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Inobservância da Súmula Carf 105 é grave violação aos direitos dos contribuintes

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29 de junho de 2016, 8h00

"No Brasil, até o passado é incerto."
(Pedro Malan)

Na semana passada, foi deflagrada pela Polícia Federal a operação custo Brasil, que desvendou um esquema de roubo reiterado, sob a forma de uma taxa mensal de alguns muitos centavos, descontada dos salários de servidores que recorreram a empréstimos consignados. O esquema que instituiu uma “taxa de corrupção”, amealhando muitos milhões de reais, destinados ao financiamento de um partido político e de seus próceres, causa nojo e repugnância. A cidadania foi aviltada, e a sociedade exige uma punição exemplar aos larápios que se locupletaram do dinheiro suado de servidores endividados.

Não bastasse a relevância de seus propósitos, a custo Brasil já seria uma das mais significativas operações da Polícia Federal por sua emblemática denominação, que resume e simboliza o efeito perverso que a corrupção causa ao país e aos seus cidadãos: o custo de ser usuário de serviços públicos precários, o custo da falta de educação pública de qualidade, o custo da saúde pública sucateada, o custo da violência urbana crescente, o custo das estatais dilapidadas, o custo das estradas esburacadas etc., enfim, o altíssimo custo de viver no Brasil.

Altíssimo custo que repercute de forma ainda mais inclemente sobre os contribuintes brasileiros, que vivem em um ambiente tributário caótico, onde predominam a insegurança e a incerteza, em que os entendimentos mudam ao sabor das necessidades de caixa do Estado, em que o que parecia estar consolidado, garantido, sumulado, de uma hora para outra, vira pó e esvai-se ao vento.

A mais recente violação de direitos assegurados aos contribuintes foi a decisão da 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), proferida na sessão de 2 de março de 2016, consubstanciada no Acórdão 9101-002.251, que, pelo voto de qualidade, deu provimento a recurso especial da PGFN para, em sentido contrário à Súmula Carf 105, admitir, a partir de 2007, o cabimento da “(…) exigência cumulativa da multa de ofício sobre a totalidade ou diferença de imposto ou contribuição, não recolhida, e da multa isolada sobre o valor do pagamento mensal apurado sob a base estimada ao longo do ano, não efetuado (…)”.

A impossibilidade de cumulação das multas em questão é matéria debatida há tempos na esfera administrativa, cujas decisões consolidaram-se em sentido favorável aos contribuintes, tanto que em 2014 o Pleno da CSRF acolheu a proposição 13 e editou a Súmula Carf 105, nos termos da qual:

A multa isolada por falta de recolhimento de estimativas, lançada com fundamento no art. 44, § 1º, IV da Lei n.º 9.430, de 1996, não pode ser exigida ao mesmo tempo da multa de ofício por falta de pagamento de IRPJ e CSLL apurado no ajuste anual, devendo subsistir a multa de ofício”. (grifos nossos)

Não obstante a existência de súmula — de observância obrigatória[1] — assegurando aos contribuintes que, no caso de lançamento de ofício relativo à exigência de IRPJ e CSLL apurados no ajuste anual, não caberia o lançamento concomitante de duas multas — a multa de lançamento de ofício, cobrada em conjunto com os tributos exigidos, e a multa pela não realização de recolhimentos por estimativa (“multa isolada”) —, a 1ª Turma da CSRF resolveu, pelo voto de qualidade, desobedecer àquela súmula, ao argumento de que os fundamentos que sustentaram o entendimento pelo descabimento da dupla penalidade não mais subsistiriam após o advento da Lei 11.488, de 2007, que deu nova redação ao artigo 44 da Lei 9.430/96, pelo que para fatos geradores ocorridos a partir de 2007 tal exigência seria válida.

Em primeiro lugar, não pode uma turma da CSRF, num simples julgamento, deliberar sobre a validade ou não de uma súmula, já que, nos termos do Regimento Interno do Carf, está previsto um rito procedimental para a aprovação de súmulas (artigo 73) igualmente aplicável à sua revisão ou cancelamento, hipóteses em que a iniciativa é privativa do presidente do Carf, do procurador-geral da Fazenda Nacional, do secretário da Receita Federal do Brasil ou de presidente de confederação representativa de categoria econômica habilitada à indicação de conselheiros (artigo 74, caput e parágrafo 2º).

Acresce que a competência para a edição e, por conseguinte, para revisão ou cancelamento, de enunciado de súmula é do Pleno da CSRF (artigo 72, parágrafo 1º). E, mesmo que se entenda que no caso da Súmula Carf 105 tal competência caberia à própria 1ª Turma, eis que a “multa isolada” é uma penalidade aplicável ao IRPJ e à CSLL, tributos da sua alçada, o certo é que as súmulas são aprovadas e, por conseguinte, revistas ou canceladas, pelo quórum qualificado de 3/5 da totalidade dos conselheiros do respectivo colegiado (artigo 72, parágrafo 3º), quórum esse que não foi atingido no julgamento em questão, decidido contrariamente aos contribuintes, uma vez mais pelo voto de qualidade.

Acrescente-se, ainda, que a tentativa de limitar temporalmente a proibição da cobrança cumulativa da multa isolada já havia sido considerada pelo Pleno da CSRF em duas ocasiões, e em ambas foram rejeitadas.

A primeira vez, no ano de 2012, quando foi submetida à apreciação a proposição 17, nos termos da qual: “Até 21 de janeiro de 2007, a multa prevista no artigo 44, inciso I, da Lei 9.430/96, não se aplica concomitantemente sobre o IRPJ ou CSLL devidos no ajuste anual e sobre as correspondentes estimativas não recolhidas, apurados sobre a mesma base de cálculo constatada em procedimento fiscal”.

A segunda vez, no ano de 2013, quando foi submetida à apreciação a proposição 9, nos termos da qual: “Até a vigência da Medida Provisória 351, de 2007, incabível a aplicação concomitante de multa isolada por falta de recolhimento de estimativas e de ofício pela falta de pagamento de tributo apurado no ajuste anual, devendo subsistir a multa de ofício”.

Ambas as proposições foram rejeitadas porque se entendeu que a “correção” promovida pela MP 351/2007, posteriormente convertida na Lei 11.488/2007, não seria suficiente para permitir a exigência de uma dupla penalização a partir de sua entrada em vigor.

Com efeito, a chamada “multa isolada” na redação original da Lei 9.430/96 era uma das modalidades alternativas da multa de lançamento de ofício prevista no caput do artigo 44, já que a mesma, nos termos do parágrafo 1º desse dispositivo, poderia ser cobrada juntamente com o tributo ou a contribuição, quando não houverem sido pagos (inciso I) ou isoladamente, no caso de pessoa jurídica sujeita ao pagamento do imposto de renda e da contribuição social sobre o lucro líquido, na forma do artigo 2º, que deixar de fazê-lo, (…) (inciso II). O recolhimento “na forma do artigo 2º” é o recolhimento mensal do imposto sobre base de cálculo estimada aplicável a contribuintes optantes pelo lucro real.

Na versão original da Lei 9.430/96, as duas multas incidiam sobre a mesma base de cálculo, qual seja “a totalidade ou diferença de tributo ou contribuição” (artigo 44, caput). A jurisprudência da CSRF firmou-se no sentido de que a identidade das bases de incidência das penalidades impedia sua exigência cumulativa, impondo-se o cancelamento da exigência da multa isolada (cfr. Acórdão CSRF/01-04.987, de 15/6/2004).

A MP 351/2007 reconheceu o acerto da jurisprudência da CSRF passando a prever duas bases distintas para as distintas modalidades de multas de lançamento de ofício: a de 75% incidiria sobre a totalidade ou diferença de imposto ou contribuição, nos casos de falta de pagamento ou recolhimento, (…) (inciso I), e a de 50% seria exigida isoladamente, incidindo sobre o valor do pagamento mensal (inciso II).

Sucede que a identidade das bases de cálculo das multas não era o exclusivo fundamento do descabimento da cobrança cumulativa, daí o porquê de o Pleno da CSRF não ter acolhido as duas proposições que limitavam temporalmente — até a entrada em vigor da MP 351/2007 — a proibição de exigência cumulativa.

Com efeito, dos sete precedentes invocados como fundamento para subsidiar a proposição 13, ao menos quatro são explícitos em afirmar que a impossibilidade de cumulação decorre também do “princípio da consunção”[2]. A questão é muito bem elucidada no voto doutrinário do então conselheiro Marcos Vinicius Neder de Lima proferido no Acórdão CSRF/01-05.838, de 15/4/2008:

“Quando várias normas punitivas concorrem entre si na disciplina jurídica de determinada conduta, é importante identificar o bem jurídico tutelado pelo Direito. Nesse sentido, para a solução do conflito normativo, deve-se investigar se uma das sanções previstas para punir determinada conduta pode absorver a outra, desde que o fato tipificado constitui passagem obrigatória de lesão menor, de um bem de mesma natureza para a prática da infração maior.

No caso sob exame, o não recolhimento da estimativa mensal pode ser visto como etapa preparatória do ato de reduzir o imposto no final do ano. A primeira conduta é, portanto, meio de execução da segunda.

Com efeito, o bem jurídico mais importante é sem dúvida a efetivação da arrecadação tributária, atendida pelo recolhimento do tributo apurado ao fim do ano-calendário, e o bem jurídico de relevância secundária é a antecipação do fluxo de caixa do governo representada pelo dever de antecipar essa mesma arrecadação. Assim, a interpretação do conflito de normas deve prestigiar a relevância do bem jurídico e não exclusivamente a grandeza da pena cominada, pois o ilícito de passagem não deve ser penalizado de forma mais gravosa que o ilícito principal. É o que os penalistas denominam “principio da consunção”.

Segundo as lições de Miguel Reale Junior: “pelo critério da consunção, se ao desenrolar da ação se vem violar uma pluralidade de normas passando-se de uma violação menos grave para outra mais grave, que é o que sucede no crime progressivo, prevalece a norma relativa ao crime em estágio mais grave…” E prossegue “no crime progressivo portanto, o crime mais grave engloba o menos grave, que não é senão um momento a ser ultrapassado, uma passagem obrigatória para se alcançar uma realização mais grave”.

Assim, não pode ser exigida concomitantemente a multa isolada e a multa de oficio na hipótese de falta de recolhimento de tributo apurado no final do exercício e também pela falta de antecipação sob a forma estimada. Cobra-se apenas a multa de oficio por falta de recolhimento de tributo.

Essa mesma conduta ocorre, por exemplo, quando o contribuinte atrasa o pagamento do tributo não declarado e é posteriormente fiscalizado. Embora haja previsão de multa de mora pelo atraso de pagamento (20%), essa penalidade é absorvida pela aplicação da multa de ofício de 75%. É pacífico na própria Administração Tributária, que não é possível exigir concomitantemente as duas penalidades – de mora e de oficio – na mesma autuação por falta de recolhimento de tributo. Na dosimetria da pena mais gravosa, já está considerado o fato de o contribuinte estar em mora no pagamento”.

Assim, seja pelas razões de forma, seja pelas razões de fundo, acima examinadas, a 1ª Turma da CSRF jamais poderia ter deixado de aplicar a Súmula Carf 105, como o fez no Acórdão 9101-002.251, de 2/3/2016.

E o pior é que as razões do contribuinte sobre importantíssimas questões de mérito que serviram de suporte para os acórdãos que embasaram a Súmula Carf 105 foram sumariamente rejeitadas pelo relator conselheiro Marcos Aurélio Pereira Valadão, como se pode ler da passagem final do seu voto:

“Em face, pois, da modificação legislativa efetuada, não procedem, também, as demais alegações do sujeito passivo, alinhavadas por ocasião de seu recurso voluntário, a saber: de “absorção”, de “exaurimento”, de “consunção”, de “conduta meio”, de “etapa preparatória”, de “meio de execução”, de “bem jurídico mais importante”, de “bem jurídico de relevância secundária”, de “dupla penalização do mesmo fato”, etc., etc.”.

A recusa em aplicar uma súmula constitui um desserviço à nação, que só aumenta o custo de ser contribuinte no Brasil. Ora, súmulas existem para serem obedecidas, são de observância obrigatória na letra expressa do regimento interno, serão aplicadas pelos órgãos de julgamento, concordem ou não com seu enunciado, pois se destinam a transmitir certeza no direito que será aplicado no presente, à luz de julgados que se fizeram no passado, para garantir a estabilidade das relações no futuro.

Ainda há de chegar o dia que nem passado nem presente nem futuro serão incertos para os contribuintes no Brasil.


[1] O artigo 72, caput do Regimento Interno do Carf dispõe que: “As decisões reiteradas e uniformes do Carf serão consubstanciadas em súmula de observância obrigatória pelos membros do Carf”.
[2] Os precedentes adotados na proposição 13 foram os seguintes: 9101-001.261, de 22/11/2011, 9101-001.203, de 17/10/2011, 9101-001.238, de 21/11/2011, 9101-001.307, de 24/4/2012, 1402-001.217, de 4/10/2012, 1102-00.748, de 9/5/2012 e 1803-001.263, de 10/4/2012.

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