Direito de Defesa

A presunção de inocência e o sucesso da operação "lava jato"

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28 de junho de 2016, 8h00

Spacca
A presunção de inocência voltará à pauta do STF. Em breve, a corte julgará duas ações declaratórias de constitucionalidade — propostas pelo Conselho Federal da OAB e pelo Partido Ecológico Nacional — que pretendem reabrir a discussão sobre o momento em que uma pena pode ser aplicada.

No início deste ano, ao julgar o HC 126.292, o STF decidiu que basta uma decisão condenatória em 2º grau para a execução da pena. Assim, se um tribunal condenar alguém — ou mantiver sua condenação — a sanção será imediatamente aplicada, ainda que a defesa tenha apresentado recursos especial ou extraordinário, para discutir a legalidade ou a inconstitucionalidade da decisão. Em outras palavras, se a pena for de prisão, o recorrente aguardará no cárcere o julgamento de seus pleitos.

As ações propostas pela OAB e pelo Partido Ecológico Nacional buscam rever tal posição do STF, com novos argumentos e fundamentos.

Há quem afirme ser este o “julgamento da 'lava jato'". Aduzem que se o STF rever sua posição será o fim da operação, porque as delações premiadas só ocorreram diante do receio dos réus de ir à prisão logo após seu julgamento pelo Tribunal Regional Federal. A postergação da reclusão seria um respiro, uma tranquilidade, que deixaria os acusados mais à vontade, e inibiria sua disposição em colaborar com a Justiça.

Há uma impropriedade e uma perversidade nesse raciocínio.

A impropriedade decorre de falta de informação. A maior parte das delações premiadas na "lava jato" ocorreu antes de o STF decidir o HC 126.292, ou seja, quando a execução da pena dependia do fim do processo, com o julgamento de todos os recursos. Foi nesse contexto que colaboraram com a Justiça Alberto Youssef, Paulo Roberto Costa, Julio Camargo, Dalton Avancini, Eduardo Leite, Ricardo Pessoa e tantos outros. A posição do STF sobre o momento da execução da pena foi irrelevante para tais colaborações.

Perversidade porque pretende superar uma garantia literal e expressa na Constituição e na lei para promover uma aflição qualificada do réu, que, ao ver se aproximar a execução da pena, se apressaria em colaborar. É evidente que ninguém delata porque quer, mas por medo da pena — mas isso não justifica passar por cima das regras vigentes ou da segurança jurídica.

E quais as regras vigentes?

A Constituição prevê que “ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória”[1] sendo o trânsito em julgado o final do processo, após o julgamento de todos os recursos.

O artigo 283 do Código de Processo Penal prevê que “ninguém poderá ser preso senão em virtude de flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, ou em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva” (sem grifos)[2].

Parece claro, portanto, que antes do fim do processo — do trânsito em julgado — não é possível executar a pena.

Há quem sustente que tais regras — se analisadas conjugadamente — afastam apenas a prisão antecipada, mas admitem outras penas alternativas. Essa posição — já adotada em alguns julgados do Tribunal Regional Federal da 3ª Região é plausível dentro dos parâmetros interpretativos existentes, pois transita dentro do limite literal dos dispositivos. Porém, aquela que admite qualquer pena, mesmo a de prisão, acaba por desconsiderar o expressamente disposto nas normas mencionadas.

Pode-se argumentar que as regras processuais atuais atrasam a aplicação da Justiça, favorecem a prescrição e geram impunidade. No entanto, são as regras em vigor. Se inadequadas, podem ser revisitadas, transformadas, mas por um processo legislativo próprio, conduzido pelo Congresso Nacional, e não pelo Poder Judiciário.

Alguém se levantará e afirmará que esse Congresso Nacional é maculado por acusações de corrupção e não tem condições de debater alterações legislativas no campo do Direito Penal ou do Processo Penal.

Porém, esse mesmo alguém deveria recordar que as principais leis que tornaram a operação "lava jato" possível foram aprovadas justamente por esse Legislativo. A Lei 12.683, que endureceu as regras para o combate à lavagem de dinheiro, a Lei 12.850, que regulamentou com clareza a delação premiada, e a Lei 12.846, que fortaleceu preceitos de combate à corrupção, foram todas aprovadas pelo Congresso Nacional, nos anos de 2012 e 2013, diante dos intensos movimentos das ruas, quando a composição da Câmara e a do Senado eram bastante similares à atual.

Isso não oferece um atestado de lisura ao Congresso, mas revela sua capacidade de legislar quando submetido à pressão popular, em um jogo próprio das democracias. Substituir tais movimentos por decisões judiciais, por mais elaboradas e bem intencionadas que sejam, não parece adequado à separação dos poderes. O brocardo que os fins justificam os meios não costuma ser salutar ao Estado de Direito.

Cumpre ao Judiciário garantir a vigência da lei, sua constitucionalidade, sua aplicação, mas não alterar seu conteúdo — por mais inadequado que seja, por mais que clame a opinião pública. Sempre válido recordar Rui Barbosa, em sustentação oral na Suprema Corte, em 1912: “Não importa ao STF saber se os seus julgados serão ou não respeitados pelo governo, se serão ou não acatados pela força, se terão ou não execução material, ante a anarquia ou as multidões revoltadas. Diante dos vossos olhos, venerandos Ministros, não existe senão a letra da lei, na sua vontade expressa ou na sua vontade implícita, a lei nos seus preceitos, a lei no que ela manda, a lei no que ela exige, no que ela impõe”.

Não se trata de ser contra ou a favor da "lava jato". A decisão do STF não tem impactos diretos na operação, porque — como já dito — a maior parte de seus avanços aconteceu sob a orientação anterior do STF, quando não se podia antecipar a execução da pena. Portanto, o sucesso e a importância das investigações em curso não é argumento válido.

Mais do que um processo, mais do que uma prisão, o que se discutirá no STF é a legalidade, o respeito às normas em vigor — e o flerte com a supressão de tais princípios não costuma trazer bons resultados a médio prazo.


[1] CF, art.5o, LVII, sem grifos.
[2] Sobre esse artigo 283, importa assinalar que não se trata de dispositivo antigo. Sua atual redação foi aprovada em 2011 e proposta por ninguém menos que Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho, Sacarance Fernandes, Petrônio Calmon Filho, Miguel Reale Jr., Luiz Flávio Gomes, Nilzardo Carneiro Leão, René Ariel Dotti, Rogério Lauria Tucci e Sidney Beneti, que enfatizavam: “O projeto sistematiza e atualiza o tratamento da prisão, das medidas cautelares e da liberdade provisória, com ou sem fiança. Busca, assim, superar as distorções produzidas no Código de Processo Penal com as reformas que, rompendo com a estrutura originária, desfiguraram o sistema. (…) Nessa linha, as principais alterações com a reforma projetada são: (…) d) impossibilidade de, antes da sentença condenatória transitada em julgado, haver prisão que não seja de natureza cautelar” (sem grifos).

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