Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo chinês (parte 48)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

29 de junho de 2016, 16h12

Spacca
O professor de Direito na China
Nas primeiras colunas da série sobre a formação dos juristas na China, anteciparam-se diversas questões sobre como a docência no Direito se representa socialmente. Não é possível, até pela complexidade do modelo chinês, traçar linhas objetivas sobre um perfil docente uniforme, o que é bastante comum no Ocidente. O professor de Direito em Hong Kong, Macau e Pequim atenderá a diferentes perfis, a depender do prestígio, do tamanho e da natureza da instituição ao qual se vincula academicamente.

Alguns pontos, contudo, são minimamente generalizáveis. O primeiro é que a universidade chinesa utiliza-se do plano de carreiras típico das universidades ocidentais: professor assistente, professor doutor, professor associado e professor titular. O segundo está no baixo nível remuneratório e na ausência de padrões objetivos e transparentes para comparação e previsibilidade desses valores. Tais circunstâncias geram dois efeitos colaterais: os docentes necessitam complementar sua renda. Para isso, assumem funções em conselhos de empresas privadas ou de consórcios dos quais participam o governo da China e investidores particulares; exercem a advocacia ou ocupam outros cargos públicos. Essa realidade explica-se quando se observa que há remunerações-base no intervalo de 500 (valor oficial da tabela do Ministério da Educação) e US$ 3 norte-americanos. No entanto, há diversos mecanismos de complementação, como aulas em programas de pós-graduação, financiamentos, bolsas e, obviamente, a importância da universidade pode impulsionar a contraprestação, ao exemplo dos cursos jurídicos de Macau e de Hong Kong, cujos professores são mais bem remunerados que seus congêneres de muitas faculdades de Direito ocidentais.

Outra inovação no quadro universitário chinês é a política de atração a renomados pesquisadores e docentes que se radicaram no exterior, captados pela política de caça-talentos (especialmente nos Estados Unidos) do Ocidente. Algumas universidades chinesas têm oferecido remunerações diferenciadas para essas pessoas, inclusive com a oferta de condições especiais de trabalho em laboratórios e centros de investigação. No Direito, essa realidade não é tão marcante. As razões são simples: a prioridade são as áreas tecnológicas, seja pelo potencial de geração de patentes e de desenvolvimento industrial, seja pelo prestígio natural que elas possuem em uma nação que se orientou por essa linha de crescimento econômico.

O status social do professor de Direito é alto, assim como o dos professores universitários em geral. Como a universidade é um meio de ascensão social, o controle de essa “porta de entrada” para o futuro, que, em última análise pertence aos docentes, é algo valioso.

A crescente importância da formação jurídica na China
A importância das carreiras jurídicas no regime chinês poderá alterar esse quadro em pouco tempo. O número de pessoas formadas em Direito no Comitê Central do Partido Comunista passou de 1,7% (1997) para 14,1% (2012) e aqueles com graduação em “Ciências Sociais” (conceito compreensivo de Ciência Política, Sociologia, História do Partido Comunista e Jornalismo) evoluiu de 5,6% (1997) para 38,2% (2012).[1] Se a comparação é feita entre 2002 e 2012, o cenário é ainda mais surpreendente. Em 2002, o Comitê Central era composto por 45,6% de membros formados em Engenharias e Ciências, ao passo em que Direito e Ciências Sociais correspondia a 11,8% do total. Quase metade do Comitê Central era, portanto, composto por pessoas oriundas das Ciências duras. Em 2012, o quadro inverteu-se por completo. Como já dito, 38,2% dos comissários eram graduados em Direito e nas “Ciências Sociais”, ocupando o grupo quantitativamente maior no estrato. As Ciências duras caíram para o terceiro lugar, com 11,1%. Em segundo lugar, estavam os economistas e administradores, com 28,7% dos integrantes do Comitê Central. Os militares caíram de 19,5% (2002) para 8,5% (2012).[2]

A se consolidar essa alternância na composição da elite política chinesa, diversas hipóteses podem-se formar. Uma delas seria uma ampliação do conceito de “estado de direito” no país, algo que começa a ser suposto. Essa hipótese, contudo, é refutável pelo exemplo histórico das “ditaduras de catedráticos”, como a que regeu Portugal por quase todo o século XX ou quando se leva em conta a participação dos juristas na sustentação nos governos ditatoriais brasileiros do último século (Floriano Peixoto, Getúlio Vargas, presidentes militares). Outra hipótese seria a de um efeito indireto do renascimento das faculdades de Direito no país após a Revolução Cultural, que permitiu o fornecimento de juristas para o estado chinês. Os egressos dos cursos jurídicos tradicionalmente ocuparam os principais postos burocráticos em países com tradição imperial, como o Brasil e a Áustria-Hungria, ao lado, evidentemente, dos militares. Esse é um problema ainda sem solução, embora as cogitações sobre ele sejam muito relevantes.

Estrutura dos cursos jurídicos chineses
Há faculdades de Direito e faculdades que permitem ao aluno ter uma formação híbrida, envolvendo Direito e Ciência Política, por exemplo, algo semelhante ao que ocorre em França. É possível também encontrar cursos jurídicos “acelerados” e outros que se vinculam diretamente a certas instituições do Estado, como os Ministérios da Justiça, da Segurança, da Defesa ou os órgãos do Poder Judiciário. São exemplos dessa diversidade a Universidade da China de Ciência Política e Direito, a Universidade Chinesa de Segurança Pública, o Departamento de Direito Internacional do Instituto de Negócios Estrangeiros e a Faculdade de Direito, Economia e Finanças da Universidade Central da China.

Há cursos com duração mínima de três e máxima de cinco anos. Apesar de ser um estado comunista, os alunos são obrigados a pagar semestralidades ou anuidades, as quais podem compreender custos de habitação nas residências universitárias. Esses valores são variáveis conforme o tamanho, a localização e a natureza da universidade. Embora existam algumas faculdades privadas, a quase totalidade é de instituições públicas. Independentemente de sua natureza, a exigência de contraprestação aos alunos é universal.

Como esses valores são muito pouco uniformes, pode-se fazer uma estimativa, com base em dados disponíveis na internet: a) taxa de inscrição que varia, a depender da universidade, entre US$ 90 a US$ 150; b) a anuidade é também variável de US$ 3,3 mil a US$ 9,9 mil.[3] Reitera-se que esses dados não são oficiais e existem diversas universidades com custos bem menores do que os indicados. 

As universidades chinesas oferecem diversos cursos de Master of Laws (LL.M). Universidade de Pequim, por exemplo, possui um LL.M. no modelo de um semestre de outono e um semestre de primavera, com disciplinas de Direito Privado, Direito Societário, Direito Penal e Processual Penal, Direito Constitucional e Administrativo, Direito da Propriedade Intelectual, Direito dos Contratos, Direito Econômico ou Direito Internacional aplicado. Além da aprovação nas disciplinas, o candidato deverá apresentar uma “tese” com um mínimo de 12 mil palavras.[4] A Universidade de Xiamen também possui programas de LL.M., com duração de 2 anos, em regime de estudo integral, com aulas em inglês.[5]

Faculdades de Direito chinesas
O ranking internacional de faculdades de Direito da consultoria Quacquarelli Symonds Ltd – QS apresenta 8 instituições chinesas como as mais relevantes: a) Universidade de Pequim (18º lugar no mundo); b) Universidade de Tsinghua (39º lugar no mundo); c) Universidade de Xangai – Jiao Tong; d) Universidade da China de Ciência Política e Direito; e) Universidade de Fudan; f) Universidade Popular da China de Renmin; g) Universidade Normal de Pequim; h) Universidade de Wuhan.  Como são regiões administrativas autônomas, Hong Kong e Macau ocupam posições fora do ranking chinês estrito. A Universidade de Hong Kong está em 19º lugar no âmbito internacional.

A Faculdade de Direito da Universidade de Pequim foi constituída em 1999, como sucessora do Departamento de Direito dessa universidade, o qual se instituiu em 1904. Atualmente, possui 40 professores catedráticos (29 deles com título de doutor), 33 professores associados e 9 professores adjuntos, além de professores auxiliares. Há 217 alunos no doutorado, 1128 estudantes de mestrado e 704 alunos de graduação.[6]

A Universidade de Tsinghua tem um curso jurídico desde 1929, contando com 76 catedráticos, 16 professores associados e três professores convidados.[7] Sediada em Pequim, essa instituição foi criada em 1911. Fundiu-se com a Universidade de Pequim durante a guerra de resistência contra o Império japonês (1937-1945), assim permanecendo até 1952, quando recuperou sua autonomia e assumiu a natureza de uma escola politécnica voltada para a formação de engenheiros. Em 1978, foi aberto o curso de Direito, embora até hoje seja reconhecida como uma universidade voltada para as engenharias.[8] 

A Universidade de Hong Kong é a joia da coroa do sistema universitário chinês. O trocadilho é infame, mas serve para mostrar a complexidade do modelo chinês. A referência à coroa foi propositada.  Na verdade, a instituição nasceu em 1911 como parte dos esforços da metrópole britânica de desenvolver sua longínqua colônia imperial. O curso de Direito é datado de 1969, a partir do Departamento de Direito da Universidade de Hong Kong. A menção à universidade como uma joia não é sem causa. Trata-se da mais importante instituição da Ásia e sua faculdade de Direito possui reconhecimento internacional como um centro de excelência. Outra ironia é que a universidade integra uma região administrativa especial dentro da China, após a devolução britânica ocorrida em 1997.

A Faculdade de Direito de Hong Kong possui 60 professores em regime de tempo integral, 1,5 mil alunos, com dois Departamentos, um de Direito e outro de Educação Profissional Jurídica, além de quatro centros de pesquisa. A graduação é de quatro anos e há um doutorado em dois anos.[9]

***

Na próxima semana, encerrar-se-á o estudo do modelo chinês.

 


[1] CHENG LI. The rise of the legal profession in the chinese leadership. China Leadership

Monitor. n. 42 (2013). p.6

[2] CHENG LI. Op. cit. p.9.

[3] Disponível em: http://www.cucas.edu.cn/feature/index/2325/2325. Acesso em 28-6-2016.

[6] Disponível em:  http://en.law.pku.edu.cn/overview/about/index.htm. Acesso em 25-6-2016.

[7] Disponível em: http://www.tsinghua.edu.cn/publish/lawen/3473/index.html. Acesso em 25-6-2016.

[9] Disponível em: http://www.law.hku.hk/faculty/index.php. Acesso em 28-6-2016.

Autores

  • é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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