Opinião

O custo do desenvolvimento urbano. Quem paga o preço?

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29 de junho de 2016, 6h37

No mês de junho deste ano, foi inaugurado, no centro da cidade do Rio de Janeiro, o primeiro trecho do tão esperado Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), ligando a região da Rodoviária Novo-Rio ao Aeroporto Santos Dumont. Indiscutivelmente, o VLT traz importantes avanços para a cidade, ligados tanto ao fortalecimento do conceito de transporte público integrado, como à disponibilização de uma alternativa limpa de transporte para os cidadãos.

Ocorre que, se, de um lado, houve um relevante ganho (pelo menos de forma aparente, até o momento) para a coletividade, inevitavelmente a transformação da malha viária afetou específica e gravemente alguns grupos, gerando relevantes prejuízos pessoais e financeiros.

Para darmos apenas um exemplo e utilizarmos como parâmetro para o debate em questão, no processo de implantação do VLT, a prefeitura do Rio de Janeiro efetivou a remoção de vinte e cinco bancas de jornal e revistas da Av. Rio Branco, no centro da cidade, a fim de “garantir a visibilidade do condutor e dos pedestres e para a construção das paradas do VLT e travessias”.[1] A esse respeito, esclareça-se, primeiramente, que foge ao escopo desse breve estudo discutir a necessidade e a adequação da medida em si[2], até mesmo por carecer esta autora de expertise para tanto. Pretende-se, na verdade, questionar a legitimidade do processo formal desencadeado pela Administração Pública, de forma geral, quando a medida imposta envolve a restrição ou até mesmo o sacrifício de direitos individuais.

No referido caso das bancas de jornal, que indiscutivelmente envolveu graves prejuízos e sacrifícios aos afetados pela medida de remoção, pode-se facilmente verificar a inadequação (para não dizer arbitrariedade) do procedimento conduzido pela Administração municipal, que se deu nos seguintes termos: conforme relato dos próprios permissionários das bancas de jornal, a Prefeitura lhes concedeu o exíguo prazo de dez dias para se retirarem do local em que até então estavam situados, sem qualquer forma de orientação e apoio. Nem mesmo alternativa de nova localidade foi conferida. A Secretaria de Ordem Pública (Seop) e a Companhia de Desenvolvimento da Região do Porto (Cdurp) afirmaram que, depois de notificados, os particulares deveriam propor novos locais para instalação, que, então, viriam a ser avaliados pelo Município. Quanto aos gastos com a remoção, a Seop informou a necessidade de comparecimento ao órgão municipal responsável, que, somente então, iria conferir isenção da taxa de transferência da energia elétrica. Entretanto, ficaria a cargo dos permissionários o custo da instalação de luz e da estrutura.[3]

Ou seja, o ônus da remoção recaiu, quase que exclusivamente, sobre os próprios afetados, tendo o Município do Rio de Janeiro se eximido amplamente da responsabilidade pelos eventuais danos e prejuízos causados. De um lado, é verdade que, em favor de tal postura assumida pela municipalidade, poderia se alegar que a exploração privada da atividade consistente na venda de jornais e revistas em banca decorre de um contrato de permissão de uso de bem público a título oneroso, tendo, portanto, natureza, segundo os ensinamentos mais convencionais do Direito Administrativo, precária e revogável a qualquer momento e de forma unilateral pelo Poder Público. Isto é, não teria o particular qualquer direito à permanência de suas instalações em via pública, nem a qualquer compensação pelo sacrifício imposto.

No entanto, se, de fato, não se pode negar ao Poder Público a faculdade de alterar ou revogar atos que guardam a marca da precariedade e discricionariedade, por outro, a tutela da legítima expectativa dos administrados (enquanto um aspecto da segurança jurídica assegurada pela atual ordem constitucional) demanda uma mínima proteção dos interesses privados que decorrem daqueles atos cujos efeitos se prolongam no tempo, ainda que não estejam amparados pelos institutos do direito adquirido, da coisa julgada ou do ato jurídico perfeito.

Afinal, a noção fundamental de segurança jurídica e, portanto, de proteção da justa expectativa do administrado, alia-se à ideia de previsibilidade, regularidade e estabilidade das relações jurídicas, que geram no particular a confiança de permanência do status jurídico em curso, quando configurados determinados critérios, tais como: a necessidade de que o administrado tenha sido surpreendido por uma mudança súbita de sua posição em face do Estado, e que a Administração tenha lhe dado fundadas razões para confiar na sua estabilidade.[4]

Portanto, ainda que a Administração entenda ser necessária e adequada a restrição ou o sacrifício do direito individual em prol da coletividade, aos titulares das expectativas que venham a merecer proteção deverão ser asseguradas garantia mínimas, a depender das circunstâncias do caso concreto, mas, de forma geral, impõe-se o afastamento ou a moderação dos efeitos da incidência da nova medida.

Voltando para o nosso exemplo, considerando-se legítima a confiança depositada pelos permissionários das bancas de jornal de que permaneceriam exercendo, por um prazo maior, sua atividade econômica na Av. Rio Branco, o órgão municipal responsável não poderia ter deixado de atentar para a necessidade de implementação de medidas compensatórias mínimas em razão das restrições impostas. Podemos cogitar, minimamente, por exemplo, do pagamento de indenização pelo desfalque patrimonial sofrido e de apoio financeiro e logístico para realocação, além dos devidos esclarecimentos e orientações acerca das mudanças que viriam a ser efetivadas. E, claro, da concessão de um prazo razoável e suficiente para adaptação dos afetados pela nova medida.

Em favor da proteção dos indivíduos sacrificados, pesa, ainda, o argumento de que, para se adequar à atual ordem jurídica, a atuação estatal deve pautar-se pelo princípio constitucional da isonomia, destacando-se, aqui, uma de suas diversas manifestações, qual seja, a exigência de que, na sociedade, haja uma equitativa distribuição dos encargos e benefícios sociais entre todos — ou quase todos — os seus membros, de forma que o ônus de determinada utilidade pública fruível pela coletividade como um todo não recaia injustamente sobre apenas determinados e poucos sujeitos.

De forma diversa não poderia se dar em um Estado Democrático de Direito, que pressupõe o equilíbrio social e, portanto, a impossibilidade de imposição de sacrifícios individuais especiais e exorbitantes, compensados por um ganho “superior” dos interesses de outros sujeitos ou do grupo social como um todo. Isso porque essa linha de pensamento seria consonante, em verdade, com uma filosofia marcadamente utilitarista e consequencialista, incompatível com nossa ordem constitucional, conforme esclarece o professor Daniel Sarmento: “(…) estas teorias justificam a perda de direitos sofridos por uns, desde que em benefício de um bem-estar maior usufruído por outros. Não há uma preocupação com a distribuição deste bem-estar dentre os diferentes componentes da sociedade, mas apenas com a maximização geral do bem-estar.”[5]

Consequentemente, a carga que incide sobre o particular que sofre, de fato, o esvaziamento de seu direito em prol de um ganho coletivo deve ser equitativamente repassada ao grupo social beneficiado (ou ao menos parte dele), por via, minimamente, do pagamento de recomposição dos prejuízos financeiros sofridos.

Quando se trata de medidas públicas restritivas salta aos olhos, ainda, a inobservância de garantias processuais mínimas por parte da Administração. Ainda que, diante das circunstâncias, a efetivação da finalidade pública demande uma atuação de natureza impositiva em razão dos elevados custos de transação entre os envolvidos, isso não significa que não se deva incluir os particulares interessados no processo decisório, estabelecendo com eles relações horizontalizadas e negociadas na busca de soluções consensuais, aptas a satisfazer, em alguma medida, os interesses dos dois lados. Confere-se, assim, à decisão final maior eficiência e aceitabilidade social[6].

Destaque-se que, para que se chegue a uma solução verdadeiramente consensual, não deve ser afastada a audiência dos particulares interessados e, principalmente, dos diretamente atingidos, de forma que sejam introduzidas no processo diferentes perspectivas subjetivas, muitas vezes colidentes entre si, em razão dos diferentes papéis sociais possivelmente exercidos pelos envolvidos. Mas, em conjugação, estas concepções podem ser organizadas em um fio decisório coerente, capaz de coordenar os diferentes interesses em jogo. O fenômeno participatório surge, assim, como meio de cooperação do particular na tarefa de descoberta da decisão, através do maior fluxo de ideias, informações, opiniões e pontos de vista.

Mas para que tal participação seja possível e efetiva, é condição sine qua non a transparência da Administração e o respeito ao direito de informação e de acesso do particular interessado ao objeto do processo, de forma que possa ser possível o acompanhamento integral — e, muitas vezes, a intervenção — da construção gradativa da decisão. Para tanto, deve o Estado empregar meios que, ao menos presumidamente, produzam acesso real dos interessados ao conhecimento dos atos da Administração ao longo do iter processual.[7]

Nesse mesmo sentido, Ego Bockmann Moreira frisa a importância de se destacar a compreensão da função democrática do processo administrativo, que, para ele: “(…) presta-se igualmente à chamada ‘legitimação pelo procedimento. À parte as célebres considerações de Luhmann acerca do tema, temos que a efetiva participação das pessoas privadas na elaboração dos provimentos administrativos que as afetarão se presta a justificar (ou mesmo a atribuir) a racionalidade e a justiça da decisão. Na medida em que o cidadão possa verdadeiramente influenciar a formação da decisão administrativa, isso tende a gerar uma decisão quase-consensual (ou mesmo consensual), que possui maiores chances de ser espontaneamente cumprida. O dever de obediência transforma-se em espontânea aceitação, em concordância devido à uniformidade de opiniões (ou ao menos devido à participação e ao convencimento recíproco).”[8]

Há que se atentar, no entanto, para que o processo prévio não seja concebido como uma mera forma de se legitimar formalmente uma convicção prévia e irretocável da Administração. Ao contrário, a decisão deve ser formada no decorrer do processo e em razão da colaboração dos interessados, de forma que, efetivamente, seja exercido o seu direito de influir na via administrativa, avaliando-se, com a audiência deles, sobretudo: (i) a legitimidade da necessidade pública constatada pela Administração; (ii) a viabilidade de atendimento dessa necessidade por meio da medida proposta, inclusive sob o prisma da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito); e (iii) os demais aspectos específicos atinentes ao ato restritivo em questão (compensação financeira, forma de pagamento, prazos para efetivação da medida, soluções transitórias, etc).[9]

O que se observa, de forma geral, porém, como um relevante obstáculo à promoção de tais garantias consiste na falta de planejamento adequado dos projetos da Administração Pública e, consequentemente, na ausência de estruturação de um cronograma a médio e longo prazo de execução de todas as medidas necessárias e etapas do empreendimento estatal. Como resultado, o Poder Público acaba muitas vezes tendo que se valer, desastrosamente, de medidas urgentes, precipitadas e, o mais grave, unilateralmente impostas de forma autoritária. Destaque-se a esse respeito que, no tocante ao nosso exemplo, o que justificaria o curtíssimo prazo de dez dias conferido aos permissionários das bancas de jornal considerando-se que as obras do VLT tiveram início em janeiro de 2014?

Portanto, ainda que, em certas circunstâncias, se justifique a restrição ou a supressão, pelo Poder Público, de algum direito ou de determinada situação favorável para o particular, não resta afastada a necessidade de que se busque a conciliação dos interesses de todas as partes envolvidas, notadamente por meio da recomposição, na maior medida possível, do sujeito afetado à sua situação original. É o que se impõem, inafastavelmente, à luz dos atuais ditames constitucionais, em cujo centro axiológico se encontra, como dito acima, a tutela prioritária da esfera individual de interesses.


2 Ainda que não se adentre nesse tema, vale lembrar a importância de que toda intervenção estatal observe determinados parâmetros, em face das suas próprias limitações, para que não se desvirtuem os objetivos e metas originalmente propostos. Nas palavras da professora Jane Reis, “essa incoerência é resolvida dogmaticamente com o recurso à idéia de que a atividade limitadora do Estado deve ser, também, uma atividade limitada”, circunscrevendo-se o poder do Estado a uma série de barreiras jurídicas.

4 BAPTISTA, Patrícia. A Tutela da Confiança Legítima como limite ao exercício do poder normativo da Administração Pública. A proteção das expectativas legítimas dos cidadãos como limite à retroatividade normativa. Revista Eletrônica de Direito do Estado, n. 11, jul. ago. set 2007.

5 SARMENTO, Daniel. Intereses Públicos vs. Interesses Privados na Perspectiva da teoria e da Filosofia Constitucional. In: SARMENTO, Daniel (org.). Interesses Públicos versus Privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 63.

6 ALMEIDA, Fernando Dias Menezes. Mecanismos de Consenso no Direito Administrativo. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de; NETO, Floriano de Azevedo Marques (coords.). Direito Administrativo e seus Novos Paradigmas. Belo Horizonte: Editora Forum, 2008, p. 346.

7 BARCELLOS. Ana Paula de. Papéis do Direito Constitucional no fomento do controle social democrático: algumas propostas sobre o tema da informação. Disponível em: <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/quaestioiuris/article/view/3663/2552>. Acesso em: 28 mai. 2013.

8 MOREIRA, Ego Bockman. Op. cit. p. 73.

9 Loc. cit.

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