Opinião

A impunidade e o alcance do princípio da presunção de inocência

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2 de março de 2016, 6h58

Dentre as 50 cidades mais violentas do mundo, 21 são brasileiras, de acordo com os dados publicados em 25 de janeiro de 2016 pela ONG mexicana Conselho Cidadão para a Segurança Pública e Justiça Penal. Na lista de 2014, havia 16 cidades brasileiras — número já bastante expressivo. Nesse quadro, constata-se com extrema preocupação o aumento exponencial em apenas dois anos, pois hoje, segundo a citada ONG, quase metade das cidades mais violentas do mundo encontra-se no Brasil.

São sintomáticas a posição e a vertiginosa subida no mencionado ranking, indicando que não estamos no caminho certo. A segurança pública, por consequência, precisa de novo enfoque, alterando premissas de forma séria e imediata. E os operadores do Direito possuem importante responsabilidade nessa seara, em especial aqueles incumbidos de defender os interesses da sociedade. A interpretação conferida às normas jurídicas, notadamente as penais e processuais, atua diretamente na sensação de impunidade, agravando a escalada da violência quando não se respeita uma das finalidades da pena, qual seja, a retribuição pelo mal causado.

Não se desconhece, outrossim, que a violência é um problema multifacetário que, para seu enfrentamento, exige diversas formas de atuação, inclusive sociais, do Estado e da população. Em contrapartida, diante do quadro experimentado hodiernamente e retratado na lista de cidades mais violentas do mundo, não se pode deixar de observar e avaliar as consequências dos atos estatais, principalmente aqueles baseados em interpretações jurídicas.

E um tema que influencia diretamente na sensação de segurança dos cidadãos, em razão da notória morosidade para se prender um criminoso, é o alcance do princípio da presunção de inocência. Também conhecido como princípio da não culpabilidade, tal postulado possui alicerce jurídico no artigo 5º, caput, inciso LVII, da Constituição Federal: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Além disso, o Brasil promulgou internamente, por meio do Decreto 678, de 6 de novembro de 1992, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969. Em seu artigo 8º, item 2, dispõe que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”.

Sabe-se, de outro vértice, que a forma de nosso Estado consiste em federalismo (artigo 1º, caput, da Carta Magna), originado por desagregação — ou segregação —, em razão do movimento centrífugo de sua concepção. Como consequência, cada estado brasileiro é responsável, em regra, pelo processo e julgamento dos delitos, a contrario sensu dos artigos 109 e seguintes da Constituição Federal, referentes à competência da União.

Nesse sentido, os tribunais de Justiça são os órgãos máximos de cada estado para analisar os fatos e, ao final, dizer se ocorreu ou não um crime, definindo a respectiva autoria no caso de procedência da pretensão punitiva estatal.

O juiz de Direito, ao sentenciar monocraticamente em um processo criminal, analisa as provas constantes dos autos e, por fim, aplica o Direito à situação sub examine, condenando ou absolvendo o réu. Tanto a parte autora quanto a parte requerida, se insatisfeitos com a decisão, podem interpor recurso e solicitar ao tribunal uma nova apreciação do acervo probatório.

Prevista no artigo 593 do Código de Processo Penal, a apelação é, na realidade, um recurso ordinário, vale dizer, um instrumento jurídico comum, corriqueiro, manejado em circunstâncias normais do processo. Em razão dessa premissa, possui duplo efeito: devolutivo e suspensivo. É o que dispõe expressamente o artigo 597 do mesmo código (grifos nossos):

“A apelação de sentença condenatória terá efeito suspensivo, salvo o disposto no art. 393, a aplicação provisória de interdições de direitos e de medidas de segurança (arts. 374 e 378), e o caso de suspensão condicional de pena”.

Assim, uma vez prolatado acórdão pelo Tribunal de Justiça, onde o julgamento é colegiado, o estado define sua posição definitiva quanto ao caso, julgando procedente ou improcedente a acusação. Veja-se: são duas instâncias de magistrados — juiz de Direito em primeiro grau, e desembargadores em segundo grau — que analisam todo o acervo probatório e proferem a respectiva decisão, após longos e regrados procedimentos criminais, em que são amplamente respeitados a ampla defesa e o contraditório.

A par disso, existem os recursos extraordinários, ou seja, instrumentos jurídicos incomuns, excepcionais, que tratam de eventuais circunstâncias anormais do processo. Exatamente por esse motivo, tais remédios não possuem efeito suspensivo. A legislação pátria é expressa nesse sentido, ex vi do artigo 27, parágrafo 2º, da Lei 8.038/1990:

“Os recursos extraordinário e especial serão recebidos no efeito devolutivo”.

E do artigo 637 do estatuto de rito:

“O recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença”.

A mens legis dos referidos instrumentos processuais é precipuamente impor respeito: a) às leis federais, por meio de recurso especial endereçado ao Superior Tribunal de Justiça; e b) à Constituição Federal, por meio de recurso extraordinário encaminhado ao Supremo Tribunal Federal. É vedada, desse modo, nova análise da matéria de fato já apreciada em duas instâncias pelo estado. Nesse sentido, a Súmula 279 do STF dispõe que “para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário”, e a Súmula 7 do STJ aduz que “a pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”. E o mesmo entendimento é aplicável aos tribunais regionais federais.

O Pacto de São José da Costa Rica, conforme seu dispositivo colacionado acima, não estabelece triplo ou quádruplo grau de jurisdição para que alguém seja considerado culpado criminalmente. Exige apenas a comprovação legal da culpa (artigo 8º, item 2), que no Brasil já ocorre em primeira instância, exaurindo-se no tribunal ad quem em caso de eventual apelação, a qual, como consignado acima, se trata de recurso ordinário.

E tal interpretação também é cabível em relação à nossa Constituição Federal, pois o trânsito em julgado do recurso ordinário (apelação), quanto ao exame da matéria de fato, ocorre perante o Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal. Eventual recurso extraordinário (estrito senso ou especial) presta-se à preservação das normas federais, tutelando somente de forma indireta o direito de liberdade do recorrente, diante da necessidade de se comprovar a repercussão geral (artigo 102, parágrafo 3º), que extrapola os interesses das partes.

Vale dizer, caso fosse a mais legítima a interpretação de que apenas se admite a execução da pena após o resultado dos recursos extraordinário e especial, seria totalmente proscrita a existência de qualquer prisão cautelar, abarcada a preventiva. Todavia, a prisão processual é pacificamente reconhecida como constitucional, tanto pela jurisprudência quanto pela doutrina, em razão da necessidade fática e social de segregar autores de delitos graves e violentos.

Na contramão desse entendimento, em 2009 o Supremo Tribunal Federal julgou o HC 84.078, alterando sua jurisprudência anterior e condicionando a execução da pena ao trânsito em julgado da condenação, por entender imprescindível o exaurimento de todas as instâncias judiciais, inclusive extraordinárias. Criou-se, desse modo, a necessidade de aguardar o julgamento dos recursos extraordinário e especial porventura interpostos, e, por consequência, incentivou-se o manejamento indiscriminado de tais recursos, pois, segundo o novo entendimento, somente ao final de seu julgamento é que se poderia haver prisão como cumprimento da pena. Porém, sabe-se que, na prática, o julgamento desses recursos pode durar décadas. Explica-se: o STF, responsável por uma população de mais de 200 milhões de habitantes, possui só 11 membros, e o STJ, 33. É humanamente impossível, portanto, dar vazão aos incontáveis feitos que aportam diariamente nas referidos cortes.

A impunidade, obviamente, não é uma das finalidades da República Federativa do Brasil, a qual se traduz em um Estado Democrático de Direito, que, para permanecer existindo, necessita de segurança e respeito às leis vigentes. Do contrário, o Brasil vaticina-se ao insucesso como país e, principalmente, como nação, porque, ante a prática constante e não reprimida de crimes, acabam sendo tolhidos diversos direitos dos cidadãos, tais como a vida, a integridade física, a liberdade e o patrimônio, entre outros.

E, nessa toada, o Supremo Tribunal Federal alterou seu entendimento em 2016 ao julgar o HC 126.292, permitindo que a execução da pena seja iniciada com a confirmação em segunda instância. Nada mais justo e coerente, uma vez que não existe, em nenhum país do mundo, a interpretação de que o princípio da inocência autoriza a prisão apenas após o exaurimento de quatro instâncias judiciais.

Registra-se, por fim, que eventual situação flagrantemente patológica decorrente de decisão de segundo grau — o que somente ocorre de maneira excepcional — pode ser combatida por meio de Habeas Corpus perante os tribunais superiores. Dessa forma, não se fica ao desabrigo de proteção contra eventual abuso, equilibrando distintos postulados de índole constitucional.

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