Opinião

Criado para soltar, HC foi usado pelo Supremo para banalizar uso da prisão

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1 de março de 2016, 6h37

Muito se tem falado sobre a recente decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal que reconheceu a possibilidade da execução provisória da pena, em face de decisão condenatória mantida ou proferida pelos tribunais. Posicionamentos antagônicos já foram sustentados; discursos técnicos, raivosos, políticos e panfletários já foram produzidos. Muito em razão disso, tinha preferido silenciar, malgrado pequenas e descontraídas manifestações nas redes sociais.

Achava, como de fato acho, que em relação ao princípio da presunção de inocência tudo já havia sido dito, restando muito pouco a justificar novas e insistentes digressões. Não tenho a pretensão de discutir tese jurídica, mas a obrigação, como advogado criminal militante, de oferecer uma carta à liberdade e à justiça.

Acreditava que o exercício pleno da cidadania restava-se garantido e assegurado com o elenco irremovível dos direitos individuais previstos no artigo 5º da nossa Constituição. As crises institucionais, no entanto, carregam o fardo da intolerância, alimentam e instigam ruidosos defensores do claustro antecipado e das punições severas como forma de castigo e reparação imediata do mal. O Brasil é um país dos espasmos. O mais grave é atentarmos ao fato singelo de que não há nada de novo nesse tipo de reação, nesses espasmos de indignação. A disseminação da criminalidade, seja ela violenta, política ou de colarinho branco contribuirá sempre e de forma decisiva para a criação de uma “moralidade média” que autoriza o sacrifício dos direitos mais elementares da pessoa humana.

O momento de crise “reclama” respostas rápidas, acompanhadas de medidas expiatórias. Medidas, como as operações da Polícia Federal, que são acompanhadas de títulos e denominações chamativos; algemas desnecessárias; exposição da imagem dos acusados; vazamento clandestino de provas a despeito do sigilo processual, tudo na intenção de antecipar um julgamento, antes mesmo do início do processo judicial competente. A importância do Estado Democrático de Direito é relegada e imediatamente substituída pelos atos dos heróis de plantão que, travestidos como salvadores, ostentam símbolos, máscaras e togas. O cidadão não precisa de heróis. Aliás, infeliz do povo que ainda os reivindica.

Porém, voltemos ao Supremo Tribunal Federal. A decisão proferida no dia 17 de fevereiro pela maioria dos ministros que compõem aquele tribunal constitucional foi retirada paradoxalmente de um julgamento em sede de Habeas Corpus, instrumento constitucional justamente utilizado para garantir a liberdade de ir e vir, agora mitigada. O que era para soltar, banalizou o uso da prisão.

A decisão que contrariou posicionamento antes sumulado também teve os seus clichês, até porque cita e enaltece em diversas passagens que a efetividade da função jurisdicional penal “deve atender a valores caros não apenas aos acusados, mas também à sociedade”. A citação, contudo, não vem acompanhada de nota de rodapé, não conceitua o que são valores caros à sociedade. O que me é caro perante a sociedade não comporta juízos prematuros de valor, tampouco a personificação do Poder Judiciário em um único juiz. Os valores reclamados, com certeza traduzidos nessa “moralidade média”, são justamente aqueles forjados nas operações da polícia midiática e nas decisões planfetárias proferidas por um herói de plantão.

Diz ainda o voto condutor que são os tribunais de apelação que fazem o exame sobre os fatos e as provas da causa. É ali, segundo a novel decisão, que se exaure essa possibilidade, não se prestando o Supremo, tampouco o Superior Tribunal de Justiça, ao debate da matéria fática probatória, não se justificando o impedimento antes imposto à execução provisória da pena. Não esclarece a decisão que, não obstante os recursos especiais e extraordinários não admitam reexame de provas, a valoração delas é plenamente admitida, principalmente na via do recursal especial.

A prova produzida e examinada pelos tribunais de apelação, que foi capaz de condenar e impulsionar a execução imediata da pena segundo o Supremo, poderá, por lógico, ser valorada pelos tribunais superiores, especialmente quando houver a necessidade de se atribuir um novo e devido valor jurídico a fato incontroverso. Aos tribunais superiores recai, em última análise, a obrigação de zelar pela correta adequação das provas ao ordenamento jurídico, ou seja, em dizer se os fatos apurados podem ser considerados como uma conduta criminosa.

Não me parece razoável justificar a imposição prematura de uma pena privativa de liberdade a um acusado, quando ainda cabível recurso que pode entender que o tribunal que condenou agiu com error in judicando (equívoco do juízo na valoração das provas) ou com error in procedendo (erro no proceder, cometido pelo juiz).

Não me parece razoável atender aos reclamos sociais em momentos de crise, sob pena de revogarmos direitos e garantias individuais irrenunciáveis.

Não me parece razoável iniciar o cumprimento de uma pena quando, estatisticamente, segundo dados obtidos no voto do ministro Celso de Melo, 25% dos recursos interpostos nos tribunais superiores são providos, modificando-se substancialmente os decretos condenatórios.

Não me parece razoável ouvir que um recurso nos tribunais superiores pode durar anos, tornando impunes os acusados, sem que se discuta de forma transparente e pública os reais motivos desse demasiado retardo na prestação jurisdicional.

Não me parece razoável ter que pedir desculpas, simples desculpas, a um cidadão brasileiro que, após duradouro tempo preso em uma de nossas prisões infectas, teve o seu julgamento reformado por um dos tribunais superiores.

A quem de fato interessa a decisão do Supremo? Será que esses são os valores caros à sociedade?

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