Relações complexa

"Novos modelos de negócio são usados para driblar regulação jurídica do país"

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8 de maio de 2016, 6h51

Spacca
O novo Código Comercial, atualmente em tramitação na Câmara, vai dar segurança, previsibilidade e clareza para as relações comerciais ao consolidar em um único diploma legal os princípios da atividade empresarial, na opinião da advogada Ana Frazão, especialista na área.

Ela explica que o Código Civil, de 2003, ao unificar as obrigações civis e comerciais, focou nas relações civis e não conseguiu compatibilizar a complexidade e especificidade das trocas comerciais. “As relações comerciais são diferentes, têm objetivo de lucro e marcadas por profissionalismo, diferente da relação entre dois cidadãos”, disse, em entrevista à ConJur. O Código Civil revogou a primeira parte do Código Comercial de 1850, que correspondia ao comércio terrestre. Do antigo diploma, vale até hoje a parte correspondente ao comércio marítimo.

A atualização do código, prevista no Projeto de Lei 1.572/2011, abarcará não apenas as atividades estritamente comerciais, mas também a área de serviços, o setor industrial e do agronegócio. Ana é relatora da comissão de juristas nomeada pela Câmara para analisar o projeto. O diploma consolidará no ordenamento jurídico brasileiro a chamada “teoria da empresa”, que diz que a empresa constitui uma atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. Na opinião dela, o diploma poderá reduzir o chamado custo-Brasil, reduzir a burocracia e melhorar a competitividade das pequenas e médias empresas.

Ex-conselheira do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Ana defende a extinção da responsabilidade objetiva das empresas que adotam programas de compliance para coibir a prática de atos ilícitos. Segundo ela, os agentes econômicos não fazem mudanças institucionais “por amor à causa” e devem receber contrapartidas. “Se a empresa descobre a ilicitude e toma as providências, reportando-se às autoridades, não há razão para que seja responsabilizada”.

Ana é doutora em Direito Comercial e professora adjunta de Direito Civil e Comercial da Universidade de Brasília. Na instituição, já foi diretora da Faculdade de Direito. Em abril deste ano, retomou o exercício da advocacia consultiva e contenciosa ao virar sócia do Gustavo Tepedino Advogados.

Leia a entrevista:

ConJur — Quais são as novidades do novo Código Comercial em tramitação atualmente no Congresso?
Ana Frazão —
Não havia nenhum diploma legislativo que consolidasse os princípios da atividade empresarial. O Código Civil, ao unificar as obrigações civis e comerciais, focou nas relações civis. As relações comerciais são diferentes, têm objetivo de lucro e marcadas por profissionalismo, diferente da relação entre dois cidadãos. Procura resolver também problemas pontuais que o Código Civil trouxe para a regulamentação da matéria empresarial, como o caso das sociedades limitadas. É o tipo societário mais usado no Brasil, mas tem atualmente um modelo burocrático e pesado do ponto de vista de gestão, incompatível com a pequena e média empresa. Existe hoje uma situação de extrema instabilidade por causa da jurisprudência que aplica o Código de Defesa do Consumidor, de forma equivocada, às relações empresariais.

ConJur — O Código Comercial é um contraponto ao diploma de defesa ao consumidor?
Ana Frazão —
O Código de Defesa do Consumidor é anterior ao novo Código Civil e acabou sendo o grande diploma do Direito Privado no período pós-Constituição de 1988. Normal que todas as áreas fossem beber naquele código para solucionar problemas. Nas relações civis, a compatibilidade é mais próxima e viável. Nas relações empresariais, porém, distorce a competição. O projeto do novo Código Comercial aponta as diretrizes estruturantes da atividade, unificando toda a matéria comercial. No Brasil, é muito difícil empreender e investir por causa do custo-Brasil, burocracia e morosidade. A preocupação do Código é trazer segurança, previsibilidade e clareza para as relações comerciais.

ConJur — O Código pode melhorar o ambiente de negócios no país?
Ana Frazão —
Não podemos achar que o código muda a realidade. Sabemos que o problema da atividade empresarial no Brasil é mais amplo, envolve circunstâncias políticas, corrupção e tantas outras coisas que distorcem os mercados e as atividades. Uma legislação adequada e clara não é o único passo, mas importante.

ConJur — O novo código melhoraria o mercado do ponto de vista concorrencial?
Ana Frazão —
O projeto regula aspectos da concorrência, mas não entra no âmbito do que é chamado Direito da Concorrência, que trata daqueles agentes que têm posição dominante, que interferem no mercado. O novo código trata de problemas concorrenciais chamados privados, entre agentes que não têm posição dominante. Poderá evitar que haja concorrência parasitária e assegurar um ambiente comercial competitivo. Em relação ao grande agente, continuará a valer a legislação antitruste.

ConJur — Faltam leis antitruste no Brasil?
Ana Frazão —
Não. Temos uma legislação moderna. O Cade conta com um arcabouço legal adequado para lidar com a complexidade do tema. A autoridade concorrencial age de maneira reativa. Ao analisar uma grande operação, as empresas interessadas apresentam laudos econômicos ou pareceres dizendo por que a operação merece ser aprovada. O órgão não pode ignorar esse material, mas é preciso ter um corpo técnico que possa dar suporte aos conselheiros para fazer um contraponto. As empresas trabalham com times de 20 pessoas, entre advogados e economistas. O conselheiro tem um ou dois assessores. Essa falta de pessoal é compensada pela disposição e dedicação do corpo técnico. Mesmo assim, é complicado imaginar que a defesa da concorrência tenha que depender do grau de sacrifício do corpo técnico do Cade.

ConJur — Em 2015, o órgão quase parou por falta de indicação de conselheiros…
Ana Frazão —
Ficou sem quórum para julgar os processos. O Cade não pode parar porque faz controle prévio. Há um prazo em que a operação precisa ser analisada, sob pena de ser considerada aprovada por decurso de prazo, que é de 240 dias. Pode ser prorrogado, mas em circunstâncias excepcionais. A demora na indicação e aprovação pelo Senado dos conselheiros aponta a falta de sensibilidade política para lidar com um órgão que tem importância estratégica. A defesa da concorrência é uma defesa do Estado Democrático. Ela lida com o controle do poder econômico que, se for objeto de abuso, gera uma série de distorções, que vão muito além das distorções de mercado.

ConJur —  Falta cultura de respeito à concorrência no Brasil?
Ana Frazão —
Sim, mas as coisas estão melhorando. Fiquei no Cade de 2012 a 2015, cheguei a julgar caso de cartel registrado em cartório. O cartel foi criado, registrado e havia a obrigação de respeito aos preços acordados. Isso mostra a ausência de cultura concorrencial. Os envolvidos não tinham nem mesmo a percepção de que aquilo era um ilícito.

ConJur — Você se lembra de algum outro caso curioso?
Ana Frazão —
Já julguei um cartel que foi orquestrado sem querer pelo Ministério Público ao negociar um Termo de Ajustamento de Conduta. Houve uma unificação dos preços praticados pelas empresas porque estavam cobrando muito pelo produto. A questão concorrencial não foi priorizada na ocasião. Respeito muito o trabalho do MP, não é fácil fazer esses arranjos, mas é preocupante quando uma solução capitaneada por um agente do Estado leva a um resultado anticompetitivo.

ConJur — A execução de programas de compliance deveria atenuar a penalidade das empresas?
Ana Frazão —
A regulação dos comportamentos de agentes econômicos deve ser pensada também fora da alternativa tradicional baseada na ameaça de sanção. Deve ser valorizada a autorregulação. O mercado é um conjunto de interações complexas entre os agentes econômicos. As regras jurídicas são apenas uma parte do jogo. Ou seja, a prática pode levar à ineficácia completa de uma regra jurídica. Temos que investir na mudança da cultura interna das empresas, do padrão ético, induzi-las a fazer essa mudança de dentro para fora. O compliance é um programa em que a própria empresa muda as suas práticas, esclarecendo os funcionários para que não cometam ilícitos. Envolve monitoramento de todos os funcionários, custa caro e dá trabalho. Não se pode imaginar que os agentes econômicos vão fazer mudanças institucionais drásticas por amor à causa. Deve haver incentivos econômicos, contrapartidas. Tanto na lei anticorrupção como na lei antitruste, um programa de compliance pode, no máximo, servir como um atenuante da pena das pessoas jurídicas. Isso deve mudar.

ConJur — O fato de uma empresa ter programa de compliance deveria afastar a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica?
Ana Frazão —
Sim. A empresa cria um programa de integridade, faz tudo que é possível para evitar o ilícito. Se descobre a ilicitude e toma as providências, reportando-se às autoridades, não há razão para que seja responsabilizada. 

ConJur — Como essa discussão se dá no caso de joint ventures?
Ana Frazão —
Uma das vantagens desse tipo de contrato é a possibilidade de alocação do risco, afastando a solidariedade. Cada empresa mantém a sua autonomia jurídica e não reponde por dívidas e atos ilícitos da parceira. O problema é quando o risco é alocado também em relação a terceiros vulneráveis, como trabalhadores e consumidores, e interesses difusos, como ambiental e de concorrência. A liberdade que as partes têm de criarem novos arranjos contratuais não pode chegar a esse ponto.

ConJur — Foi o que aconteceu no caso da Samarco, no acidente de Mariana?
Ana Frazão —
Nesse caso há um agravante porque a relação entre a Vale e a BHP é o que chamamos de joint venture societária. Criaram uma pessoa jurídica, que é a Samarco, da qual cada uma é sócia com 50%. Essa associação se operacionalizou por meio da criação de uma nova pessoa jurídica, o que deixa ainda mais clara a relação de controle exercido pelas duas empresas. Nesse caso, há mais razões para sustentar a responsabilidade dos controladores pelos atos da controlada.

ConJur — Quais são os desafios desses novos modelos de negócio para a política de concorrência?
Ana Frazão —
Os novos modelos de negócio estão sendo organizados por meio de contratos inovadores. A grande questão é quando os contratos começam a interferir em direitos de terceiros, em normas de ordem pública. Esses arranjos têm sido utilizados para driblar a regulação jurídica. Demorou muito tempo, no direito à concorrência, para chegarmos à conclusão, por exemplo, de que joint venture é um ato de concentração. A atividade empresarial é criativa. Quando um fenômeno é dominado, o mercado encontra outros mecanismos para fugir da regulação. Hoje, o grande desafio, por exemplo, são os contratos híbridos, como o de franquia, e o reflexo nas relações entre o franqueador e o franqueado. Precisamos valorizar a importância dessas inovações, mas manter certo ceticismo para não se deixar seduzir excessivamente.

ConJur — Qual é a sua opinião sobre a MP 703, que muda as regras para acordos de leniência?
Ana Frazão —
Acho que a preocupação com a manutenção da empresa é fundamental, sempre defendi essa tese em todos os meus trabalhos. Mas não podemos confundir a empresa com empresário. Se a questão é preservar a empresa, por que não se imaginou uma troca de controle? A MP não prevê a possibilidade de alienar o controle da empresa envolvida com corrupção e que quis colaborar. Não é um confisco, é uma venda compulsória, será remunerada. O Estado pode participar desse processo. Veja o que o Estado brasileiro fez na época das privatizações: uma verdadeira mobilização para ajudar na criação dos consórcios. Essa movimentação também poderia acontecer hoje para assumir o controle das empresas envolvidas em casos de corrupção.

ConJur — O que o empresariado acha dessa ideia?
Ana Frazão —
Sair do negócio é a maior punição que um controlador pode ter. É difícil imaginar que o mercado vai mudar pelo simples fato da assinatura de um acordo de leniência. No Cade, havia uma chiadeira quando a medida era desinvestimento em atos de concentração para restaurar o mercado que foi corrompido pela prática contra a competição.

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