Academia de Polícia

O pré-jogo criminal para além das fantasias dogmáticas tradicionais

Autor

  • Leonardo Marcondes Machado

    é delegado de polícia em Santa Catarina doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná pós-graduado em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha) especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC e professor em cursos de graduação e pós-graduação.

10 de maio de 2016, 12h38

Spacca
A investigação preliminar não é lugar para amadores. Independente da posição ocupada pelo sujeito (investigador, investigado, defensor, fiscal etc), necessário que tenha plena ciência do espaço ocupado e das peculiaridades desta fase instrutória prévia, uma vez que seus efeitos serão determinantes na partida principal (o processo penal).    

O pré-jogo criminal é um campo delicado. Muitos jogadores, inclusive experientes profissionais de acusação ou defesa, encontram dificuldades quando pretendem atuar de maneira estratégica na investigação preliminar. Acostumados com a dinâmica do processo, cujo procedimento é marcado pelo contraditório pleno e pela ampla defesa, além de garantias quanto à imparcialidade do julgador (e outras), acabam se perdendo nas encruzilhadas da investigação. É preciso lembrar que diversas ferramentas utilizadas no processo gozam de eficácia limitada ou mesmo esvaziada na instrução prévia como exceções de suspeição, impedimento, incompetência, litispendência e coisa julgada, além da própria estrutura recursal.

Alguns ainda não se deram conta que nem sempre as estratégias processuais surtem resultados positivos quando aplicadas ao procedimento investigatório preliminar. Indispensável, portanto, desenvolver planos de ação específicos para cada uma das fases da persecução penal, sempre mantida a coerência estratégica global.

Talvez um dos momentos mais delicados do pré-jogo criminal seja mesmo o das prisões em flagrante. Não só pela gravidade das suas consequências no tocante à liberdade do sujeito como também pelas condições em que desenvolvido esse procedimento administrativo. Não há, na maioria dos casos, qualquer controle judicial ou ministerial prévio. A prisão é fruto normalmente da atividade dos órgãos de segurança pública e investigação criminal, sob a chancela do delegado de polícia, sem interferência de controller processual algum, mesmo porque se está diante ainda de uma “notícia crime” (chamada pela doutrina de “cognição coercitiva”). Muitas vezes sequer inquérito policial ou outro procedimento de investigação existe a respeito do caso. Somente depois de realizada a prisão que terá lugar a deliberação do magistrado com eventual parecer do órgão do ministério público, segundo prevê o Código (artigo 310 do CPP).

O que fazer, então, no exato momento do auto de prisão em flagrante? Como se comportar durante esse procedimento? Quais são as táticas que devem ser levadas em consideração? Essas perguntas são fundamentais para aqueles que desejam concretizar as suas pretensões ou realizar as suas expectativas no pré-jogo criminal. Desconsiderar a necessidade de um bem elaborado plano estratégico, seja de qual lado for, constitui puro amadorismo. Vejamos algumas situações que podem ocorrer nesta etapa da persecução criminal. 

1. Detido por tráfico, “solto” por uso
É bastante comum a apresentação nas delegacias e centrais de plantão policial de pessoas “detidas em flagrante” por supostos crimes de tráfico de drogas, mas que acabam “soltas” pelo entendimento do delegado de polícia quanto à tipificação de posse ou porte para uso próprio, a partir de interpretação desenvolvida com base nos critérios legais diferenciadores previstos na Lei de Drogas (artigo 52, inciso I, da Lei 11.343/2006).

Os condutores, normalmente policiais militares ou guardas municipais, testificam a respeito de pretenso comércio ilegal, insistindo nesse tipo de imputação criminosa, mas não são capazes de apresentar um conjunto de elementos fáticos que convençam aquela autoridade policial, com atribuição para decidir sobre a prisão em flagrante, dessa mesma conclusão.

Para além de toda a questão criminológica em torno da insana guerra às drogas e da criminalização da pobreza (vide a denúncia da LEAP Brasil), trabalhando apenas com a dinâmica dos jogos preliminares, esse tipo de situação pode funcionar como interessante chave de leitura.

Se o “condutor” de pretensa hipótese flagrancial tem alguma expectativa em relação ao caso concreto (por exemplo: assegurar a prisão de alguém), melhor seria que entendesse o processo decisório em questão e se adequasse ao jogo necessário para efetivação de suas pretensões. Simplesmente reclamar ou esbravejar diante da tipificação conferida, estabelecendo muitas vezes relação conflituosa com a autoridade policial responsável, pouco (ou nada) adianta. Aliás, pelo contrário, pode inclusive prejudicar futuras análises.    

Em outras palavras, se a pretensão do “condutor” é convencer o delegado de polícia a respeito da existência de certo crime em flagrante que autorize a prisão do conduzido, que apresente um caso com suficientes elementos informativos incriminadores, na linha do entendimento daquela autoridade específica com atribuição para decidir sobre a manutenção (ou não) da liberdade de alguém naquele momento da persecução penal. Do contrário, a sua jogada será sempre em vão.

2. Quando a confissão parece um bom negócio
Imagine o autor de um furto que, cinco dias após o crime, é surpreendido em posse dos objetos subtraídos. Uma confissão genérica na fase preliminar pode surgir como opção viável para garantir a liberdade imediata do sujeito quando se percebe o risco de uma prisão em flagrante por receptação, mesmo porque admissível retratação em juízo.

Trata-se, claro, de uma tática arriscada, mas viável ou mesmo necessária em alguns casos, que apenas deve ser empregada após sério cálculo dos possíveis “danos colaterais” (ou melhor: “processuais”). Evidente que toda e qualquer decisão sempre apresenta uma carga do tipo “imponderável”, um espaço de imprevisibilidade, o que não significa dizer que por isso deve ser tomada de forma impensada, de maneira não refletida. A diminuição possível do grau de irracionalidade faz parte do jogo.

Note, portanto, que uma estratégia de defesa criminal que englobe tanto a investigação quanto o processo não precisa necessariamente pautar-se pela repetição de teses; aliás, as táticas de oposição e retratação, quando manejadas a partir da teoria das provas e das garantias decorrentes da inexigibilidade de autoincriminação, podem surtir efeitos positivos, principalmente se os jogadores tiverem ciência prévia do respectivo órgão julgador.

Por óbvio, conhecer os envolvidos no jogo criminal, sejam as partes sejam os terceiros, facilita (e muito) a escolha das táticas a serem adotadas durante a investigação preliminar e o processo penal. Se, por exemplo, já é possível saber que o julgador provavelmente será fulano e o mesmo não costuma valorar como prova a confissão na fase policial, essa tática pode ser uma boa escolha (sem descurar, no entanto, dos reflexos dessa opção “em longo prazo”, já que a partida raramente encerra na primeira instância).        

3. Não se esqueça dos “outros” fatores decisórios
O delegado de polícia, responsável por deliberar sobre a prisão em flagrante de alguém, antes mesmo de ser uma autoridade pública que opera na instância do direito, é um “sujeito no mundo”.

Assim, determinado pela linguagem e influenciado, ainda que de modo inconsciente, pela “fala corporal”. Inegável, como sustentou Morais da Rosa em sua coluna nesta ConJur, que o comportamento não verbal possa ser fonte de indicativos relevantes no decorrer do pré-jogo criminal. Afinal de contas, a maior parte da nossa linguagem é corporal, e o corpo nos entrega muitas vezes, já que uma parcela significativa de nossas ações não passa pelo sistema reflexivo, sendo automáticas e intuitivas. “Desde cruzar os braços, arregalar os olhos, fazer cara de espanto, expor sarcasmo, jogar o corpo para trás, cruzar os braços, tudo passa pelo o que dissemos e fundamentalmente pelo o que nosso corpo diz, mesmo quando estamos despistando”, destaca o autor.  

Outros fatores, também não mencionados pela dogmática tradicional, aparecem com frequência no processo decisório levado a cabo nas delegacias de polícia e nos foros criminais. A realidade dos jogos penais, com apoio na psicologia cognitiva, denuncia essa instância não jurídica das chamadas “decisões inautênticas” (Lenio Streck).

A influência de elementos como fome, calor, estresse, humor, cansaço não pode ser desprezada. Alguém acha mesmo, v.g., que um delegado, durante as vinte e quatro horas de um plantão, com inúmeras ocorrências apresentadas em cidades de porte médio ou grande, normalmente submetido a uma estrutura deficitária, vai decidir exatamente da mesma maneira ao longo de todo o seu expediente laboral? Evidente que não!

Indubitável que a maioria dessas circunstâncias não depende da postura dos demais agentes envolvidos na etapa preliminar de apuração criminal, porém conhece-las é indispensável até mesmo para traçar novas táticas ou revisar planos antigos pelas contingências do caso.

Para (não) concluir…
Há, de fato, mais coisas entre a construção formal dogmática do sistema de investigação preliminar e a real dinâmica dos pré-jogos criminais do que supõe a tradicional teoria processual penal. Bem-vindos aos jogos!

Autores

  • Brave

    é delegado da Polícia Civil em Santa Catarina, mestrando em Direito pela UFPR, especialista em Direito Penal e Criminologia, além de professor de Direito Processual Penal em cursos de graduação e pós-graduação.

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