Tribunal internacional

Em decisão inédita, ditador do Chade é condenado à prisão perpétua no Senegal

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31 de maio de 2016, 18h06

Pela primeira vez um líder político foi condenado por crimes contra seu povo por uma corte de outro país. Hissen Habré, ditador que governou o Chade entre 1982 e 1990, foi julgado e condenado no Senegal nessa segunda-feira (30/5), onde vivia exilado desde que fugiu ao ser deposto do poder. O processo foi conduzido pelas Câmaras Africanas Especiais (CAE), tribunal montado pela União Africana como uma versão local do Tribunal Penal Internacional. O réu foi condenado à prisão perpétua por crimes contra a humanidade, execução sumária, tortura e estupro.

Human Rights Watch
Hissen Habré foi condenado à prisão perpétua por crimes contra a humanidade, execução sumária, tortura e estupro.
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A criação das Câmaras Africanas Especiais teve como motivação a sensação, no continente africano, de que o Tribunal Penal Internacional, que fica em Haia, na Holanda, seria uma corte de homens brancos para julgar apenas líderes negros.

"A União Africana considera que o Tribunal Penal Internacional faz justiça seletiva e persegue apenas os africanos. A África deve provar que é capaz de julgar seus próprios filhos para que outros não o façam em seu lugar", disse Marcel Mendy, porta-voz das CAE, em entrevista à revista Slate.

Estima-se que Habré tenha ordenado a morte de 40 mil pessoas. Durante o julgamento, que durou três meses, o ditador foi forçado a ouvir 90 testemunhas que o acusaram de colocar pessoas em prisões clandestinas, onde eram torturadas e mortas. Habré, em nenhum momento, reconheceu a autoridade do tribunal para lhe julgar.

Gbertao Kam, juiz que sentenciou Habré, afirma que o processo demonstrou que os crimes cometidos pelo ditador ainda fazem as vítimas sofrerem. “Habré criou um sistema onde a impunidade e o terror reinavam. Ele não demonstrou nenhuma compaixão com as vítimas e não expressou nenhum arrependimento pelos massacres e estupros que foram cometidos”, disse o juiz ao jornal inglês The Guardian.

O advogado do antigo ex-comandante do Chade, Ibrahim Diawara, já disse que irá recorrer — ele tem 15 dias para entrar com o recurso. “Estamos bastante desapontados, porque diante de tudo que foi mostrado no julgamento e as provas que apresentamos de sua inocência, esperávamos a absolvição. Ele foi alvo de falsas acusações”, disse o defensor à agência Euronews.

Relatos de tortura
O juiz Kam afirmou no julgamento que Habré não só estava plenamente ciente dos crimes como era o mentor das ações. “Foi contado diretamente a ele as condições precárias dos prisioneiros de guerra, mas ele ordenou que nenhum preso saísse da cadeia, a não ser que fosse morto. O método dele era consistente: identificar inimigos do regime, prendê-los, torturá-los, sujeitá-los a horríveis condições, executá-los ou os transferir.”

Ponto fundamental para convencer a corte, segundo o magistrado, foram os testemunhos de abusos sexuais, feito por mulheres estupradas no regime de Habré e que foram ao Senegal relatar os fatos.

Segundo reportagem da rede norte-americana CNN, uma tortura relatada nos testemunhos foi a chamada “arbatachar”, que consiste em prender pernas e braços do preso atrás das costas, para que a corrente sanguínea seja interrompida e a pessoa assim sofre uma paralisia. Outra testemunha levou pedaços de madeira para poder demonstrar como eles eram utilizados para apertar a cabeça dos presos.

Exemplo internacional
A Anistia Internacional comemorou o veredito e o classificou como uma “vitória das vítimas que lutaram incansavelmente para garantir que Habré não saísse impune após cometer crimes contra as leis internacionais”. Gaetan Mootoo, membro da entidade que trabalha na região da África Ocidental, ressalta que a decisão pode ser o primeiro passo de um ciclo virtuoso. “Essa decisão histórica deve dar motivação para que a União Africana ou para que os países individualmente passem a proporcionar justiça às vítimas de crimes, mesmo que o autor esteja em outra nação dentro do continente.”

Para William Bourdon, advogado de uma das vítimas, o processo mostrou a maturidade do sistema penal africano. “Isso mostra que o povo africano absolutamente tem a capacidade de dar sua contribuição para algo tão complexo e sofisticado como é um processo na Justiça internacional.”

O secretário de Estado americano, John Kerry, disse por meio de comunicado que o veredito contra Habré é um "marco na luta global contra a impunidade". Além disso, fez alusão ao antigo apoio americano ao ditador. "Como um país comprometido com os direitos humanos e a busca pela justiça, esta também é uma oportunidade para que os Estados Unidos reflitam, e aprendam, sobre nossa conexão com eventos passados no Chade."

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