Estado da Economia

Uso mais intensivo da ciência econômica no antitruste europeu

Autor

  • José Maria Arruda de Andrade

    é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP) livre-docente e doutor pela mesma instituição professor do programa master de pós-graduação em Finanças e Economia da Escola de Economia de São Paulo Fundação Getulio Vargas (FGV EESP) foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

26 de junho de 2016, 8h00

Spacca
Parte 1. More economic approach
O debate do Direito Concorrencial Europeu hodierno está marcado por uma reforma institucional, normativa e jurisprudencial da comissão europeia e por sua repercussão na doutrina, o que, certamente, impulsionou um questionamento (para mencionar o mínimo) de vários pressupostos culturais europeus sobre o tema. O conjunto desses fatores tem sido chamado por toda a literatura especializada de more economic approach e tem despertado a atenção para vários fatores e inquietações, como: (i) se se trataria de uma “americanização” ou ao menos convergência com a ortodoxia neoclássica norte americana?; (ii) isso causaria insegurança jurídica?; (iii) o emprego de muitos economistas na comissão não seria ineficiente do ponto de vista dos gastos (custo/benefício)?; (iv) e a aproximação com a economia não deveria se dar com base em outros pressupostos teóricos, que não o da análise estática?

Apesar do silêncio da doutrina brasileira sobre o tema, muitos livros[1] e artigos europeus (sobretudo alemães) estão sendo escritos para analisar o assunto — muitos deles em tom crítico.

A reforma que desencadeou o more economic approach teve início com a regulação de acordos verticais (Regulamento Genérico 2790/1999) em 1999, com a adoção do guia para a aplicação do artigo 81 (3) [atual artigo 101 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia – TFUE], com o regulamento sobre fusões de 2004 e com as guidelines para a aplicação do artigo 82 (EC) [atual artigo 102 do TFUE]. Uma figura central nessa mudança institucional foi o então comissário Mario Monti, que descreveu o processo como uma guinada de um “legalistic based approach to an interpretation of the rules based on sound economic principles”[2].

O controle de concentrações de empresas tem início na Europa em 1989, já que antes utilizava-se apenas o Direito Antitruste comum (artigos 101 e 102 do Tratado de Roma). A partir dessa data, há um regulamento específico para a análise, que será utilizado até as reformas que deram origem ao tema aqui estudado[3].

Assim, na Comissão Europeia, os casos de concentração econômica eram julgados a partir da pesquisa de eventuais posições dominantes. No julgamento, em 2002, de três casos, a comissão resolveu aplicar um teste econômico Siec (Significant Impediment to Effective Competition)[4].

Se a primeira iniciativa de uma análise mais econômica de casos de fusão (os três casos de 2002) já demonstrava esse deslocamento, com a reforma dessas decisões pela primeira instância judicial (Tribunal Geral), com o fundamento de que os pressupostos econômicos não estariam claros e bem demonstrados, houve o impulso para a elaboração dos pressupostos teóricos e institucionais do more economic approach[5].

Ao comentar a reforma que se iniciava e que seria apresentada em 2004, especificamente sobre o controle de concentrações, Mario Monti declarou que se tratava de uma maior convergência entre as políticas concorrenciais dos Estados Unidos e Europa[6].

Além disso, houve alterações processuais e administrativas, tendo, a comissão criado vários cargos para economistas, notadamente, a de um economista-chefe.

Outro ponto importante foi a referência à eficiência como fator compensatório para a aprovação de concentrações, a despeito do aumento de poder de mercado. Ainda que os limites para essa aprovação sejam bem estreitos, como lembra Arndt Christiansen, a depender da demonstração de se tratar de eficiência relacionada especificamente à concentração e de que haverá benefício, ao menos em parte, ao consumidor[7]. Essa referência a eficiências econômicas compensatórias de eventuais concentrações ou posições não deixa de representar certo alinhamento europeu com o debate norte-americano[8].

Como se percebe, o desafio de se demonstrar e dar maior transparência às bases econômicas das decisões da comissão obrigou-a a estabelecer as bases teóricas para os próximos julgados. A base teórica pode ser identificada com as abordagens pós-Chicago, ou seja, uma base ortodoxa com a revisão de vários postulados mais normativos da fase da Escola de Chicago[9].

Uma reflexão, por fim, pode ser feita sobre os motivos que desencadearam o movimento e a reforma. David Gerber menciona dois fatores relevantes. O primeiro, a própria globalização e a disputa de empresas europeias com empresas americanas e japonesas. O segundo, a europeização, com a expansão da União Europeia e uma busca crescente por homogeneização institucional[10].

Esses são os fatos históricos presentes no surgimento do more economic approach. A questão que logo se apresenta é saber até que ponto a convergência em torno de uma base mais neoclássica e voltada à eficiência econômica significaria uma adesão expressiva ou uma “americanização” do Direito Europeu.

A primeira questão, nesse sentido, é saber se, de fato, a comissão europeia advoga essa orientação para a eficiência econômica, o que, como assinala Josef Drexl[11], está longe de ter uma resposta fácil. Em documentos como a Guidelines on Vertical Restraints, o objetivo principal da política europeia é a proteção à concorrência, relacionada diretamente ao bem-estar do consumidor e à eficiência alocativa.

Assim como debatido nos EUA, no plano teórico, e em várias legislações, quanto aos vários critérios para justificar uma concentração econômica, a análise do artigp 102 do tratado busca resolver muitos dos conflitos entre eficiência econômica de um lado e, de outro, concorrência efetiva e proteção do consumidor.

Registre-se, portanto, que no conflito entre eficiência econômica e efetiva concorrência e interesse dos consumidores, os últimos deverão prevalecer[12].

Apesar do uso do referencial neoclássico (pós-Chicago), e da declaração do Mario Monti assegurando uma maior convergência, seria exagerado falar em uma “americanização” do Direito Concorrencial Europeu. Além disso, a preocupação com o estado de concorrência em si continua a estar presente e não foi substituída por uma eficiência econômica da redução de custos. 

Parte 2. Even more economic approach
Uma das formas, talvez, de se melhorar o debate e diminuir a tensão entre abordagens jurídicas e econômicas seja, ao mesmo tempo do desenvolvimento teórico multidisciplinar, incentivar o estudo dos modelos mais atuais de simulações econômicas. Será mediante esse uso cada vez mais técnico, transparente (inclusive quanto ao alcance preditivo limitado) e cada vez mais divulgado quanto a seus pressupostos, que a microeconomia contribuirá para o fortalecimento do positivismo jurídico contemporâneo e para a segurança jurídica, e não, ao contrário, para a sua insegurança.

Josef Drexl chega a cunhar a expressão even more economic approach para defender o uso mais intensivo da economia, mediante seu aprofundamento (não deixando de lado a importância do papel das instituições e sem olvidar a importância de modelos evolucionistas e abordagens empíricas)[13].

Gostaríamos de usar a mesma expressão para dar um passo adiante, no sentido de incluir o debate metodológico, declarando que um even more economic approach poderá transformar-se em mais positivismo jurídico e menos consequencialismo ou ativismo econômico-jurídico típico do law and economics.

A economia contribuiu muito para a análise econômica do Direito. Está na hora de trabalharmos em uma análise jurídico-econômica da análise econômica do Direito. Sobretudo em uma proposta mais factível de hermenêutica jurídica, de teoria da argumentação e de teoria da decisão, menos comprometida com contas de chegada.

Daí a ideia de que um even more economic approach, uma maior economicização do Direito Concorrencial, poderá se transformar em mais positivismo jurídico e menos consequencialismo ideológico.

Tudo isso, claro, levando em conta que os argumentos econômicos poderão ajudar os julgadores de casos de Direito Concorrencial a formar suas convicções, ou seja, os modelos atuarão como provas, como garantias dos argumentos, e não como fundamento legal de uma decisão que, ao fim e ao cabo, continua sendo jurídica, como qualquer aplicação legal de qualquer ramo do Direito.


[1] Por exemplo, os extensos e detalhados Arndt CHRISTIANSEN, Der «More Economic Approach» in der EU-Fusionskontrolle: Entwicklung, konzeptionelle Grundlagen und kritische Analyse, 1., Aufl., Lang, Peter Frankfurt, 2010; Thomas HEIDRICH, Das evolutorisch-systemtheoretische Paradigma in der Wettbewerbstheorie: Alternatives Denken zu dem More Economic Approach, 1º ed., Nomos, 2009; Thomas PAUL, Behinderungsmissbrauch nach Art. 82 EG und der “more economic approach”, Köln; München: Heymann, 2008; Adrian KÜNZLER, Effizienz oder Wettbewerbsfreiheit?: Zur Frage nach den Aufgaben des Rechts gegen private Wettbewerbsbeschränkungen, 1º ed., Mohr Siebeck, 2009.
[2] Josef DREXL, “Is there a ‘more economic approach’ to intellectual property and competition law?”, p. 27. Ver, ainda, Mario MONTI, “EU Competition Policy After May 2004”, apresentado em Fordham Annual Conference on International Antitrust Law and Policy New York October 24, 2003, New York, 2003, http://www.eurunion.org/news/speeches/2003/031024mm.htm. “[…] The new approach has had a tangible influence on the amended Merger Regulation (ECMR of May 2004 and the new Horizontal Merger Guidelines (HMG) as well as on recent decisionmaking. Furthermore, the "more economic approach" is to be extended to other areas of competition policy such as the control of abusive practices under Article 82 of the EC Treaty and the control of state aid under Articles 86ff. of the EC Treaty”. In: Arndt CHRISTIANSEN, “The ‘More Economic Approach’ in EU Merger Control – A Critical Assessment”, Deutsche Bank Research. Working Paper Series. Research Notes 21, 2006, p. 1. Sobre os primórdios do more economic approach, mostrando a influência da Escola de Chicago em alguns autores, antes das reformas da comissão, ver David GERBER, Global Competition: Law, Markets, and Globalization, Reprint., Oxford University Press, USA, 2012, p. 193-194.
[3] Para uma análise histórica, ver Romano SUBIOTTO e Martim VALENTE, “A Evolução do Direito Europeu das Concentrações”, in Concentração de Empresas no Direito Antitruste Brasileiro: Teoria e Prática dos Atos de Concentração, org. André Marques Gilberto, Celso Fernando Campilongo e Juliana Girardelli Vilela, São Paulo: Singular, 2011, p. 447-455.
[4] “[…] By replacing the previous market-dominance test by the so-called SIEC (significant impediment to effective competition) test, the Commission hopes to have a better chance to successfully ban mergers in cases involving non-coordinated effects in oligopolistic markets. By holding that the Commission had not sufficiently justified its decision, the CFI effectively pushed the Commission to improve its economic reasoning. As an additional consequence of this, the Commission created the new position of chief economist with a mandate to evaluate Commission decisions from the perspective of economics”. In: Josef DREXL, “Is there a ‘more economic approach’ to intellectual property and competition law?”, p. 29. Os casos analisados foram: Case T-342/99, Airtours v. Commission, [2002] ECR II-2585; Case T-5/02, Tetra Laval v. Commission, [2002] ECR II-4381; Case T-310/01, Schneider Electric v. Commission, [2002] ECR II-4071. Ver, ainda, Arndt CHRISTIANSEN, “The ‘More Economic Approach’ in EU Merger Control – A Critical Assessment”, p. 2. Sobre os três casos, em detalhe, ver Arndt CHRISTIANSEN, Der «More Economic Approach» in der EU-Fusionskontrolle: Entwicklung, konzeptionelle Grundlagen und kritische Analyse, p. 59-75.
[5] Após essas reformas pelo Tribunal da Primeira Instância, a comissão recorreu ao tribunal hierarquicamente superior, alegando que o Tribunal Geral não respeitara sua margem de discricionariedade ao apreciar questões econômicas. O recurso não foi provido e a decisão considerou que o certo grau de discricionariedade não impede a reanálise detalhada pelo Tribunal, mormente em casos de análises prospectivas. Ver Romano SUBIOTTO e Martim VALENTE, “A Evolução do Direito Europeu das Concentrações”, p. 457.
[6] Mario MONTI, “EU Competition Policy After May 2004”.
[7] “For instance, the efficiencies must be merger-specific and must be verifiable, and they must – at least in part – benefit consumers. Here, the burden of proof lies with the firms, in contrast to the normal merger control procedure. In this connection, the expected efficiency gains have to be weighed quantitatively against merger–related losses in economic welfare. This can only be done on the basis of an individual in-depth analysis, which also requires the use of a simulation model (German Federal Cartel Office 2004, pp. 7ff.). So, here, there are certain parallels with the assessment of unilateral effects. All in all, another economic concept has been incorporated which, based on the theory of Williamson (1968) and known as ‘efficiency defense’, is already established practice in US merger control”. In: Arndt CHRISTIANSEN, “The ‘More Economic Approach’ in EU Merger Control – A Critical Assessment”, p. 6-7.
[8] Arndt CHRISTIANSEN, “The ‘More Economic Approach’ in EU Merger Control – A Critical Assessment”, p. 7.
[9] Cf. Josef DREXL, “Is there a ‘more economic approach’ to intellectual property and competition law?”, p. 35. Comentando a base neoclássica estática, Ingo L. O. SCHMIDT, “The suitability of the more economic approach for competition policy: dynamic vs. static efficiency”, p. 419. Sobre os fundamentos econômicos do more economic approach, ver Arndt CHRISTIANSEN, Der «More Economic Approach» in der EU-Fusionskontrolle: Entwicklung, konzeptionelle Grundlagen und kritische Analyse, p. 127-284.
[10] David J. GERBER, “Anthropology, History and the ‘More Economic Approach’ in European Competition Law – A Review Essay”, International Review of Intellectual Property and Competition Law, 2010, p. 448. Ver, ainda, a modernização do direito concorrencial europeu no contexto da globalização e o more economic approach, David GERBER, Global Competition: Law, Markets, and Globalization, p. 187-204.
[11] “According to this formula, competition law aims at protecting competition, but only does so because such protection enhances efficiency and – as an expression of aggregate welfare and efficiency – overall consumer welfare. The Guidelines only add one additional objective of EC competition law, namely that of enhancing market integration”. In: Josef DREXL, “Is there a ‘more economic approach’ to intellectual property and competition law?”, p. 32.
[12] ““[…] In this regard, the Commission advocates sophisticated economic reasoning that is characteristic of the Post-Chicago School in the United States. However the Commission does not accept efficiency as the ultimate and single goal of competition policy. It rather embraces the normative judgment of EC competition law made in the context of Article 81(3) EC in favour of a ‘consumer surplus standard’ and the protection of effective competition as goals that may not be overthrown by mere efficiency considerations and it extends this judgment to other fields of EC competition law. Thereby the ‘more economic approach’ maintains its distinctive European nature, although it moves EC competition law closer to US antitrust law by applying Post-Chicago School economic reasoning”, in: Josef DREXL, “Is there a ‘more economic approach’ to intellectual property and competition law?”, p. 35.
[13] Josef DREXL, “Wettbewerbsverfassung”, in Europäisches Verfassungsrecht: theoretische und dogmatische Grundzüge, org. Armin von Bogdandy e Jürgen Bast, Dordrecht [u.a.]: Springer-Lehrbuch, 2009, p. 940.

Autores

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    é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da USP, livre-docente em Direito Econômico e doutor em Direito Econômico e Tributário pela USP. Foi pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique, na Alemanha.

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