Pedágio por acordo

Especialistas criticam tentativa do MPF de receber percentual por leniência

Autores

26 de junho de 2016, 18h45

Já tem despertado críticas nos meios jurídico, político e acadêmico a intenção do Ministério Público Federal de receber parte dos valores negociados em acordos de leniência com empresas investigadas na operação “lava jato”. Cláusulas fixadas pela força-tarefa do caso determinam que órgãos responsáveis pela investigação recebam até 20% do valor das multas pagas pelas empresas, segundo o jornal Folha de S.Paulo.

O MPF deve ganhar 10% dos acordos da Andrade Gutierrez —multada em R$ 1 bilhão— e da Camargo Corrêa — que se comprometeu a pagar R$ 700 milhões. Assim, essas duas negociações renderiam R$ 170 milhões à instituição. A Procuradoria-Geral da República tentou incluir condição semelhante em investigações acompanhadas pelo Supremo Tribunal Federal, mas o ministro Teori Zavascki não viu justificativa legal para o repasse.

Para especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico, a medida aparenta “gorjeta” ou “pedágio” pelo fechamento de acordos. A possibilidade de o Ministério Público se beneficiar de acordos propostos também já foi rejeitada pelo Conselho Nacional do MP (leia mais abaixo).

Fellipe Sampaio /SCO/STF
Para ministro Marco Aurélio, MPF não pode pegar "carona" nos acordos.
Fellipe Sampaio/SCO/STF

O ministro Marco Aurélio, vice-decano do STF, avalia que órgãos públicos só podem aplicar recursos com base nos orçamentos oficiais. “Não há como, sob o princípio da razoabilidade, cogitar-se de uma carona no que é cobrado, seja em decisão criminal, seja em acordos. Não consigo conceber que se tenha considerado que o órgão público receba uma espécie de gorjeta”, declarou o ministro.

Nem na Polícia Federal, que poderia ser beneficiada com mais repasses, há apoio à iniciativa, segundo o presidente da associação dos delegados da corporação (ADPF), Carlos Eduardo Miguel Sobral. “Vários órgãos têm competência concorrente para fechar acordo com colaboradores de investigações. Não é razoável que nenhum deles seja beneficiado pelo próprio acordo. Isso pode comprometer a imparcialidade e criar competição por novas negociações. Esse pedágio é inconveniente, inoportuno e contra o interesse público”, afirma.

O professor Mario Engler Pinto Junior, coordenador do Mestrado Profissional da FGV Direito SP e autor de artigos sobre acordos de leniência, aponta que nenhum outro órgão competente – como a Comissão de Valores Mobiliários e o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) – fica com parcela do dinheiro recebido. Quando a vítima dos desvios é um órgão do Estado, os valores devem ser destinados exclusivamente ao caixa único do Tesouro, diz o professor.

“O Ministério Público tem feito um trabalho excepcional e merecidamente deve ser apoiado pela sociedade e receber recursos que lhe permitem investigar. Mas os gastos devem ser alocados pelas regras do orçamento público, dentro de outras prioridades, como saúde e educação.”

O repasse do percentual é defendido por representantes do MPF inclusive em reuniões no governo federal que estudam um marco regulatório para os acordos de leniência. Um membro do governo Michel Temer (PMDB), que falou à ConJur sob condição de anonimato, entende que a regra pode ferir o princípio da impessoalidade ao permitir que uma das partes interessadas fique com o dinheiro.

Troca de carroça
O procurador da República Carlos Fernando dos Santos Lima, integrante da força-tarefa da “lava jato”, disse à Folha que órgãos de persecução “se beneficiariam muito do aporte de recursos para a aquisição de equipamentos e softwares sofisticados, essenciais em investigações modernas e eficientes”, defendeu. Ele entende que “o poder público anda em carroça, enquanto o crime organizado possui uma Ferrari.”

“Infelizmente certas ideias demoram para serem [sic] aceitas, mas esperamos que a disposição da Lei de Combate à Lavagem de Dinheiro tenha vindo para ficar”, escreveu Santos Lima por e-mail, com base em trecho que impõe à União o dever de regulamentar a destinação de “bens, direitos e valores” alvo de apreensão judicial e assegurar sua utilização “pelos órgãos encarregados da prevenção, do combate, da ação penal e do julgamento” de crimes.

Já o ministro Teori Zavascki, em sua decisão, afirmou que o artigo 91, II, b, do Código Penal estabelece, como um dos efeitos da condenação, “a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé, do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso”. Para o relator da “lava jato” no STF, a Petrobras é “sujeito passivo” dos crime, tendo direito de receber valores desviados.

Proposta anterior
Em novembro de 2008, o Conselho Nacional do Ministério Público negou proposta de resolução que queria permitir cláusulas de prestação pecuniária em favor de determinados entes, inclusive públicos, em negociações de suspensão do processo, transação penal e termos de ajuste de conduta (TACs).

Na ocasião, o colegiado concluiu que isso seria uma forma de controle administrativo sobre a atividade-fim, o que é proibido pela Constituição Federal. “Destinação de recursos incluídos como condição para a suspensão do processo, a transação penal e o ajuste de conduta só pode sofrer restrição por lei penal, civil ou processual, com reserva de parlamento federal”, diz a decisão.

Reprodução
Quando era conselheiro do CNMP, Nicolao Dino afirmou que dificuldades de órgãos de investigação não justificam cobrança.
Reprodução

Conforme o CNMP, há vários precedentes na legislação brasileira e no Direito Comparado que indicam o Estado como beneficiário direto das consequências do crime e de outros atentados a interesses difusos. “A experiência nacional e estrangeira demonstram que essa possibilidade não viabiliza a 'comercialização da jurisdição penal'”, conclui.

Ao analisar um caso específico, naquele mesmo ano, o próprio CNMP já havia proibido que a Promotoria de Ouro Fino (MG) incluísse como beneficiárias entidades que tenham entre seus objetivos o apoio ao Poder Judiciário, ao Ministério Público ou às Polícias Civil e Militar.

“Embora não se desconsiderem as dificuldades, em termos de estrutura física e de pessoal, por que passam as instituições responsáveis pela persecução penal, não se pode concordar com a circunstância de a proposta de transação penal vir a se tornar mecanismo por meio do qual o Estado supra carências materiais de que padece”, escreveu na época o então conselheiro Nicolao Dino de Castro e Costa Neto, hoje vice-procurador-geral eleitoral e ex-coordenador da Câmara do MPF de Combate à Corrupção (5ª CCR).

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!