Limite Penal

Com cegueira branca de nosso tempo,
onde ver o lugar do poder?

Autor

  • Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

    é professor titular aposentado de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná professor do programa de pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) professor do programa de pós-graduação em Direito da Univel (Cascavel) especialista em Filosofia do Direito (PUC-PR) mestre (UFPR) doutor (Università degli Studi di Roma "La Sapienza") presidente de honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória advogado membro da Comissão de Juristas do Senado que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP (hoje Projeto 156/2009-PLS) advogado nos processos da "lava jato" em um pool de escritórios que em conjunto definiam teses e estratégias defensivas.

13 de maio de 2016, 8h00

Spacca
Invochiamo il potere di punire per difendere la nostra sicurezza. Ma come ci difendiamo dal potere di punire?” (IPPOLITO, Dario. Lo spirito del garantismo: Montesquieu e il potere di punire. Roma: Donzelli Editore, 2016, capa)

Dentre os inúmeros espetáculos de luz e som feitos pelo mundo para apresentar lugares e civilizações, poucos têm o brilho daquele que se leva a efeito em Chichen Itza, península de Yucatan, México. O espetáculo é grandioso e contundente, o que vai facilitado, de certo modo, pela magnitude dos Maias e seu império. Em geral sentados na arquibancada do estádio de um chamado juego de pelotas, os espectadores voltam-se para a pirâmide, o Templo de Kukulkan, no qual se exibe esculpida na rocha a cabeça de uma grande serpente que no equinócio e na forma como foi construída, ao receber a luz do sol como que a projeta, justo para simbolizar a fertilização da terra. Como sói acontecer, no momento da abertura do espetáculo apagam-se todas as luzes e se produz um grande estrondo. Com ele um locutor anuncia que “antes eram as trevas e se fez a luz…”. Ao se acenderem, novamente, as luzes, explica a simbologia do nascimento da civilização Maia e o jogo de luzes vai ajudando a mostrar a imensa beleza do sítio arqueológico.

A alusão é conhecida e tenta mostrar a passagem da escuridão — quiçá absoluta — para um momento no qual, pela palavra, aquilo que se ilumina faz sentido. O que se tem antes, no escuro, não se pode dizer; e assim o é não porque não exista (pois pode até existir), mas porque se não tem linguagem para dizer. Do que lá está, não se sabe; e se não se sabe, não se pode dizer. Vai-se dizer, porém, quando iluminado pela razão, na qual as palavras, vinculadas entre si, passam a fazer sentido. E assim o é porque a luz de uma palavra primeira, mitológica, acaba por ser colocada no lugar da escuridão, daquilo que se não sabe para dizer, justo para se poder dizer. É, então, a luz da palavra que se coloca — como anunciado pelo locutor do espetáculo magnífico de Chichen Itza — no lugar das trevas; e tudo ganha o brilho da vida, dado que as palavras, desse modo, passam a interligarem-se, de modo a que se vai construindo cadeias e elas exprimem os sentidos que se dá à vida e pela vida afora. 

José Saramago, com seu Ensaio sobre a Cegueira (São Paulo: Companhia das Letras, 1995), produziu um romance que, talvez, valeu-lhe o premio Nobel de Literatura, mas legou ao mundo um texto excepcional e que permite uma miríade de leituras e sentidos. Explorando em variados aspectos a cegueira, desvela o humano daquilo que seria a epidemia de uma doença desconhecida e que acomete a todos, menos a esposa de um médico. Em torno dela, um grupo de cegos é trancafiado em um manicômio e deixado à sorte naquilo que dizia com a construção da vida no interior.

No livro, há a cegueira dos que enxergam e nisso reside a demanda por uma culpa que se pensa ter. Enxergar, portanto, não é sinônimo de paz, se nisso residisse a verdade que se tem quando se vê. Ao contrário, justo aí se mostra a certeza da impossibilidade de se ter um domínio do todo, de uma verdade toda e, por conseguinte, aí está a grandeza de se aceitar a parcialidade como possibilidade de gozo, de desfrutar a vida como ela se apresenta, tudo sem perder a esperança porque nela reside o futuro. Como expresso no livro, “a cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança” (página 204). Enfim, boa parte dos cegos, literalmente, veem, como expresso, já ao final do livro, pelo médico, em  diálogo com sua mulher: “Por que foi que cegámos. Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão. Queres que te diga o que penso. Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos. Cegos que vêem. Cegos que, vendo, não veem” (página 310).

Há no livro, também, uma cegueira — pode-se dizer — interna, quando se demonstra que a luz da razão não é suficiente para iluminar aquilo que em nós não se sabe, mas que está lá e que é justamente o que somos: “…o certo e o errado são apenas modos diferentes de entender a nossa relação com os outros, não a que temos com nós próprios, nessa não há que fiar, perdoem-me a prelecção moralística, é que vocês não sabem, não o podem saber, o que é ter olhos num mundo de cegos, não sou rainha, não, sou simplesmente a que nasceu para ver o horror, (…) Ninguém fez perguntas, o médico só disse, Se eu voltar a ter olhos, olharei verdadeiramente os olhos dos outros, como se estivesse a ver-lhes a alma. A alma, perguntou o velho da venda preta, Ou o espírito, o nome pouco importa, foi então que, surpreendentemente, se tivermos em conta que se trata de pessoa que não passou por estudos adiantados, a rapariga dos óculos escuros disse, Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos.” (p. 262). Essa coisa — que somos — e que não tem nome, a nós é inconsciente. Eis a escuridão da qual — em outro cenário — falou o locutor do espetáculo de Chichen Itza. Basta, porém, olhar nos olhos dos outros para verdadeiramente – como queria o médico do livro — ver-lhes a alma? Pois aí está o grande desafio: saber daquilo que “somos” pelo meio do qual se dispõe, ou seja, a linguagem, essa estrutura de signos — ahimé, como dizem os italianos — tão incompleta, tão furada, tão parcial. Neste ponto, o Cogito ergo sum de Descartes, como formulado, não faz sentido.

Por outro lado, a cegueira determinada pelo não enxergar o que está na escuridão, externa e internamente, produz em cada um, antes de tudo, ansiedade; mas não raro angústia e outras formas de distúrbios. Aí se funda o medo e, no contraponto, a exigência de ordem, de organização. A lei, como se sabe, começando por aquela constitucional, ocupa nas democracias um lugar de primazia quando em jogo está a regulação do medo, de modo a se poder ter segurança e, no final das contas, paz. Está pressuposto, contudo, que a ordem vai respeitada e cumprida (embora sempre na devida interpretação), sob pena do fim não ser alcançado e se estar, nessas condições, a flertar com a guerra, com a barbárie.

Por isso, em tempos de muita confusão (cegueira?) sobre o lugar das coisas na organização das leis, por ignorância ou má fé, cabe a citação de Dario Ippolito na epígrafe: “Invocamos o poder de punir para defender a nossa segurança. Mas como nos defendemos do poder de punir?” Em jogo, como é sintomático, está o lugar do poder; e esse só faz sentido se estiver submetido à lei. Eis por que não há, no espaço democrático, “ponto fora da curva”. Afinal, quando se está “fora da curva”, sem dúvida se está a serviço de algum interesse, de alguma ideologia. A cegueira, nesta matéria, não alcança tudo.

Convite
O Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, em conjunto com o Programa de Pós-graduação em Direito da Unibrasil, em Curitiba, promove de 18 a 20 de maio de 2016 as XIII Jornadas de Direito e Psicanálise, com o tema Intersecções e Interlocuções a partir de Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. Nada mais atual em um Brasil carente de sentidos para seus destinos. Por certo, não se pode ter a pretensão de encontrar as respostas necessárias mas, sem dúvida, se sobre o tema não se pensar e se elas não forem buscadas, tende-se a ter mais do mesmo. A razão — sabe-se bem do que o mundo já viveu — tende, naturalmente, a reproduzir a mesma estrutura que se busca superar.

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