Opinião

Repercussão geral mudou forma de decidir do Supremo Tribunal Federal

Autor

  • Damares Medina

    é advogada doutora em Direito professora do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e coordenadora de pesquisa do Instituto Constituição Aberta (ICONS).

4 de março de 2016, 7h18

A repercussão geral mudou a forma de decidir do Supremo Tribunal Federal.

Uma das mudanças estruturais mais evidentes foi a criação de um plenário virtual exclusivamente para o julgamento da repercussão geral, alterando radicalmente o desenho institucional decisório do tribunal[1]. Esse fato que, por si, já não é banal, representa a primeira experiência do tribunal com um julgamento colegiado eletrônico.

O plenário virtual foi tão bem aceito que, paulatinamente, sua competência foi ampliada para julgar a questão constitucional[2] e o mérito dos recursos extraordinários que versem sobre questões já pacificadas na jurisprudência do tribunal, a chamada reafirmação de jurisprudência[3]. Dessa mudança estrutural advêm outras, um pouco mais sutis, mas tão relevantes quanto.

Nesse texto falaremos da forma de escolha do processo a ser decidido no plenário virtual, correlacionando-a ao tempo de decisão. Para tanto, faremos uma breve digressão às origens do sorteio como método decisório até a sua incorporação no processo judicial brasileiro (distribuição aleatória), em especial do STF, e inclusão discricionária do processo no plenário virtual. Com isso procuraremos explicitar de que forma o plenário virtual modificou a dinâmica decisória do tribunal, impactando decisivamente no resultado do julgamento: quem ganha e quem perde na jurisdição constitucional.

A utilização do sorteio é ancestral, sendo incontestável a sua legitimidade como método seletivo igualitário, nas mais diversas áreas e situações. A prática do sorteio foi digna de registro na sociedade bíblica, dada a magnitude dos problemas que resolveu, tanto no velho[4] quanto no novo testamento[5], em correlações que sustentariam uma suposta racionalidade divina na prática do sorteio.

Corroborando esse fundamento sobrenatural, algumas passagens da Odisseia e da Ilíada de Homero sugerem que, também para os Gregos, a racionalidade do sorteio seria divina na medida em que o ‘procedimento’ era acompanhado por pessoas erguendo as mãos em súplica para que seus escolhidos fossem favorecidos pelos deuses[6]. A escolha por sorteio (by chance) não seria necessariamente aleatória (randômica), já que os deuses teriam divinamente intervindo a favor da escolha certa[7]. O fundamento religioso do sorteio é contestado sob o argumento de que a mão divina a conduzir o sorteio seria também arguida para absolver as carreiras políticas em desastre, o que jamais ocorreu[8].

Na cultura ocidental, o emprego do sorteio foi traço característico da democracia ateniense, como um mecanismo por intermédio do qual os magistrados eram aleatoriamente escolhidos entre os cidadãos (lottery ou by chance), em detrimento do mérito e da expertise (especialização). Tratava-se de forma de limitar a influência dos magistrados e, com isso, evitar a concentração de poder[9], defluindo dessa circunstância o efeito democratizador do sorteio.

A democracia ateniense se paramentava meticulosamente com mecanismos preventivos da volta da tirania[10], sendo que a participação direta de todos na assembleia não seria a sua característica fundamental, mas, sim, o sistemático controle do poder administrativo[11]. Um dos pontos cruciais do projeto ateniense era o sistema de loteria por intermédio do qual os servidores públicos eram eleitos, bem como um grupo de ‘fiscais’ dos atos públicos que também eram escolhidos por sorteio. O sorteio (e não as eleições) era o núcleo do sistema concebido pelos atenienses para deter a fixação de poder (tirania): a loteria como função de contingenciamento do epicentro do poder[12].

A circunstância de que o sorteio era utilizado muito antes da democracia ateniense infirma o caráter genuinamente democratizador do mecanismo, que era praxe, inclusive, na diarquia espartana. Nadia Urbinati adverte que: “um sistema de governo no qual todos são tratados igualmente não é, necessariamente, democrático, ainda que seja certamente igualitário”[13].

Como método legítimo de escolha isonômica, o sorteio (lot, lottery, by chance) atravessou eras e culturas, até os dias atuais.

O sorteio é a regra de distribuição aleatória de processos no Poder Judiciário brasileiro. No campo de cada uma das suas especializações e competências materiais[14], é o sorteio que define o juiz da causa (ou o relator do processo nos tribunais), sendo um dos desdobramentos diretos do princípio constitucional da isonomia e da impessoalidade administrativa, bem como do juiz natural.

Em um grupo homogêneo (como o formado pelos membros do Poder Judiciário), o sorteio como método de seleção do juiz que decidirá o processo (a causa) assume um nítido caráter igualitário, isonômico e impessoal.

No âmbito da jurisdição constitucional exercida pelo Supremo Tribunal Federal, como órgão de cúpula de um dos três poderes da República, adicionalmente, o sorteio aleatório assume a função de dispersão de poder, perspectiva sob a qual o sorteio alcança, sim, uma dimensão democratizadora.

Com expressa remissão ao inciso IX do artigo 93 da Constituição Federal[15], o Regimento Interno do STF (RISTF) prevê, em seu artigo 66 e parágrafos, que a distribuição do processo será feita por sorteio ou prevenção, mediante sistema informatizado, acionado automaticamente, em cada classe de processo. O RISTF define a natureza pública do sistema informatizado de distribuição automática e aleatória de processos, sendo os seus dados acessíveis aos interessados. À exceção do presidente e dos ministros ausentes ou licenciados por mais de 30 dias, todos os ministros do STF participarão da distribuição aleatória para o sorteio do relator do processo.

A Resolução STF 558/15, que dispõe sobre o aprimoramento da segurança e transparência na distribuição de processos no STF, regula as exceções à distribuição aleatória, quais sejam, as hipóteses de prevenção, conexão, continência, compensação ou impedimento, dispondo que apenas o servidor ocupante de cargo efetivo ou de confiança poderá realizar a distribuição de processos nesses casos, excluindo expressamente os empregados terceirizados e estagiários.

Trata-se de um universo complexo e multifacetado, pois estamos falando de um mecanismo de distribuição aleatória que definirá o destino dos milhares de processos protocolados no STF, ao selecionar o relator do processo entre cada um dos ministros do tribunal[16].

Entre 2007 e 2014, o STF distribuiu 368.629 recursos extraordinários, recursos extraordinários com agravo e agravos instrumentos[17].

Nesse mesmo período o tribunal julgou a preliminar de 791 temas de repercussão geral. Vamos repetir, dos 368.629 recursos distribuídos no STF, apenas 791 chegaram a ter sua preliminar de repercussão geral analisada[18].

Ao compararmos percentualmente esses dois universos, concluímos que o número de temas de repercussão geral julgados corresponde a 0,21% do total de recursos distribuídos pelo STF, como se fossem agulhas achadas em um imenso palheiro!

Esse quadro empírico nos leva à seguinte indagação: quais os critérios que conduziram os ministros relatores na escolha dos 791 processos que tiveram a sua repercussão geral julgada?

Isso porque quando analisamos os acórdãos dos temas, verificamos a ausência de fundamentação no tocante aos critérios de escolha do recurso paradigma do tema de repercussão geral, dentre as centenas de milhares de recursos distribuídos pelo STF.

Se a distribuição de processos e recursos no STF é orientada pela democrática aleatoriedade do sorteio, na hora de escolher o paradigma da repercussão geral, o relator atua com ampla discricionariedade, dando azo a fenômenos que merecem nossa detida atenção.

Um desses fenômenos é a seletividade positiva do relator na escolha dos temas dos temas de direito tributário e eleitoral e processual eleitoral, e uma seletividade negativa nos temas dos demais ramos do direito, especialmente em direito civil e do consumidor[19]. Outra nuança capturada a partir da análise do conjunto dos temas de repercussão geral é a ausência de uma regra de precedência cronológica na escolha dos processos paradigmas de repercussão geral, contribuindo que os efeitos da distribuição aleatória se diluam em um amplo espectro de discricionariedade do ministro relator[20].

Por fim, mas não menos importante, o tempo do processo tem se mostrado um crucial fator no resultado da repercussão geral.

Para exemplificar como a simples cronologia pode influenciar decisivamente no resultado do processo, analisamos o julgamento dos temas 752, 753 (da relatoria do ministro Teori Zavascki) e 754 (da relatoria do Dias Toffoli), incluídos no plenário virtual em 13 de junho de 2014, estando abertos para decisão até 1º de agosto de 2014. Nesse período, cinco ministros se abstiveram: Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa , Cármen Lúcia, Rosa Weber e Roberto Barroso. É interessante notar que, nos dois primeiros (752 e 753) o relator reputou ausente a questão constitucional. Logo, as abstenções passaram a ser computadas como votos pela ausência da repercussão geral. Já no tema, 754, como o relator entendeu presente a questão constitucional, as abstenções foram computadas como voto a favor da repercussão geral.

Observe-se que, nos três casos, cinco ministros deixaram de votar, contudo, o elevado número de abstenção somado ao posicionamento do relator acerca da existência ou não da questão constitucional acabou por decidir o resultado do exame da repercussão geral.

Ao observarmos os resultados da repercussão geral, constatamos que os processos que são incluídos no plenário virtual em determinado período, tendem a alcançar o mesmo resultado, já que os ministros que se abstêm em um caso, deixam de votar nos demais. A exemplo do que ocorreu nos três temas acima indicados, temos uma espécie de justiça randômica[21], que é fruto menos do exame circunstanciado da causa, que da conjuntura temporal decisória.

Conclui-se que a adoção da repercussão geral e de novos desenhos institucionais decisórios tem impactado fortemente no processo de controle incidental de constitucionalidade no STF.

O atual contexto institucional do plenário virtual permite a diluição dos indispensáveis efeitos aleatórios do sorteio na distribuição de processos, ao possibilitar que os relatores escolham discricionariamente quais processos terão a sua repercussão geral analisada. Nesse contexto a aleatoriedade e a democrática dispersão de poder cedem, cada vez mais, espaço à escolhas discricionários do relator.

Essa discricionariedade dá origem a seletividades positivas do relator na escolha dos temas de dos temas de direito tributário e eleitoral e processual eleitoral, bem como a seletividades negativas nos temas dos demais ramos do direito, especialmente em direito civil e do consumidor.

A análise do conjunto dos temas de repercussão geral indica a inexistência de uma regra de precedência cronológica na escolha dos processos paradigmas de repercussão geral, contribuindo, mais uma vez, que os efeitos da distribuição aleatória se diluam em um amplo espectro de discricionariedade do ministro relator.

Por fim, mas não menos importante, os resultados da repercussão geral indicam que os processos incluídos no plenário virtual em determinado período tendem a alcançar o mesmo resultado, em uma nova modalidade de justiça randômica, que é fruto menos do exame circunstanciado da causa, que da conjuntura temporal decisória.

[Artigo originalmente publicado no v. 2 da Revista de Processo Comparado]


[1] Adotamos aqui o modelo estratégico de analise do processo de tomada de decisão, que se alicerça em três vertentes principais: os juízes são orientados por seus objetivos (sendo a política o objetivo primário); a decisão dos juízes depende da escolha dos outros atores (players) do processo decisório; e, por fim, as escolhas dos juízes são afetadas pelo arranjo institucional do qual eles fazem parte (EPSTEIN, Lee; KNIGHT, Jack. Walter Murphy: The Interactive Nature of Judicial Decision-making. In: The Pioneers of Judicial Behavior, Nancy Maveety (ed.).Ann Arbor, Michigan: University of Michigan Press, 197-227, 2004, p. 200).

[2] ER n. 31/2009, do STF.

[3] ER n. 42/2010, do STF.

[4] Na Bíblia Sagrada, passagens do Velho Testamento fazem referencia ao sorteio como método para resolver questões de divisão de terras (Nm. 26:52-6) e para a definição de quem seria mandado para a guerra (Jz. 20:8-9), tendo Salomão se referido à prática como um método igualitário para se alcançar o justo (Pv. 18:17-8).

[5] No Novo Testamento o sorteio foi o método através do qual o discípulo sucessor de Judas foi escolhido, em At. 1:24-6.

[6] HEADLAM, James W. Election by Lot at Athens. Cambridge: Cambridge University Press, 2014.

[7] MULGAN, Richard. Lot as a Democratic Device of Selection. The Review of Politics, v. 46, 539-560, 1984.

[8] HEADLAM, James W. Election by Lot at Athens. Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 4-16.

[9] No Livro VIII da República, Platão tece severas criticas ao sistema de sorteio, que descreveu como um igualitarismo nivelador cego à especificidade individual.

[10] A tríade da seleção por sorteio, rotatividade e colegialidade que Lanni e Vermeule trataram sob o rótulo de precautionary constitutionalism, como mecanismos contingenciais da influencia dos magistrados (LANNI, Adriaan; VERMEULE, Adrian. Precautionary Constitutionalism in Ancient Athens. Cardozo Law Review, v. 34, 893-915, 2013).

[11] KARATANI, Kojin. Transcritique: on Kant and Marx. Cambridge: The MIT Press, 2003, p. 182-183. Também sobre o tema: URBINATI, Nadia. Representative Democracy: principles & genealogy. Chicago: The University of Chicago Press, 2008, p. 34 e ss.

[12] KARATANI, Kojin. Transcritique: on Kant and Marx. Cambridge: The MIT Press, 2003, p. 182-183.

[13] URBINATI, Nadia. Representative Democracy: principles & genealogy. Chicago: The University of Chicago Press, 2008, p. 34 e ss.

[14] Como um dos poderes da República, o Poder Judiciário estrutura-se em diversas especializações. Há a justiça especializada do trabalho, a justiça federal, assim como varas especializadas na justiça comum, ou cível (exemplificativamente: as varas da família, da fazenda pública, as criminais) e os juizados especiais. Também no âmbito dos tribunais, temos a divisão dos órgãos e estruturas decisórias a partir de especializações por matéria. Exemplificativamente, as turmas especializadas em direito público e em direito privado.

[15] Constituição Federal, inc. IX do art. 93: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”.

[16] A definição do relator do processo assume relevo quando nos defrontamos com os dados de que a decisão do relator é vencedora em mais de 96% dos processos julgados em sede incidental (MEDINA, Damares. A Repercussão Geral no Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Saraiva, 2015).

[17] STF – informações disponíveis em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=movimentoProcessual , acesso de 26-jun.-2015.

[18] Fonte: www.stf.jus.br.

[19] MEDINA. Damares. Seletividades do relator no exame da repercussão geral. Anais do XXIV CONPEDI, 2015. Disponível em: http://www.conpedi.org.br/publicacoes/c178h0tg/k4yol24r/nf6bI86GMTsd1xzP.pdf , acesos de 19-nov.-2015.

[20] Dentre inúmeros exemplos, citamos os temas 743, 744, 745, da relatoria do Min. Marco Aurélio e os temas 746 e 747 da relatoria do Min. Ricardo Lewandowski.

[21] Sobre a legitimidade de métodos randômicos de decisão judicial e em defesa de seu resgate contemporâneo ver: DUXBURY, Neil. Random Justice: On Lotteries and Legal Decision-Making. Oxford: Oxford University Press, 2008. Ainda sobre o tema: HEADLAM, James W. Election by Lot at Athens. Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 4-16; MULGAN, Richard. Lot as a Democratic Device of Selection. The Review of Politics, v. 46, 539-560, 1984.

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