Olhar Econômico

Um estudo de caso envolvendo o Direito brasileiro e o Direito Canônico

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

5 de maio de 2016, 17h00

Spacca
É esclarecedor o seguinte estudo de caso, que envolve o Direito brasileiro e o Direito Canônico. Uma ordem religiosa, pessoa jurídica de direito privado canônico, ajuizou, em São Paulo, ação declaratória de nulidade contra a Sociedade Educacional e Assistencial, pessoa jurídica constituída e com sede no Brasil, alegando, em suma, que, em desobediência aos seus superiores, esta se desvinculou da ordem religiosa, passando a gerenciar autonomamente os respectivos bens e obras. Inobstante os diretores da sociedade tenham professado voto de obediência, negaram-se a cumprir o decidido pelos superiores da ordem no sentido de ajustar e harmonizar os estatutos da sociedade, preferindo alterar o respectivo estatuto, dele retirando o relacionamento com a ordem. Os diretores e membros da sociedade sofreram processos canônicos específicos, tramitados em Roma. A ação declaratória de nulidade busca a proteção da lei civil brasileira, relativamente aos bens e às obras em mãos da sociedade; além de objetivar a invalidação das alterações, levadas a cabo, por maioria, no respectivo estatuto.

Por largos séculos, findo o Império Romano do Ocidente, as circunscrições territoriais de poder do mundo ocidental eram tuteladas pelo papa e pelo imperador do Sacro Império Romano Germânico. A desestabilização trazida pela descoberta do novo mundo, pela Reforma Protestante e pela retomada do conhecimento da Filosofia e dos valores da antiga Grécia ensejou o afastamento do jugo, tradicionalmente, imposto por tais potentados. Os legistas do rei da França criaram, então, a doutrina da soberania absoluta, segundo a qual a figura do Estado Soberano figuraria no ápice do poder, sendo incontrastável e detendo o poder de distribuir competências e de querer coercitivamente. Em decorrência disso, hodiernamente, o globo terrestre divide-se em cerca de 200 Estados ditos soberanos, que possuem seu próprio ordenamento jurídico independente, autônomo e sem compromisso de coerência com o dos demais[1].

As antigas circunscrições territoriais ocidentais continuaram a aplicar o Direito Romano, que com o tempo passou a adquirir particularidades e a se diferenciar do paradigma, a ponto de se tornarem direitos autônomos. Sendo nítido, por volta do século XII, que cada circunscrição tinha um Direito próprio, era necessário um mecanismo para dizer qual seria o Direito aplicável no caso de atos ou negócios jurídicos que extrapolassem os limites de uma única circunscrição. Surgiu, graças aos doutrinadores da época, a primeira vertente internacional do Direito: o Conflictum Legum (conflito de leis ou Direito Internacional Privado), consoante a qual, por meio de elementos do próprio ato ou negócio jurídico — fatores de conexão — se poderia chegar ao Direito aplicável. Modernamente, o Direito Internacional Privado, inobstante o nome, é ramo jurídico do ordenamento interno de cada Estado. Dessa forma, o Brasil, atualmente, tem o seu próprio Direito Internacional Privado, que indica a lei aplicável a fatos interjurisdicionais; sistema esse que possibilita que juiz brasileiro aplique regras jurídicas de Estado estrangeiro, na medida em que o fato ou ato interjurisdicional possua conexão mais estreita com tais direitos.

A segunda emanação internacional do Direito surgiria nos anos 1.500, quando o globo passou a ser dividido em Estados, todos se dizendo soberanos. Surgiu, então, o jus gentium (Direito Internacional Público), para regular as relações externas dos Estados. Ao mesmo tempo, o antiquíssimo costume de concluir tratados internacionais foi mantido e aperfeiçoado. Tratados internacionais são acordos entre pessoas jurídicas dotadas de personalidade de direito internacional, que detêm o poder de concluí-los (jus tractuum), versando sobre qualquer assunto lícito e regidos pelo Direito Internacional Público. O poder de concluir tratados é apanágio dos Estados e de algumas outras pessoas jurídicas de direito internacional; sendo a Santa Sé a mais antiga e singular dentre tais pessoas.

O Brasil, individualmente, é reconhecido como Estado soberano desde 1822. A Santa Sé é pessoa de direito internacional público sui generis, que detém o direito de concluir tratados e o vem exercendo há séculos. Tal não se interrompeu nem mesmo no período de 1870 a 1929, quando sua soberania territorial foi descontinuada, por força da unificação territorial italiana. A Santa Sé e o Brasil são duas pessoas de direito internacional detentoras de soberania, possuindo, portanto, seu próprio ordenamento jurídico: a primeira, o Direito Canônico[2], e o segundo, o Direito brasileiro.

A católica era a religião oficial do Brasil durante o período imperial; deixando de sê-lo com a República, a partir de 1890, quando o Estado passou a ser laico.

A Santa Sé e o Brasil concluíram, em 2008, importante tratado, que, praticamente reitera e organiza direitos anteriores assentes, não criando direito novo; nos artigos em que o Brasil assume obrigações, há ressalvas com relação à preservação do Direito brasileiro.

O Direito Canônico, da mesma maneira que os demais Direitos estrangeiros, pode ser aplicado no Brasil, caso seja competente segundo as normas brasileiras de Direito Internacional Privado, que indicam as leis da nacionalidade, do domicílio etc., desde que não haja razão legal (ordem pública, fraude à lei etc.) para se afastar a aplicação dessas normas estrangeiras.

No Brasil, fala-se em nacionalidade da pessoa jurídica ainda antes do Código Civil de 1916. Os artigos 19 e 21 da Introdução ao Código Civil, de 1916, rezavam:

Art. 19 – São reconhecidas as pessoas jurídicas estrangeiras.

Art. 21 – A lei nacional das pessoas jurídicas determina-lhes a capacidade.

O Decreto-Lei 4.657/1942 editou a Lei de Introdução ao Código Civil, cujo nome passou a ser Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), por força da Lei 12.376/2010, cujo caput do artigo 11 possui a seguinte redação:

As organizações destinadas a fins de interesse coletivo, como as sociedades e as fundações, obedecem à lei do Estado em que se constituírem.

A LINDB não se refere diretamente à nacionalidade de pessoa jurídica. Entretanto, em sua sistemática, a nacionalidade da sociedade ou, como preferem alguns autores, sua existência e capacidade são indicadas pelo local de sua constituição.

O artigo 60 do Decreto-Lei 2.627/1040, que dispõe sobre sociedade por ações e que continua vigente em virtude de disposição expressa do artigo 300 da Lei 6.404/1976, apresenta como condição atributiva da nacionalidade brasileira a organização consoante a lei brasileira e a sede real e efetiva no país. Os doutrinadores brasileiros, embora seguindo caminhos diversos, acabaram por conciliar esse artigo com o artigo 11 da LINDB: a nacionalidade da pessoa jurídica, no âmbito do Direito Internacional Privado brasileiro, ou seja, para resolver conflito interespacial entre outras leis, caracteriza-se pelo país de sua constituição; contudo, para ser considerada brasileira, a sociedade por ações, ademais de constituir-se em nosso país, deverá fixar a sede de sua administração no país[3].

Embora inicialmente não se aplicasse domicílio às pessoas jurídicas, tal começou a mudar com o Relatório Rundstein, no âmbito da Liga das Nações, de 1927, que se referiu a domicílio de pessoa jurídica como sinônimo de sede. Por seu turno, a Convenção de Direito Internacional Privado ou Código Bustamante, de 1928, de que o Brasil é parte, refere-se ao domicílio de pessoa jurídica. Por força das lições de Carlos de Carvalho, Rodrigo Octavio, Carvalho de Mendonça, Valladão etc., passou a ser de uso corrente no Brasil a utilização do princípio domiciliar para a pessoa jurídica.

A presença de um elemento de estraneidade faz desencadear a aplicação do “caminho do Direito Internacional”: qualificação, elemento de conexão etc.[4]. Se for indicada a aplicação do Direito estrangeiro, a regra material a ser adotada deverá passar pelo teste da exceção à aplicação do Direito estrangeiro. A ordem pública, principal, causa de exceção, contribui à aplicação do Direito estrangeiro, constitui-se em autodefesa do ordenamento jurídico, que protege as concepções basilares e seus princípios essenciais, que não admitem desfiguração. Apesar de sua importância, ela é fluida e mutável por meio dos tempos, não dependendo, obrigatoriamente, de andar pari passu, com a evolução legislativa, sendo, via de regra, decantada via jurisprudência. Os estatutários, nos albores do Direito Internacional Privado, consideram inaplicáveis os estatutos (leis) considerados odiosos ao sentimento do foro, daí derivando o princípio da ordem pública.

A legislação brasileira tradicionalmente adota formulação tríplice da ordem pública, que na vigente Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, aparece no artigo 17: “As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes”.

Ultrapassado um segundo teste, o do reenvio, que não possui interesse no presente caso, a lei estrangeira, indicada pela norma brasileira de Direito Internacional Privado, será aplicada, encerrando-se a prestação jurisdicional.

A Sociedade Educacional e Assistencial é pessoa jurídica de direito privado, instituída segundo as leis brasileiras, há mais de 80 anos em São Paulo, onde possui sua sede. Seus estatutos estão arquivados em Registro de Títulos e Documentos da referida Capital. É indubitável que essa sociedade seja pessoa jurídica brasileira. Qualquer dos critérios possíveis, discutidos acima — nacionalidade ou domicílio —, levam à conclusão de que a lei aplicável à sociedade é a brasileira. Tal o foi quando de sua criação, tendo continuado ininterruptamente até os dias de hoje. Não se trata de sociedade religiosa, conforme o Direito brasileiro. As mudanças estatutárias levadas a cabo por ela, por terem obedecido à legislação brasileira — legislação essa de um país soberano, que não deve suserania a qualquer outro — são válidas e subsistentes.

Para que se possa aplicar, no Brasil, Direito estrangeiro (no caso, o ordenamento jurídico-canônico da Santa Sé), este deveria ser indicado pelo Direito Internacional Privado brasileiro e passar incólume no “iter” desse Direito. As questões relativas à sociedade não comportam, a rigor, elemento de estraneidade, por se tratar de pessoa jurídica brasileira, com sede no Brasil. Mesmo que, por hipótese, se imaginasse que, por ter sido instituída por pessoas físicas religiosas e de nacionalidade estrangeira, houvesse estraneidade; os elementos de conexão indicado pelo Direito Internacional Privado brasileiro (nacionalidade ou domicílio da sociedade) levaria também à aplicação do Direito Material brasileiro. Por fim, se por hipótese, impossível na prática, por não haver elemento de conexão que o possibilite, se vislumbrasse ser o Direito Canônico da Santa Sé o indicado pelo Direito Internacional Privado brasileiro, a aplicação do Direito Canônico in casu cairia em razão da exceção à aplicação do Direito estrangeiro da ordem pública (artigo 17 da LINDB). Repugnaria, por ser odiosa à ordem jurídica brasileira, que pessoas, em razão de convicções e votos canônicos, tivessem sua livre vontade, constitucionalmente assegurada no Brasil, tolhida, enquanto membro de pessoa jurídica privada brasileira, que, segundo tal direito, não possui natureza religiosa.

No caso concreto, a desobediência ao Direito Canônico, porventura perpetrada por membros da sociedade, enquanto religiosos, já está sendo processada segundo o Direito Canônico, que possui suas próprias regras e penas. Entretanto, absolutamente, não há fundamento jurídico para extrapolar os efeitos dessa eventual desobediência, para o âmbito do Direito brasileiro.

No que tange a aspectos de Direito Internacional Público, ou seja do relacionamento Brasil/Santa Sé, em especial do tratado entre ambos de 2008, nada do que está escrito nesse documento leva à aplicação do Direito Canônico ao caso sob exame. Lembre-se que, quando o Brasil assume obrigações nesse tratado, há sempre potentes ressalvas, resguardando o Direito brasileiro.

"Dai a Deus o que é de Deus."

[1] Rodas, João Grandino, Atraso endêmico no trato do Direito Internacional aumenta o “custo Brasil”. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, de 2 de julho de 2015.
[2] Rodas, João Grandino, Direito Canônico é aplicável no Brasil, por força de tratado ou de regras conflituais, Revista Eletrônica Consultor Jurídico, de 10 de dezembro de 2015.
[3] Rodas, João Grandino, Sociedade Comercial e Estado, São Paulo Saraiva, 1995 p. 322/330 e 342/343.
[4] Rodas, João Grandino, Direito Internacional privado fornece solução para o "estudo de caso", Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 3 de setembro de 2015.

Autores

  • Brave

    é professor titular da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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