Olhar Econômico

O Cade construiu uma jornada vitoriosa e não pode parar

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

19 de maio de 2016, 8h05

Spacca
A sigla Cade foi trazida ao panorama jurídico brasileiro pelo Decreto-Lei 7.666, de 22 de junho de 1945, primeiro diploma brasileiro, que objetivava reprimir, administrativamente, o abuso do poder econômico. A Comissão Administrativa de Defesa Econômica (Cade) foi o órgão autônomo, subordinado ao presidente da República para executar as ações do referido decreto-lei, de cunho protecionista e nacionalista. Após poucos meses de vigência, sem que houvesse sido implementado, o referido decreto-lei, mais conhecido como Lei Malaia, deixou de vigorar, em 29 de outubro, com a queda de Getúlio Vargas e a assunção de José Linhares, que, por meio do Decreto-Lei 8.167/1945, de um único artigo, o revogou expressamente.

Dezessete anos depois, a 10 de setembro de 1962, promulgou-se a Lei 4.137, que arrolou exemplos de abuso de poder econômico, criou um órgão de Estado, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), incumbido da apuração e repressão de tais abusos, além de conter normas administrativas e processuais. Durante a vigência dessa lei, muito embora tenha-se procedido a inúmeras averiguações preliminares, poucos foram os processos julgados pelo órgão; sendo generalizado o sentimento de que sua efetividade foi relativa. Somente na vigência do Decreto-Lei 93.323, de 23 de janeiro de 1986, as decisões do Cade aumentaram em número, em qualidade e em relevância, passando ao conhecimento do grande público, face à sua importância intrínseca e ao interesse dos meios de comunicação.

No momento em que a economia brasileira se abria ao mundo, a Lei 8.158, de 8 de fevereiro de 1991, acabava com o controle de preços e iniciava o processo de privatização das empresas estatais; bem como corporificou um órgão de governo, a Secretaria Nacional de Direito Econômico, com competências concorrentes com o Cade, embora lhe tivesse sido preservado a competência privativa de julgar. As dificuldades provenientes da dualidade de regras de concorrência — a Lei 8.158/91, vigendo concomitantemente com dispositivos não revogados da Lei 4.137/62 — provocaram as discussões que levariam à aprovação da Lei 8.884, de 11 de junho de 1994. Com ela, o Cade transformou-se em autarquia federal; discriminaram-se suas competências, estremando-as das da Secretaria de Direito Econômico (SDE) e da Secretaria de Acompanhamento Econômico (Seae); suas decisões passaram a ser finais no âmbito do Executivo; minimizou-se sua carência estrutural etc.

Ainda na vigência da Lei 8.884/94, operou-se a consolidação do Direito Concorrencial no Brasil, inobstante a crônica falta de pessoal do Cade, da SDE e da Seae, passando a existir a sensação, tanto interna, quanto internacionalmente, de que o Brasil possuía “autoridade antitruste”. O Cade alcançou posição de órgão judicante e natureza jurídica de autarquia federal, com inaugural competência de controlar as estruturas econômicas nacionais. Desde então, cresceu em importância, visibilidade, deferência internacional, e se legitimou em seu papel de prevenir e reprimir as infrações contra a ordem econômica. 

Com a entrada da Lei 12.529/2011, no dia 29 de maio de 2012, o Cade passou a ter nova estrutura: Superintendência-Geral, Departamento de Estudos Econômicos e o Tribunal Colegiado Administrativo. O Departamento de Proteção e Defesa Econômica, da Secretaria de Direito Econômico, do Ministério da Justiça foi incorporado à nova estrutura. Por sua parte, a Seae deixou de instruir processos e passou a se concentrar em seu papel de competition advocacy.

Muitas foram as inovações da nova lei antitruste brasileira: o ponto de maior mudança foi a do controle de estruturas, com  a introdução do controle prévio dos atos de concentração; alteração substancial no tocante às multas; estabelecimento de critérios objetivos relativamente à confidencialidade dos documentos apresentados pelas empresas; definição dos ramos de atividade econômica dos agentes; subsunção de transações realizadas em bolsas de valores com fundos de investimentos etc.

Em um momento em que o Brasil carece de bons paradigmas, o Cade representa um dos mais destacados exemplos de instituição de Estado. Desde 1994, quando a Lei 8884/94 viabilizou a construção de uma efetiva autoridade de defesa da concorrência, tem-se conseguido manter uma estabilidade política ao mesmo tempo em que se incrementa a análise das concentrações e das condutas anticompetitivas. Do ponto de vista político, estiveram à frente da autoridade pessoas indicadas por diferentes presidentes da República, sem que jamais houvesse solução de continuidade: o presidente Fernando Collor de Mello apontou Ruy Coutinho do Nascimento; o presidente Fernando Henrique designou Gesner de Oliveira e João Grandino Rodas; o presidente Lula escolheu Elizabeth Farina, Arthur Badin e Fernando Furlan; e a presidente Dilma elegeu Vinícius Marques de Carvalho.

Ao longo desses mais de 20 anos foi possível observar uma sequência estruturada e harmônica na condução do Cade, cujos resultados são referendados por aferições e prêmios internacionais. Manter essa ação é obrigação. A autarquia é considerada de fato independente, o que motiva os seus servidores a analisar com cautela e segurança processos que envolvem vultosos valores e sensíveis práticas comerciais.

A complexidade da burocracia exige dedicação diária e estratégica. São nove membros investidos de mandato, e a harmonia passa pela confiança que o corpo técnico tem nos seus dirigentes. Eis o segredo para viabilizar decisões com coerência e segurança.

É óbvio que as corporações jurídicas e econômicas brasileiras dedicadas ao antitruste, as empresas e a sociedade em geral contribuíram grandemente para o extraordinário desenvolvimento do antitruste no Brasil. Contudo, se não tivesse havido no seio do Cade, mormente nos últimos 25 , a seriedade; a continuidade; a colaboração institucional; o respeito pelo que as gestões anteriores fizeram, independentemente do ideário político de cada qual; certamente o resultado não seria o que vemos. A evolução do antitruste no Brasil, quer no aperfeiçoamento das leis e das instituições, quer na evolução e propriedade dos precedentes administrativos e, até mesmo, na infraestrutura física não teria havido, sem o trabalho contínuo e harmônico das “autoridades da concorrência”.

Em cerca de 15 dias, terminará sua elogiável gestão como presidente do Cade, Vinícius Marques de Carvalho, espera-se que, incontinenti,  o presidente da República, em exercício, indique o sucessor e que o Senado da República realize, logo, a sabatina. A jornada vitoriosa e exemplar do Cade não pode parar!

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    é professor titular da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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