrumento 0326102-74.2009.8.26.0000; desembargador relator Egidio Giacoia; 3ª Câmara de Direito Privado; julgado em 24/11/2009.
[4] Alimentos gravídicos comentários à Lei 11.804/98. 3ª ed., 2011. São Paulo: Forense, p. 118.
[5] Agravo de Instrumento 70047571096, 8ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relator Ricardo Moreira Lins Pastl, Julgado em 29/3/2012. Apelação Cível 70060466091, 7ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relator Jorge Luís Dall'Agnol, julgado em 27/8/2014.
[6] Alimentos gravídicos. Direito das Famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2009, p. 586.
[7] O artigo 9º da Lei 11.804/08 — cuja redação original previa que os alimentos seriam devidos “desde a data da citação do réu” — foi vetado, cujas razões deixam explícita a intenção de que os alimentos gravídicos não se sujeitem ao sistema geral dos alimentos previsto na Lei 5.478/68. Eis as razões do veto: “O artigo 9º prevê que os alimentos serão devidos desde a data da citação do réu. Ocorre que a prática judiciária revela que o ato citatório nem sempre pode ser realizado com a velocidade que se espera e nem mesmo com a urgência que o pedido de alimentos requer. Determinar que os alimentos gravídicos sejam devidos a partir da citação do réu é condená-lo, desde já, à não existência, uma vez que a demora pode ser causada pelo próprio réu, por meio de manobras que visam impedir o ato citatório. Dessa forma, o auxílio financeiro devido à gestante teria início no final da gravidez, ou até mesmo após o nascimento da criança, o que tornaria o dispositivo carente de efetividade”. 

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