Segunda Leitura

Justiça Criminal vive dilema entre garantismo e crimes contemporâneos

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

15 de maio de 2016, 9h30

Spacca
A aplicação da Justiça Criminal encontra-se em um dilema de difícil solução: garantir os direitos individuais que a Constituição a todos assegura ou dar combate às novas formas da criminalidade contemporânea.

Nosso Código Penal é de 1940, muito embora alterado em diversos pontos por leis posteriores. Na época em que ele foi editado, o Brasil e o mundo eram outros. Mas, ainda assim, nele estão em vigor crimes que os costumes tornaram condutas banais, como o do artigo 234, par. único, inc. III, que pune com detenção de 6 meses a 2 anos ou multa realizar em lugar público “recitação de caráter obsceno”.

No outro extremo, recentemente vêm surgindo crimes complexos, como os praticados contra a ordem econômica, que exigem do juiz, entre outros, conhecimentos sobre economia, comércio exterior, regras do sistema bancário e sistemas judiciais de outros países.

O impasse dessas duas realidades distintas, por certo, não é apenas brasileiro. Alcança também países da Europa, bem como da América Latina, estes pela influência que recebem da Espanha e Portugal.

Na verdade, cá como lá, há uma divisão entre os acadêmicos do Direito Penal e do Processo Penal e a sociedade. Os primeiros a reclamar tratamento garantista, ou seja, como diz Luigi Ferrajoli “um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos”.[i] Já a sociedade reclama o oposto, um Direito Penal mais efetivo e que, acima de tudo, lhes garanta segurança para seguir nas suas vidas.

Atento ao impasse, o professor l Jesús-Maria Silva Sanchez aponta para um Direito Penal de duas velocidades, a primeira para os que lesionam ou põem em perigo bens individuais ou supra individuais e, a segunda, para delitos de menor relevância, aos quais não se atribuiria pena de prisão.[ii]

Não é fácil analisar como o Brasil se coloca diante do problema, porque não temos um sistema uniforme, mas sim de uma legislação fragmentada e nem sempre convergente. Procurando dar uma visão sistêmica ao assunto, é possível dizer que convivem no nosso sistema realidades distintas, tratadas de forma semelhante.

De um lado os crimes tradicionais, que normalmente atingem bens individuais e que estão previstos no Código Penal. Destes, nota-se que a maioria absoluta, quiçá 80%, permite acordo entre o Ministério Publico e o acusado, seja na forma de transação no Juizado Especial Criminal (quando a pena máxima for de 2 anos) ou suspensão do processo na Vara Judicial (quando a pena máxima superar 2 anos, mas a mínima não for maior que 1 ano de reclusão).

Considerando que nestes acordos os acusados não vão para a prisão e que na maioria dos outros crimes a pena de prisão poderá ser substituída por prestação de serviços (por exemplo, estelionato, art. 171), fácil é ver que a proposta de Silva Sanchez já é, praticamente, cumprida no Brasil.

Na verdade, o Judiciário só se revela severo e impõe o encarceramento nos crimes com violência contra a vítima, no tráfico de entorpecentes ou quando o réu é reincidente. Nos demais, a pena não será a de prisão. Por exemplo, em um crime de incêndio (art. 250 do CP), cuja pena mínima é de 3 anos, o condenado cumprirá a pena em regime aberto. No caso de estupro (art. 213 do CP) a pena mínima é de seis anos, permitindo o cumprimento da pena, desde o início, em regime semiaberto.

Na outra ponta temos os crimes da modernidade e que se encaixam na primeira hipótese de Silva Sanchez, ou seja, aqueles para os quais a pena de prisão é adequada. Nesta linha podemos separar três situações.

A primeira é a Lei 13.260, de 16/3/2016, que disciplina os crimes de terrorismo. Editada para dar suporte legal a eventuais atentados nas Olimpíadas que se realizarão no segundo semestre de 2016, referida lei não tem precedentes. Mas, dentro ou fora das Olimpíadas, poderá ela vir a ser aplicada no futuro, dependendo da exacerbação da divisão na sociedade brasileira ou, até, por fundamentos de extremismo religioso. Por ora, são apenas expectativas.

A segunda hipótese é a dos casos relacionados com a criminalidade organizada não financeira, ou seja, a que se dedica ao tráfico de entorpecentes, roubo de cargas e roubo de valores. Um exemplo, o praticado no dia 4 de abril passado, contra uma empresa de guarda de valores, em Santos (SP).[iii] Munidos de material e armamento moderno, o grupo lançou um caminhão contra um portão, derrubando-o e empurrando um carro forte que servia de proteção. Munidos de escudos protetores, explodiram o cofre e retiraram vultosa quantia guardada. Chamada a Polícia Militar, os assaltantes enfrentaram-na com vantagem de armas, inclusive uma metralhadora giratória, e fugiram passando por um bloqueio que lhes foi preparado. A operação durou 50 m e gerou três mortos. Foram recuperados R$ 8,9 milhões.

A terceira situação é a dos crimes contra a ordem econômica. Este tipo de crime vem ocupando espaços na mídia, por força de decisões judiciais que mantiveram presos empresários de abastada situação financeira e políticos conhecidos. Os chamados crimes de “colarinho branco” despertam a atenção pelos extremamente altos valores envolvidos. Até 15 de setembro de 2015, segundo palestra de agente do Ministério Púbico Federal, somente da Petrobras teriam sido desviados mais de R$ 6,2 bilhões.[iv]

Nessas três espécies de delinquência, evidentemente, a base legal e as decisões judiciais devem ser mais rigorosas, face aos bens jurídicos atingidos. No terrorismo as vítimas são terceiros, regra geral sem qualquer vínculo com o caso. Na criminalidade organizada se está diante de pessoas que agem de forma profissional, com eficiência e resultados. Nos crimes de “colarinho branco” a lesão causada à sociedade é de maior gravidade, pois impede que valores desviados possam ser aplicados em políticas públicas de saúde, educação e outras áreas sabidamente carentes.

Mas, ainda que haja condenação e encarceramento, cumpre lembrar que a Lei das Execuções Penais oferece diversas oportunidades aos presos de bom comportamento. Assim, “para cada obra lida (literária, clássica, filosófica ou científica) a pena poderá ser diminuída em quatro dias”.[v] O STJ aceitou a tese de que a leitura na prisão pode significar abatimento do tempo de prisão, mesmo não estando prevista na Lei de Execuções Penais.[vi]

Ainda, o indulto pode significar uma forma de diminuir os efeitos de uma condenação. O Decreto 8.615, de 23/12/2015, beneficiou condenados a pena privativa de liberdade superior a oito anos que tenham cumprido um terço da pena até 25 de dezembro de 2015, com filho ou filha menor de 18 anos ou com doença crônica grave ou deficiência que necessite de seus cuidados.

Em suma, o Sistema de Justiça Criminal é, ainda agora, pouco efetivo e apresenta situações díspares, que merecem tratamento diverso. De um lado, crimes de menor gravidade, que merecem solução através da conciliação ou pena alternativa. De outro, crimes que atingem uma gama difusa de pessoas, causando um mal grave e que dificilmente pode ser mensurado. Os casos de criminalidade especial, entre os quais se incluem os crimes ambientais com repercussão coletiva, devem ser tratados com maior rigor.

Para tanto, são necessárias não apenas leis severas, mas evitar-se outras que venham a beneficiar os acusados, como se fez na Itália após a Operação Mãos Limpas, inclusive reduzindo à metade o prazo de prescrição dos crimes.[vii] Por outro lado, os tribunais de Justiça precisam criar varas especializadas para o processamento de crimes com peculiaridades especiais, dando aos seus magistrados a capacitação necessária.

Em suma, como bem observa Douglas Fischer, “O Direito Penal deve passar por uma reavaliação da concepção de bem jurídico, pois se está diante de uma Constituição comprometida com valores de cunho transindividual e com a realização da justiça social”. Os bens jurídico-penais precisam ser vistos como concretizações dos reais interesses dos indivíduos, diretos ou indiretos, que, por sua importância fundamental, merecem a máxima proteção do Direito Penal.[viii]

 


[i] FERRAJOLI, Luigi.  Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal, 2ª. ed. São Paulo: RT, 2006, p. 786.

[ii] SANCHEZ, Jesús-Maria Silva. A expansão do Direito Penal, 3ª. Ed. São Paulo, RT, p 188-192.

[vi] HC nº 312.486 – SP, rel. Sebastião Reis Júnior, j. 1/6/2015.

[vii] Revista Piauí, v. 116, maio 2016, p.30.

[viii] FISCHER, Douglas , Delinquência Econômica, Conclusão XXXV. Verbo Jurídico. Porto Alegre, 2014, p. 230.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente eleito da "International Association for Courts Administration - IACA", com sede em Louisville (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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