Estado da Economia

Legislador tributário precisa de mais clareza para criar segurança jurídica

Autor

  • José Maria Arruda de Andrade

    é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP) livre-docente e doutor pela mesma instituição professor do programa master de pós-graduação em Finanças e Economia da Escola de Economia de São Paulo Fundação Getulio Vargas (FGV EESP) foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

15 de maio de 2016, 9h05

Spacca
Temos tratado em nossa coluna da praticabilidade em matéria tributária, e uma das facetas desse tema é a segurança jurídica na interpretação e aplicação cotidiana da legislação.

Nossa ênfase tem recaído sobre a tarefa de legislar em matéria tributária (leis e até mesmo regulamentos) de forma a atender aos requisitos de certeza, transparência, simplicidade e modicidade na relação tributária. Ou seja, não estamos a tratar da busca da praticabilidade no ato de interpretar, mas no de legislar.

Uma lei tributária que imponha novo tributo – ou alteração de tributo já existente – deve evitar potenciais dificuldades de interpretação que gerem verdadeiros obstáculos ao atendimento por parte dos contribuintes, o que configuraria falta de previsibilidade e, em sua dimensão jurídica, insegurança.

O ambiente tributário brasileiro é marcado por um forte grau de litigiosidade. Afora as teses tributárias propostas em juízo, acerca de inconstitucionalidades ou ilegalidades de novas leis que representam aumento da carga tributária, torna-se praticamente impossível para os grandes contribuintes evitar um elevado número de litígios.

Nossa estrutura federalista, com seus três níveis de entes competentes para instituir e cobrar tributos (esfera federal, estadual e municipal), faz aumentar essa complexidade.

Conflitos entre tributação de ICMS (mercadorias) e ISS (com prestação de serviços); entre serviços que ora sofrem cobrança do estado, ora dos municípios (publicidade e telecomunicação, por exemplo); entre os próprios entes da federação (toda sorte de guerra fiscal entre estados e entre municípios), além das próprias disputas em torno da delimitação do campo de incidência de cada tributo ou de sua base de cálculo, fazem com que a administração do passivo fiscal de grandes contribuintes extrapole qualquer critério de racionalidade.

Muito embora parte considerável dessa situação decorra de um sistema tributário com inúmeros entes federados (além da União, temos 26 estados e Distrito Federal e mais de 5.560 municípios), da existência de diversos tributos e de uma pauta constitucional de desenvolvimento econômico-social nada simples, fato é que, continuamente, novas leis tributárias são promulgadas para criar situações especiais, aumento de campo de incidência, aumentos de todos os tipos e isenções e regimes especiais peculiares e de contornos imprecisos.

Nesse contexto de produção legislativa, podemos localizar os dois temas que nos chamam atenção no texto de hoje, o da praticabilidade e o da segurança jurídica.

A busca pela praticabilidade não pode ser feita apenas levando em conta o fator de simplificação de fiscalização e arrecadação (como acontece quando se estabelece pautas fiscais e plantas de valores, ou seja, tributos que levam em conta valores médios estimados).

Ela deve ser almejada também quando se trata de simplificar a legislação de cada tributo, buscar melhores definições dos termos relevantes, quando se trata de definir incidências e base de cálculo e, acima de tudo, quando se trata de buscar um pouco de harmonização da situação tributária de categorias semelhantes de contribuintes (igualdade nas desigualdades).

É importante ressaltar que o processo de interpretar e aplicar uma norma jurídica não é simples. Mais do que descobrir sentidos preexistentes em textos normativos, o aplicador do direito constrói sentidos, buscando, por dever constitucional até, argumentos jurídicos para justificar a sua decisão[1].

Ao contrário do que muitas vezes aparece na doutrina, não se trata simplesmente do uso ou não de “conceitos indeterminados” ou de “termos vagos”. Os conceitos são, todos eles, indeterminados. Aprendemos a reagir a comandos e não a acessar essências objetivamente existentes; a linguagem nos serve como instrumentos e ferramentas de interação.

Ainda assim, quando pugnamos pela necessidade de se evitar leis obscuras e desnecessariamente complexas, pensamos justamente nos ecletismos, obscurantismos e na falta ou excesso de regulamentação infralegal, sempre potencialmente marcados pela sombra nefasta do consequencialismo interpretativo (aqui, representado na figura da interpretação fazendária que busca entre as possíveis alternativas de sentido apenas a que permita a maior arrecadação).

Leis mais simples, sem armadilhas de ausência de definição de conceitos, sem camadas de exceções, sem favores fiscais a serem revogados na primeira troca de ministro ou ao sabor das notícias de jornais, fortalecem a previsibilidade dos agentes econômicos e a segurança jurídica das relações tributárias.

Se, após as inovações de Keynes no seio da ortodoxia da teoria econômica neoclássica, aprendemos a reconhecer a importância da incerteza no jogo das trocas econômicas, sabendo como o agente econômico busca as suas informações de investimento nos dados mais próximos, recentes e disponíveis, acentuar o risco sistêmico inerente à atividade econômica com leis tributárias desarrazoadas e impregnadas de armadilhas, certamente não melhora a situação.

Daí a importância da busca pelo ideal de segurança jurídica na elaboração das leis tributárias. Tributos complexos, regimes jurídicos excepcionais, isenções tributárias construídas com base em critérios exóticos de eleição de contribuintes, com ausência de contrapartidas e objetivos claros, contribuem para a incerteza no mercado.

Quem conseguiria defender um regime especial de tributação favorecida como o da desoneração da folha de pagamentos, que elege contribuintes ora por atividade econômica, ora por produtos? Que é anunciado como incentivo tributário, mas não beneficia a totalidade dos setores eleitos? Que é prorrogado após o prazo previsto em lei para o seu término e, após uma simples troca de mandado presidencial e de ministro da Fazenda, sofre um aumento de tal forma acentuado que praticamente expulsa os contribuintes que estavam naquela situação jurídica?

Como justificar a existência de contribuições sociais com feições de verdadeiro imposto sobre o valor adicionado e a eleição de inúmeras cadeias de produção e comércio com regime favorecido, que praticamente não só as isenta de recolher tributos, mas gera créditos que se acumulam, beneficiando outros produtos não eleitos pela medida?

Como justificar uma sistemática de arrecadação não-cumulativa que determina o direito a crédito com gastos com insumos que, até hoje, dependem de uma definição por parte da Administração Fazendária e do Poder Judiciário?

Os exemplos multiplicam-se, mas a questão permanece: reformas tópicas ou amplas não podem prescindir da busca por minimização da obscuridade dos seus termos (certeza); pela transparência dos objetivos pretendidos com regimes especiais e gastos indiretos de renúncia fiscal; pela simplicidade de compreensão e obediência aos ditames legais; e, ainda, pela modicidade dos custos dos contribuintes ao obedecerem a lei e da administração fazendária em sua atividade fiscalizatória. Todos esses fatores representam, defendemos, a busca por segurança jurídica em matéria tributária.

 


[1] Sobre o tema da interpretação e aplicação do direito (hermenêutica jurídica), a partir da filosofia da linguagem, tratei no meu livro: Interpretação da Norma Tributária. São Paulo: MP Editora, 2006. Sobre teoria da argumentação, com esse deslocamento para os argumentos de justificação, ver o meu livro: Economicização do Direito Concorrencial. São Paulo: Quartier Latin, 2014. 

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    é Professor Associado de Direito Econômico e Economia Política da USP, livre-docente em Direito Econômico e doutor em Direito Econômico e Tributário pela USP. Foi pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique, Alemanha.

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