Tempos de "barbárie"

IBCCrim critica falhas cruciais na apuração dos crimes de maio de 2006

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4 de maio de 2016, 18h45

Dez anos depois de uma onda de mortes provocada em São Paulo por policiais e grupos de extermínio, em resposta a ataques orquestrados pela facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital), o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) publicou editorial com críticas ao esquecimento do caso. A entidade avalia que o Judiciário e o Ministério Público cometeram “falhas cruciais” na fase de apuração dos crimes e diz que pessoas continuam sendo vítimas de “políticas de extermínio”.

O IBCCrim aponta que grupos “vinculados a forças de segurança pública, com especial destaque para a Polícia Militar”, mataram centenas de pessoas em 2006 como retaliação a rebeliões e ataques orquestrados pelo PCC, dias antes. Ao menos 493 pessoas foram mortas por arma de fogo no estado de São Paulo entre 12 e 20 de maio de 2006, aponta o editorial, com base em relatório do Conselho Regional de Medicina.

O mesmo documento, segundo o instituto, concluiu que o Ministério Público falhou ao deixar de exigir melhores investigações nos inquéritos e ter sinalizado à Polícia Militar que não houve revide organizado por policiais. “Pouco ou nenhum avanço houve no que tange às pautas de desmilitarização das polícias e da política, de democratização efetiva das instituições jurídicas, por meio de uma real justiça de transição, e de salvaguarda de direitos fundamentais em regiões marginalizadas”, reclama o IBCCrim.

“No primeiro semestre de 2015, o número de pessoas mortas pela polícia em São Paulo superou o número de mortos do mesmo período de 2006, a demonstrar que a política de extermínio preconizada pelo massacre não apenas não arrefeceu, como vem galgando novos patamares de barbárie.”

O editorial foi publicado no boletim de maio, que inclui ainda artigos e resumos de jurisprudência. O instituto é formado por advogados, defensores públicos, membros do Ministério Público, juízes e pesquisadores, entre outros profissionais da área.

Leia a íntegra do editorial:

Há dez anos, o Brasil assistia a um massacre. Mais um massacre que, como tantos, apontava para o déficit democrático deixado pela forma negociada de transição da ditadura civil-militar para um pretenso Estado Democrático de Direito. Os crimes de maio de 2006, como ficaram conhecidos, consistiram na ação orquestrada de grupos de extermínio vinculados a forças de segurança pública, com especial destaque para a Polícia Militar, promovendo a matança de centenas de pessoas em retaliação aos ataques ordenados pelo PCC, dias antes

Conforme dados do Cremesp, ocorreram 493 mortes por arma de fogo no Estado de São Paulo entre 12 e 20 de maio de 2006.([1] ) De todas essas mortes, há denúncias da participação de agentes policiais em 388 casos, conforme dados divulgados pelo Observatório de Violência Policial.([2] ) O relatório “São Paulo sob achaque”, elaborado pela Clínica Internacional de Direitos Humanos de Harvard e pela ONG Justiça Global, identificou, pela análise de inquéritos do período, um universo de 122 mortes em relação às quais há indícios da participação de agentes policiais. O relatório chegou à conclusão de haver provas concretas da ação de grupos de extermínio ligados à polícia em 71 casos.([3] )

As dimensões do massacre, aliadas ao “silêncio sorridente” com o qual foi recebido pelas elites, pela comunidade jurídica e pelos meios de comunicação, nos faz pensar, em tempos nos quais se discute a legitimidade e a solidez das instituições no Brasil, o quanto de nossa democracia não permanece como um mero recurso retórico, invariavelmente trazido à baila em debates político-partidários, mas nunca relacionado, na voz de seus bem-nascidos cultores, à permanência de uma política de extermínio ostensiva nas “quebradas”, de forte tônica genocida, vitimando pobres, negros e periféricos.

O relatório conclui que as instituições pretensamente democráticas responsáveis pelo controle externo da atividade policial e pela salvaguarda dos direitos humanos são lenientes, quando não coniventes, com o massacre das classes indesejadas.

Todos os inquéritos relativos aos crimes de maio de 2006 foram arquivados, a pedido do Ministério Público, sem maiores investigações. O relatório aponta o Judiciário e o Ministério Público como autores de falhas cruciais. Sobre o papel do MP, consta do relatório: “o Ministério Público Estadual também falhou em: 1) não investigar os Crimes de Maio de forma sistemática e rigorosa, 2) não exigir melhores investigações nos inquéritos policiais (…), e 3) não manter sua preciosa isenção no momento da crise, sinalizando à Polícia Militar que eles, promotores, já teriam concluído que não houve um revide policial orquestrado após os ataques”.([4] ) Essa última falha é referência, principalmente, a um ofício assinado por dezenas de promotores, enviado em 25 de maio de 2006 ao Comando Geral da PM.

Neste ofício, os subscritores reconhecem “a eficiência da resposta da Polícia Militar, que se mostrou preocupada em restabelecer a ordem pública violada, defendendo intransigentemente a população de nosso Estado”. Acrescentam que estão certos de que “eventuais excessos praticados individualmente serão objeto de apuração devida pelos órgãos responsáveis”.([5] ) O relatório conclui que atos como esse parecem “chancelar a ação violadora do Estado”,([6] ) na medida em que os subscritores recusam-se, de antemão, a aceitar a possibilidade de um problema estrutural, que extrapole os “excessos praticados individualmente”.

Dez anos depois, causa consternação perceber que pouco ou nenhum avanço houve no que tange às pautas de desmilitarização das polícias e da política, de democratização efetiva das instituições jurídicas, por meio de uma real justiça de transição, e de salvaguarda de direitos fundamentais em regiões marginalizadas. No primeiro semestre de 2015, o número de pessoas mortas pela polícia em São Paulo superou o número de mortos do mesmo período de 2006, a demonstrar que a política de extermínio preconizada pelo massacre não apenas não arrefeceu, como vem galgando novos patamares de barbárie.

Em nossa “democracia dos massacres”, o extermínio se converteu em uma política pública, avalizada e encorajada pelas altas esferas do Estado, que se recusam a reconhecer um problema sistêmico na gestão e estruturação das forças de segurança pública, preferindo o discurso defensivo e cínico (“eventuais abusos serão apurados”, “quem não reagiu está vivo”), que soa como carta branca para os grupos de extermínio e para os setores fascistoides da sociedade, cada vez menos envergonhados em mostrarem seus rostos.

O extermínio, aliás, evidentemente não segue um padrão aleatório. Pesquisa divulgada em 2014 pela UFSCar demonstrou que, a cada quatro pessoas assassinadas pela polícia no Estado de São Paulo, três são negras. A existência de uma política pública voltada à eliminação de jovens negros em bairros de periferia permite a conclusão de que há, no Brasil, um genocídio em curso, atendendo a todos os requisitos estampados na Convenção da ONU de 1948.

Diante dessas colocações e em tempos nos quais o Brasil discute, em meio a uma intensa crise política, o valor da democracia e o temor do que muitos têm chamado de golpe de Estado, é inevitável a conclusão de que, na verdade, nosso sistema político, confortavelmente alicerçado sobre o entulho autoritário de nossa história, nunca foi uma democracia. Nas periferias, para a juventude negra e pobre, a democracia não passa de um sonho distante, abafado pelo massacre cotidiano, em regiões onde o golpe é diário e o Estado de exceção.

Notas
[1] Mães de maio da democracia brasileira. Do luto à luta. Publicação independente. São Paulo: 2011, p. 32.
[2] Idem, p. 36.
[3] International Human Rights Clinic e Justiça Global. São Paulo sob achaque: corrupção, crime organizado e violência institucional em maio de 2006. 2011, p. 5.
[4] Idem, ibidem, p. 181.
[5] Idem, p. 239.
[6] Idem, p. 181.

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