Olhar Econômico

Medidas preventivas são úteis para a proteção da concorrência

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

3 de março de 2016, 8h05

Spacca
O poder geral de cautela do juiz encontra-se expresso no artigo 798 do CPC de 1973, em vigência; e no artigo 297 do CPC promulgado em 2015, prestes a entrar em vigor. Com base no citado poder, possibilita-se ao juiz a imposição de medidas provisórias, antes do julgamento, desde que haja fundado receio de lesão grave e de difícil reparação a direito.

Para Ovídio Batista, “tutela cautelar é forma de proteção jurisdicional, que em razão da urgência, protege a simples aparência do direito colocado em estado de iminente dano”, cabendo primeiramente, e em cada caso, identificar-se o interesse jurídico ameaçado de iminente dano a ser protegido[1].

Theodoro Júnior, após lembrar que a função cautelar significa antecipação da solução da lide, pela realização prematura do direito material, discutido no processo principal, sendo tão-somente prevenção contra risco de dano imediato, capaz de afetar a proteção definitiva a ser dada no processo de mérito, conceitua medida cautelar como “a providência concreta tomada pelo órgão judicial para eliminar uma situação de perigo para direito ou interesse de um litigante, mediante conservação do estado de fato ou de direito que envolver as partes, durante todo o tempo necessário para o desenvolvimento do processo principal. Isto é, durante todo o tempo necessário para a definição do direito no processo de conhecimento ou para a realização coativa do direito do credor sobre o patrimônio do devedor, no processo de execução”[2].

No âmbito do Cade, o fundamento para a aplicação de medidas preventivas encontra-se no Capítulo V, intitulado Da Medida Preventiva, que contém um único artigo, o 84. O disposto nesse artigo praticamente reproduz o conteúdo do artigo 52 da Lei 8.884/1994, que o precedeu. Podem adotar essas medidas tanto os conselheiros do tribunal como a Superintendência-Geral, sendo possível a fixação de multa diária, em caso de descumprimento. Essas autoridades são competentes para adotar medida preventiva — cessação de prática e, possivelmente, reversão ao estado anterior, em qualquer fase do processo, desde que exista indício ou fundado receio de produção de lesão ao mercado de difícil reparação ou ineficácia da decisão final do processo. Da prolação de medida preventiva, cabe recurso voluntário ao Plenário do tribunal em um quinquídio sem efeito suspensivo.

Conforme a regulamentação do artigo 84 da Lei 12.529/2011, feita pelo artigo 211 do Regimento Interno do Cade, tanto o relator quanto o superintendente-geral, em qualquer fase do inquérito ou do processo administrativo, possui competência para deferir medida preventiva, de ofício ou por provocação do procurador-chefe do Cade ou de legítimo interessado, desde que haja risco de lesão ao mercado, irreparável ou de difícil reparação, ou ainda de ineficácia do resultado do processo (artigo 211, caput). A medida será processada nos próprios autos do processo administrativo, podendo o relator ou o superintendente revogar ou alterar a medida preventiva, face à insubsistência de seu fundamento (artigo 211 parágrafos 2º e 4º). Descumprida a medida preventiva, lavrar-se-á auto de infração, sem prejuízo das demais medidas cabíveis (artigo 211, parágrafo 3º)[3].

Tendo em vista os princípios constitucionais e a lei concorrencial vigente à época — Lei 8884/1994 —, para Franceschini, a medida preventiva somente poderia ser adotada para proteger bem coletivo em “concorrência” e o adequado funcionamento do mercado, e não concorrentes individuais. Essa providência emergencial de intervenção econômica somente se justificaria face a risco de lesão irreparável ao mercado ou de decisão ineficaz. O fumus boni juris seria juízo de probabilidade quanto à existência de direito à punição, o que justificaria, mesmo hipoteticamente, a sua proteção, não significando antecipação de julgamento. Para que se pudesse adotar medida preventiva, seria necessário que, além de ser prática subsumível às condutas descritas no artigo 21 da Lei 8.884/1994, configurasse ela um dos efeitos constantes do artigo 20 da mesma lei. Verifica-se o periculum in mora se, por falta de ação imediata, a coletividade puder sofrer dano irreparável ao direito concorrencial, se se confirmasse a infração, de maneira efetiva, ou o resultado do processo corresse o risco de resultar ineficaz[4].

Recorda Fonseca os critérios de provisoriedade (enquanto se esperava providências definitivas para que o direito fosse observado, antecipava-se, provisoriamente, seus possíveis efeitos) e de instrumentalidade (instrumento da ulterior atividade jurisdicional cuja função era fazer com que ela pudesse chegar a tempo), próprios das medidas cautelares. Ademais, lembrava que o conselheiro devia ser prudente na concessão de medidas acautelatória, mormente sem ouvir as partes, pois a economia não se compadece com paralizações no tempo[5].

Uma das primeiras medidas cautelares adotadas pelo Cade ocorreu no caso Ambev, em que o conselho, utilizando-se, subsidiariamente, de ditames do CPC, determinou que as empresas se abstivessem de praticar quaisquer atos decorrentes do contrato já feito, que pudessem modificar as estruturas ou características do mercado em detrimento da coletividade, sob pena de multa diária de R$ 100 mil[6].

Relembre-se, a título de exemplo, outras medidas concedidas, quer na vigência da Lei 8.884/1994, quer na da atual Lei 12.259/2011.

Em 16 de outubro de 2003, o relator concedeu medida cautelar, posteriormente referendada pelo Plenário do Cade, em razão de convicção da grande probabilidade de a operação acarretar alta concentração econômica no mercado de tratores, prejudicando a concorrência, principalmente em relação aos segmentos por faixa de potência. A medida proibia: o fechamento de unidades fabris; a transferência de ativos, de funcionários e de dirigentes entre empresas; a transferência de marcas, patentes de demais direitos de propriedade intelectual; a descontinuação de marcas e produtos; e a desativação dos ativos associados à distribuição. Determinava, ainda, a manutenção das redes de distribuição, contratos com distribuidores e percentuais de venda; do funcionamento independente das concessionárias de tratores Agco e Kone; e de relações comerciais com terceiros eventualmente já descontinuadas em virtude da operação. Por fim, prescrevia a medida cautelar: o retorno ao lugar de origem dos ativos porventura já transferidos, cedidos ou vendidos a terceiros; a manutenção dos níveis de produção, emprego e preços praticados, isoladamente, pelas empresas; e a suspensão do exercício do direito de voto por parte da Agco na Kone[7].

O relator, em 18 de março de 2004, concedeu ad referendum do Plenário do Cade medida cautelar com o intuito de “ordenar a requerida Telecom Italia International N. V. que preserve a reversibilidade da operação até final julgamento do Ato de Concentração 53500.002400/2004, que tem por objeto o retorno da TII ao grupo de controle da Solpart/Brasil Telecom, suspendendo-se, para tanto, a aplicação das seções 5 (‘Recuperação de determinadas seções suspensas do acordo de acionistas de 2002 e determinadas obrigações das partes’) e 6 (‘Opções de compra e o termo aditivo firmado em 27 de agosto de 2002’)”. A medida determinou, ademais, que a Telecom Italia “mantenha suas atividades empresariais de forma independente, abstendo-se de retornar ao Grupo de Controle da Brasil Telecom”, assim como não impeça a possibilidade de reversão ao estado anterior de quaisquer atos  até aquele momento implementados no âmbito da operação. Ainda em sede de concessão da medida cautelar, o relator excluiu a Animec do polo ativo do processo, colocando, para tanto, o Cade como titular ex officio da medida cautelar[8].

A Superintendência-Geral do Cade concedeu medida preventiva, publicada em 24 de abril de 2015, em face da GNL Gemini Comercialização e Logística de Gás Ltda. e White Martins Gases Industriais Ltda., em razão de indícios de tratamento discriminatório abusivo.

Em 25 de janeiro de 2016, a Superintendência-Geral do Cade, entendendo presentes o fumus boni juris e o periculum in mora e com o intuito de restabelecer a concorrência no mercado, impôs medida preventiva, no âmbito do Inquérito Administrativo 08012.008859/2009-86, que investiga provável formação de cartel e indução a conduta uniforme nos mercados de distribuição e revenda de combustíveis do Distrito Federal. Foi nomeado administrador independente para gerenciar os postos com bandeira BR da Cascol Combustíveis para Veículos Ltda., por seis meses, renováveis até o final do processo.

Sendo as medidas preventivas instrumentos necessários, úteis e usuais para a proteção da concorrência,  devem ser mais conhecidas pelos operadores e pelos cultores do Direito.


[1] Batista, Ovídio A., Processo Cautelar (Tutela de Urgência). 3ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000, p. 49 e seguintes.
[2] Theodoro Júnior, Humberto. Curso de Processo Civil, Rio de Janeiro, Forense, 2002, p. 334.
[3] Durante a vigência da Lei 8.884/94 e de seu artigo 52, a Resolução Cade 28/2002 regulamentava a da medida preventiva. Seus pontos principais eram: O relator e o plenário do Cade possuíam competência para deferir medida cautelar, de ofício, ou por provocação escrita e fundamentada, da SDE, da Seae, da Procuradoria do Cade ou outro legítimo interessado, desde que presentes a fumaça do bom direito e o perigo da demora (artigos 1º e 3º). Como regra geral, exarava-se a cautelar após a oitiva das partes interessadas, sendo excepcionalmente possível sua concessão sem tal audiência, caso a demora pudesse comprometer sua eficácia (artigo 4º, caput e parágrafo 2º). A medida cautelar era, então, apreciada pelo plenário do Cade, na reunião subsequente à sua prolação (artigo 7º), estendendo-se sua eficácia até o julgamento do mérito do ato de concentração, podendo ser modificada ou revogada, a qualquer tempo (artigo 6º). Poderia, também, haver obrigação de submissão de relatório ao Cade sobre o cumprimento das obrigações impostas ou de informações, para o exame prévio de alterações estatutárias ou contratuais (artigos 10 e 11). O descumprimento de obrigações estipuladas poderia ser sancionada por imposição de multa diária, já fixada no despacho concessório (artigo 12).
[4] Franceschini, J. I., Direito da Concorrência – Case Law, 2000, Singular, São Paulo, p. 579.
[5]  Fonseca, João Bosco Leopoldino, Lei de proteção da concorrência: comentários à legislação Antitruste. 2ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2001, p. 113.
[6] Ato de Concentração 08012.005846/1999-12, D.O.U. 07.04.2000, Seção I, nº 68, p. 2 e 3.
[7] Medida cautelar 08700.004932/2003-05, apensada ao Ato de Concentração 08012.007603/2003-66. Requerente CNH Latino Americana Ltda. Requeridas: Agco Corporation e Kone Corporation.
[8] Medida Cautelar 08700.000018/2004-68, apensada aos autos dos Atos de Concentração 53500.002400/2004 e 53500.005049/2003. Requerente Associação Nacional de Investidores do Mercado de Capital – Animec. Requeridas: Telecom Italia International N. V., Techold Participações S. A., Timepart Participações Ltda. E Solpart Participações S. A.

Autores

  • é professor titular da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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