Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo chinês (Parte 45)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

25 de maio de 2016, 10h36

Spacca
1. Sobre lobos e cordeiros
Aos 12 de fevereiro de 1912, Pu-Yi, o imperador da China, Filho do Céu, Senhor dos Dez Mil Anos, abdicou do trono, por meio de um decreto, redigido por sua mãe, a imperatriz-consorte, no qual ele afirmava: “O país inteiro tende em direção a uma forma republicana de governo. É a vontade do Céu e é certo que Nós não poderíamos rejeitar o desejo do povo por uma questão de honra e glória de uma família. Nós, o Imperador, entregamos a soberania ao povo. Nós decidimos que a forma de governo será uma república constitucional. (…) Nós nos retiraremos a uma vida pacífica e esperamos desfrutar o respeitoso tratamento da nação”.

Pu-Yi continuaria, graças ao acordo celebrado por sua mãe, com o título simbólico de “imperador da Cidade da Paz Celestial”, enquanto a China iniciaria sua vida republicana após haver sido governada por reis e imperadores desde 3.500 antes de Cristo. A última dinastia, Qing, oriunda da Manchúria, empolgara o poder em 1644, quando derrotou a dinastia Ming. Os manchus tomaram o gigantesco império Ming após 30 anos de combates. Eles eram a prova da tese de Edward Said, no sentido de que os grandes impérios nascem e caem por meio de um processo histórico previsível: o núcleo governativo corrompe-se e degenera em razão do conforto e dos luxos da vida cortesã e é substituído por tribos ou hordas de regiões imperiais periféricas ou além de suas fronteiras, compostas por pessoas rudes e ascéticas, cuja disciplina e frugalidade conseguem dobrar os antigos senhores.

Os manchus, como descreveu Will Durant, entraram na China como lobos e, à vista do mansueto decreto de abdicação de Pu-Yi, deixaram o poder como cordeiros.

2. Os novos imperadores vermelhos
O país viveu desde 1912 sob regimes alternados de anarquia político-militar, governo corrupto de Chiang Kai-shek, ocupação imperial japonesa, guerra civil entre nacionalistas e comunistas, até a vitória das forças vermelhas sob a liderança de Mao Tsé-Tung em 1949.

Sun-Yat-Sen, primeiro presidente da República da China, mas sua administração durou muito pouco. Os acordos que levaram à queda da monarquia terminaram por conduzir a sua substituição, ainda em 1912, pelo general Yuan Shikai. Este último era oriundo da baixa nobreza e ingressou no Exército após o fracasso nos exames imperiais para o mandarinato, um meio de acesso à elite governamental na China havia séculos. Astucioso e muito hábil, ele ocupou cargos relevantes na dinastia Qing, até que traiu o regime e aliou-se à revolta militar dos republicanos, embora haja sido enviado pelo governo para combater os rebeldes. Sua traição foi decisiva para o fim da monarquia e seu preço devidamente cobrado em 1912.

Os sonhos de Yuan Shikai eram mais ambiciosos do que ser presidente da frágil República da China.  Em 1915, ele restaurou a monarquia, foi proclamado imperador e criou, de modo frustrado, uma nova dinastia, que não conseguiu sobreviver até o ano seguinte.

O Partido Nacionalista, fundado por Sun-Yat-Sen, reorganizou-se na década de 1920. No Ocidente, o partido é mais conhecido pela expressão Kuomintang e seu líder Chiang Kai-Shek ganhou fama mundial após haver vencido os senhores da guerra das principais províncias chinesas e expulsado os comunistas. Kai-Shek tentou reorganizar o país sob bases ocidentalizadas, com apoio norte-americano e britânico, até que seus planos frustraram-se com a violenta invasão do Exército Imperial japonês, que massacrou milhões de chineses nos anos 1930-1940.

Após a derrota dos japoneses, Chiang Kai-Shek enfrentou o Exército Popular, liderado por Mao Tse-Tung, o principal condutor do Partido Comunista Chinês, embora ambas as facções já lutassem pelo controle do país enquanto tentavam expulsar o invasor japonês no período de 1937 a 1945. Mesmo com apoio bélico e militar dos Estados Unidos da América, Chiang Kai-Shek não conseguiu fazer frente aos comunistas e teve de exilar-se na ilha de Taiwan, para onde transferiu a República da China, a qual, até os dias atuais, permanece com esse nome, a maior parte do mundo não mais lhe reconheça a titularidade da soberania chinesa. O  Kuomintang tem como ponto programático a retomada da China continental, embora isso hoje não passe de uma quimera, o que levou parte dos políticos de Taiwan a buscarem uma nova identidade nacional.

Mao Tsé-Tung e seu grupo correspondiam, ainda que em bases diferentes, à descrição do processo histórico de agentes da periferia que empolgam o poder central, até então dominado por degeneração, luxo e corrupção. Oriundo da etnia majoritária da China, alheio, portanto, à elite manchu, filho de camponeses, Mao Tsé-Tung educou-se à ocidental, no alvorecer da República, abraçando o comunismo desde a fundação do partido.

Com uma política de reforma agrária, modernização industrial e de ruptura com o passado monárquico e com o Kuomintang, o regime comunista chinês, no final dos anos 1950, afastou-se da matriz soviética e concebeu uma forma particular socialismo, que passou à história como maoísmo. Nos anos 1960, enquanto o Ocidente e os países da Europa Oriental, sob domínio soviético, eram varridos por rebeliões estudantis, Mao Tsé-Tung deu início à chamada Revolução Cultural. Nesse período, muitas das lideranças do Partido Comunista chinês foram destituídas e enviadas para campos de reeducação, quando não foram submetidas a julgamentos sumários e condenadas à morte. Curiosamente, muitos dos filhos e netos dos chefes partidários caídos em desgraça nos anos de 1966-1969 lideraram a abertura da China contemporânea para o capitalismo.

Nos anos 1980, com Deng Xiaoping, a China iniciou um gradual processo reforma das instituições econômicas, enquanto mantinha rígido controle político interno por meio do Partido Comunista. As assimetrias entre a abertura econômica e a manutenção do status quo político levaram a movimentos de contestação ao regime. No entanto, por diversas razões, uma delas o processo de transferência da base industrial do Ocidente para a China, em busca de mão de obra barata, e uma estratégia de desenvolvimento nacional conduzida pela liderança chinesa, o país experimentou crescimento exponencial de seu produto interno bruto. 

A China contemporânea é a segunda economia mundial, com projeções para ultrapassar os Estados Unidos em alguns anos, embora ocupe 90º lugar no índice de desenvolvimento humano e 84º lugar em renda per capita. Com diversos problemas ecológicos, sociais e  políticos, ao exemplo de restrições à liberdade de imprensa e um regime partidário não democrático, as conquistas chinesas impressionam em diversos campos da economia, da saúde e da educação, especialmente para um país que era, há pouco mais de duas décadas, associado à pobreza e ao subdesenvolvimento.

Os imperadores vermelhos recolocaram, a um custo que a História ainda não avaliou, o Império do Centro em uma posição de importância no contexto internacional que há séculos seria impensável.  

3. Educação no Império do Centro
A educação é um ponto chave na transformação chinesa. O país tem hoje um invejável índice de 96,4% de pessoas alfabetizadas. Sua população universitária é a maior do mundo.

Nesse aspecto, é interessante retomar a tradição chinesa do mandarinato e a importância das provas de acesso à burocracia imperial, tal como descrito em uma das primeiras colunas desta série:

“O Império da China era governado ‘de cima para baixo por uma burocracia confuciana, recrutada com base no sistema de exames que talvez seja o mais exigente de toda a história’. De fato, ‘aqueles que aspiravam a uma carreira no serviço imperial tinham de se submeter a três etapas de exaustivas provas realizadas em centros de exame constituídos especialmente para essa finalidade, como aquele que ainda hoje pode ser visto em Nanquim: um enorme complexo murado contendo milhares de minúsculas celas um pouco maiores que o lavatório de um trem’. Nesses lugares tão estreitos, ‘o único movimento permitido era a entrada e saída de funcionários para repor comida e água, ou recolher dejetos humanos’. Alguns dos postulantes, ‘ficavam completamente loucos sob a pressão’[1] .

Essa descrição dos exames para ingresso no serviço do Senhor dos Dez Mil anos, o Filho do Céu, o imperador da China, nos tempos da dinastia M’ing, é interessante para se comprovar que, mesmo com séculos e quilômetros de distância, a mística dos exames admissionais integra a cultura de diferentes povos. E ela vem sempre acompanhada de um momentum, um curto hiato de tempo no qual os candidatos têm de demonstrar sua capacidade para vencer o desafio imposto por examinadores. Seria este o coroamento de anos de preparação, com a abertura de um pedaço do céu para os vencedores e a oferta de uma vida mais perigosa e incerta para os derrotados”.

Durante séculos, a formação da burocracia imperial dava-se por meio de comprovação de conhecimentos tidos como essenciais na sociedade chinesa, em geral pautados pelo ideal do confucionismo. Da mesma forma que no Império Otomano, em relação à burocracia e às forças militares, esse modelo gerou uma série de problemas políticos, administrativos e um sério atraso nos campos de tecnologia e de inovação. Se, por um lado, sua conservação permitiu uma enorme longevidade ao regime monárquico chinês, ao mesmo tempo foi determinante para sua lenta e inexorável decadência, que se acentuou no século XIX, com o avanço das potências ocidentais sobre o território e a soberania nacionais. Em poucas décadas, a monarquia perdeu a legitimidade social e política, vindo a ser substituída por meio século de governos ditatoriais e guerras civis.

Mesmo com a violenta transformação da sociedade chinesa no último século, especialmente após o comunismo, percebe-se que o mandarinato, o confucionismo e a visão hierárquica da educação permaneceram no inconsciente coletivo. Exemplo disso está na maneira como o ensino superior foi encarado por muitos segmentos sociais: um fator de status e de ascensão, quando, nos anos 1970, as universidades foram reabertas. Não há um direito fundamental ao acesso à educação superior e sim uma ampla política de competição dos jovens que desejam nele ingressar, seja por limitações óbvias em um país com 1,357 bilhões de habitantes (dados de 2013), seja por uma política de recrutamento dos melhores.  

Nos dias atuais, o ensino superior na China deixou de ser um passaporte exclusivo para a ascensão social. As exigências aumentaram, ao exemplo do domínio por línguas estrangeiras, e a segmentação entre escolas de elite e escolas comuns, além da valorização dos profissionais que tiveram parte ou toda a formação superior (graduação e pós-graduação) em universidades estrangeiras de prestígio. Os modelos de formação ainda se centram em valores como disciplina, domínio de conteúdos e estudo sério, controlável por meio de exames e avaliações constantes, que definem o futuro dos alunos. Evidentemente que esses pontos hoje estão sob o escrutínio da crítica internacional. A ênfase na memorização e em modelos standard são os alvos preferenciais dessas restrições. No entanto, esses pontos não podem ser dissociados do confucionismo, o mandarinato e a hierarquia, ainda que substituídos em seu conteúdo por novos valores, como o culto à figura de Mao (o imperador vermelho), ao ideário do Partido e à centralização decisória em todos os níveis.

4.Plano de exposição para as próximas colunas
Tratar da educação jurídica na China em poucas colunas semanais é algo profundamente difícil. Não há uniformidade do sistema educação, da remuneração dos docentes ou de sua formação, de currículos e outros aspectos que servem de parâmetro para um exame comparativo do Direito chinês e como são formados seus juristas em face de outros países já examinados nesta série. Com as necessárias escusas quanto a tantas limitações, entendeu-se, contudo, ser impossível não  apresentar ao leitor brasileiro ao menos algumas nuances sobre o estado-da-arte da matéria na segunda mais importante economia do mundo contemporâneo.

Com todas essas limitações, inicia-se hoje uma viagem ao complexo e milenar Império do Centro.

***

A série de colunas sobre ensino jurídico chega esta semana à Ásia, após ter atravessado Europa, América, África e Oceania. É o último continente e a série aproxima-se de seu fim.

Faz tanto tempo que a coluna Direito Comparado trata do problema de “como se forma um jurista em alguns lugares do mundo?”, que alguns leitores já se esqueceram que esta é uma coluna mais ampla e não apenas sobre Ensino Jurídico. Para muitos leitores, foi a oportunidade para um primeiro contato com os trabalhos do colunista. Trata-se de uma experiência que trouxe enorme satisfação e, mesmo com todas as falhas, tem-se prestado a discutir alguns mitos sobre Educação e Direito, além de informar e abrir um importante diálogo com a História. A promessa de que esse trabalho será reunido em um livro será cumprida. Até a próxima coluna!


[1] FERGUSON, Niall. Civilização: Ocidente versus Oriente. Tradução de Janaína Marcoantonio. 1. reimpressão. São Paulo: Planeta, 2012. p. 69.

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  • é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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