Relações Internacionais

Projeto de lei dos EUA põe em xeque princípio da imunidade soberana dos países

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19 de maio de 2016, 11h02

O Senado dos EUA aprovou na terça-feira (17/5) um projeto de lei que pretende autorizar as famílias das vítimas dos ataques às Torres Gêmeas de Nova York, em 11 de setembro de 2001, a processar o governo da Arábia Saudita. O projeto de lei ainda tem de ser aprovado pela Câmara dos Deputados. Se aprovado, será vetado pelo presidente Obama, como a Casa Branca já anunciou. No entanto, o Senado deverá derrubar o veto do presidente.

Com isso, entrará em vigor a lei "Justiça Contra Patrocinadores do Terrorismo” (Justice Against Sponsors of Terrorism Act), que permite aos americanos processar qualquer país que patrocine ataques terroristas no território dos EUA. Entretanto, a lei tem alvo certo: a Arábia Saudita. A razão é que 15 dos 19 sequestradores dos aviões eram sauditas, o que leva muita gente (incluindo políticos) a supor que o país tem culpa no cartório.

O governo americano já manifestou desaprovação ao projeto de lei. E os jornais, de uma maneira geral, também. O jornal Los Angeles Times disse que o Congresso, se aprovar essa lei, vai “abrir a Caixa de Pandora” — expressão que descreve uma ação que pode parecer pequena ou inocente, mas que, no final as contas, tem consequências altamente negativas.

O jornal Los Angeles Times escreveu, em editorial, que a pior consequência, não só para os EUA mas para todo o mundo, será que essa lei vai atacar diretamente o princípio da imunidade soberana dos países. Enraizado a legislação internacional, a imunidade soberana impede que cidadãos de um país processem governos de outros países (com raras exceções).

É verdade que governos que merecem ser punidos por suas políticas ou ações são protegidos por esse princípio. No entanto, ele impede que governos sejam vítimas de ações judiciais “fabricadas” ou politizadas, diz o jornal.

O jornal Christian Science Monitor concorda com o ministro de Relações Exteriores da Arábia Saudita, Adel bin Ahmed Al-Jubeir, segundo o qual o projeto de lei aprovado pelo Senado americano pretende substituir a lei internacional pela lei da selva. Isso porque esse será o futuro das relações internacionais, se a lei entrar em vigor.

Tiro pela culatra
Para o Christian Science Monitor, se os americanos começarem a usá-la, essa lei irá se revelar um tiro que saiu pela culatra. É uma previsão com a qual o Los Angeles Times concorda. No momento em que os americanos começarem a processar a Arábia Saudita, muitos países irão aprovar legislação que autoriza seus cidadãos a processar os Estados Unidos em suas cortes.

A fila é enorme, dizem os jornais. Inúmeras famílias tiveram vítimas (de morte, invalidez ou prisão errada) nas invasões do Afeganistão e Iraque. Existem inúmeros suspeitos de terrorismo que, embora inocentes, foram levados, interrogados e torturados em prisões secretas dos EUA pelo mundo.

A grande maioria dos prisioneiros de Guantánamo eram, no final das contas, inocentes. Mísseis americanos mataram inocentes no Afeganistão, Iêmen e outros países. Sírios podem responsabilizar os EUA pelas atrocidades que os rebeldes, patrocinados pelos americanos, cometeram no país, dizem os jornais.

O problema, apesar da suposição de que seria inócua a ação de um cidadão de um país pequeno contra os EUA, é que qualquer ganho de causa tem como consequência a exigência de pagamento da indenização aprovada na Justiça ou o congelamento (ou confisco) de ativos dos EUA no país.

Assim, existe, desde já, a previsão que um juiz americano poderá determinar o congelamento de ativos da Arábia Saudita nos EUA, para garantir o pagamento das indenizações concedidas. Qualquer país poderá fazer a mesma coisa com os EUA. E, nesse caso, os EUA têm muito mais a perder, porque têm ativos em todo o mundo.

No briefing desta quarta-feira (18/5) na Casa Branca, o secretário de Imprensa Josh Earnest desenvolveu um raciocínio semelhante. “Temos de levar em consideração as consequências indesejáveis de uma legislação como essa”, ele disse. “Ela pode colocar os EUA em risco em todo o mundo… é uma proposição perigosa”,.

“Nossa preocupação não diz respeito somente ao impacto que causará em nosso relacionamento com um determinado país [no caso, a Arábia Saudita]. Temos de nos preocupar também com um importante princípio da legislação internacional. Toda a noção de imunidade soberana está em risco e isso poderá ter consequências significativas para os Estados Unidos”, ele declarou, ao prever que outros países irão adotar legislação similar.

Sem provas
Nada garante que as famílias das vítimas serão realmente indenizadas pela Arábia Saudita. Os Estados Unidos não têm provas do envolvimento do reinado saudita nos ataques de 11/9 — até porque nunca fizeram muito esforço para produzi-las.

Existe uma presunção de que 28 das 838 páginas produzidas pela comissão do Congresso sobre os ataques, que foram mantidas secretas por ordem do ex-presidente Bush, podem conter alguma informação mais concreta. Mas, por enquanto, elas continuam “classificadas”, o que impede a divulgação.

A “Comissão de 11/9” disse, em um relatório separado, que “não encontrou provas de que o governo da Arábia Saudita, como instituição, ou altas autoridades do governo saudita, individualmente, tenham financiado os ataques”.

Os familiares dos mortos em 11/9 já moveram uma ação coletiva contra a Arábia Saudita. Um juiz federal trancou a ação em seu nascedouro, dizendo que os demandantes não apresentaram provas suficientes contra o governo do país. Além disso, a Arábia Saudita invocou uma lei americana, de 1976, para pedir o trancamento da ação.

A Lei das Imunidades dos Serviços Estrangeiros (Foreign Services Immunities Act) protege governos estrangeiros contra ações movidas por cidadãos americanos. Essa é uma lei que já foi “furada” algumas vezes, pelas exceções que abre.

Por exemplo, juízes federais já permitiram o prosseguimento de dois processos que envolviam assassinatos sancionados por estados. Um deles se refere ao assassinato do ex-embaixador chileno nos EUA, Orland Letelier, supostamente por integrantes do serviço de inteligência chileno e por dois exilados cubanos. O outro foi de um jornalista chinês, que criticava o governo de Taiwan.

A Líbia também foi processada pela explosão do voo 103 da PanAm, sobre a Escócia, em dezembro de 1988, matando 270 pessoas. A Líbia negociou um acordo de US$ 2,7 bilhões para encerrar o processo. Mais recentemente, a Justiça dos EUA autorizou empresas americanas a processar a Argentina, no caso dos fundos abutres (conforme noticiou a ConJur, aqui e aqui). As empresas ganharam a causa.

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