Ambiente Jurídico

Licenciamento ambiental em um único nível competência

Autor

  • Talden Farias

    é advogado professor associado da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) professor adjunto da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro da Comissão de Direito Ambiental do IAB.

25 de junho de 2016, 8h05

Spacca

A LC 140 foi editada no dia 8 de dezembro de 2011 no intuito de regulamentar os incisos III, VI e VII do caput e do parágrafo único do artigo 23 da Constituição Federal, fixando regra para a cooperação entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção do meio ambiente. Várias novidades surgiram, a exemplo do reconhecimento da competência licenciatória municipal em lei federal, da substituição do critério do impacto ambiental direto pelo da localização e da vinculação da competência sancionatória à competência para licenciar.

Entretanto, nenhuma das inovações da citada lei foi tão questionada quanto o estabelecimento da obrigatoriedade do licenciamento ambiental em um único nível de competência. Isso fez com que deixasse de ser possível pleitear a licença ambiental junto a dois ou três órgãos ambientais de forma simultânea, fato que ocorria com certa frequência anteriormente:

Artigo 13. Os empreendimentos e atividades são licenciados ou autorizados, ambientalmente, por um único ente federativo, em conformidade com as atribuições estabelecidas nos termos desta Lei Complementar. 

§ 1º. Os demais entes federativos interessados podem manifestar-se ao órgão responsável pela licença ou autorização, de maneira não vinculante, respeitados os prazos e procedimentos do licenciamento ambiental. 

Isso aponta que a legislador quer resguardar a autonomia do ente responsável para conduzir o licenciamento ambiental, independentemente de ser a União, o estado, o Distrito Federal ou o município, cabendo somente a ele a última palavra. É claro que essa limitação diz respeito ao âmbito administrativo apenas, visto que o órgão ambiental meramente fiscalizador tem a obrigação de provocar o Ministério Público e/ou o Poder Judiciário diante de irregularidades.

Não é que se trate exatamente de uma novidade, uma vez que essa unicidade já estava prevista no artigo 7º da Resolução 237/97 do Conama. O problema é que essa norma não tinha o respaldo jurídico nem político necessário, dado que o parágrafo único do artigo 23 da Constituição Federal exigia uma lei complementar. De mais a mais, não é papel de resolução criar obrigações, mormente em se tratando de repartição de competência.

Esse entendimento também poderia ser inferido da Constituição da República, a partir de uma interpretação que buscasse a maior efetividade possível. Daí a Cartilha de Licenciamento Ambiental do Tribunal de Contas da União afirmar que a previsão do licenciamento ambiental múltiplo do artigo 2º da Resolução 006/87 do Conama não foi recepcionada pela nova ordem constitucional, de maneira que os órgãos ambientais passaram a atuar de forma integrada e o licenciamento ambiental a ser feito em um único procedimento[1]. Em última análise, isso decorreria não apenas dos artigos 23 e 225 da Lei Maior, mas também da Lei 6.938/81, que instituiu o Sisnama na tentativa de integrar a atuação dos órgãos ambientais nos três níveis federativos. Por isso, doutrinadores importantes defendiam essa tese, a exemplo de Andreas J. Krell[2], Édis Milaré[3] e Daniel Roberto Fink e André Camargo Horta de Macedo[4].

Não obstante, a maior parte da doutrina e da jurisprudência defendia a constitucionalidade do licenciamento múltiplo em função de uma interpretação literal da competência comum estabelecida no artigo 23 da Carta Magna, bem como da ausência da lei complementar regulamentadora prevista no parágrafo único do dispositivo. Portanto, é possível afirmar que essa exigência configura sim uma novidade.

Aliás, não é por outra razão que o parágrafo 2º do artigo 13 dispõe que a autorização para supressão vegetal deve ser concedida pelo próprio órgão licenciador e não mais pelo órgão estadual de meio ambiente, como antes exigia o artigo 19 da Lei 11.284/06. Em última análise, essa vinculação visa impedir a supressão vegetal de um empreendimento cujo licenciamento não for viável, sendo o órgão licenciador o mais hábil para fazer tal juízo. Isso significa que a concepção de unicidade do licenciamento permeia a LC 140/2011, que tem por escopo a busca por mais eficiência e racionalidade, pois além do caput do artigo 13 também fazem referência ao licenciamento exclusivo ou não compartilhado os seguintes dispositivos: artigos 7º, XIII, XIV, 8º, XIII, XIV, XV e 9º, XIII, XIV.

A despeito da previsão legal, parte da doutrina ainda rejeita a ideia sob o argumento de que esta lei seria inconstitucional por restringir a competência comum dos entes federativos[5]. Trata-se, no entanto, de uma interpretação meramente literal do artigo 23 da Lei Fundamental, que não leva em conta a concepção federativa nem a sistemática constitucional adotada. De fato, a compreensão de que a competência comum não pode sofrer regulamentação não parece gozar do necessário embasamento constitucional, dado que o federalismo cooperativo pressupõe a organização de tarefas. Admitir a responsabilidade comum absoluta seria não apenas aceitar, mas sobretudo estimular as atuações sobrepostas e contraditórias entre os entes, alimentando os tão recorrentes conflitos positivos e negativos de competência. Versando sobre matéria ambiental, o próprio ministro Barroso[6], do STF, defende que a sobreposição desnecessária de atuações é incompatível com o federalismo cooperativo:

(…) o dever compartilhado não significa (…) que o propósito da Constituição seja a superposição completa entre a atuação dos entes federados, como se todos detivessem competência irrestrita em relação a todas as questões. Na realidade, a divisão de competências ambientais é realizada não apenas em respeito à autonomia federativa — o que já seria fundamento bastante — mas também para assegurar efetividade à tutela do meio ambiente e harmonizá-la com outras finalidades igualmente protegidas pela Constituição.

Com efeito, é um equívoco confundir o dever de proteger o meio ambiente com a obrigatoriedade da concomitância de ações, pois isso muito mais atrapalha do que ajuda. O próprio STF já proferiu esse juízo na ADI 2.544/RS[7]:

2. A inclusão de determinada função administrativa no âmbito da competência comum não impõe que cada tarefa compreendida no seu domínio, por menos expressiva que seja, haja de ser objeto de ações simultâneas das três entidades federativas: donde, a previsão, no parágrafo único do art. 23 CF, de lei complementar que fixe normas de cooperação (v. sobre monumentos arqueológicos e pré-históricos, a L. 3.924/61), cuja edição, porém, é da competência da União e, de qualquer modo, não abrange o poder de demitirem-se a União ou os Estados dos encargos constitucionais de proteção dos bens de valor arqueológico para descarregá-los ilimitadamente sobre os municípios.

Vale dizer que, se essa possibilidade de regulamentação não existisse, o parágrafo único do artigo 23 da Lei Fundamental não teria previsto a edição da lei complementar. Afinal de contas, sob o ponto de vista jurídico, não havia qualquer óbice à cooperação voluntária, com base nos instrumentos tradicionais, a exemplo do convênio administrativo e do consórcio público, faltando apenas talvez a maturidade política para isso. Por certo, não existe outra forma de regulamentar tal competência senão delimitando as responsabilidades específicas de cada ente federativo. Além do mais, foi exatamente a ausência dessas regras que causou uma série de conflitos, resultando em prejuízos de ordem econômica, ecológica, jurídica e social.

Por outro lado, a autonomia federativa é que parece estar em jogo com a multiplicidade, dado que o órgão ambiental verdadeiramente competente poderia sucumbir à atuação dos demais[8]. O próprio STF já se pronunciou a respeito do assunto no caso da transposição do rio São Francisco, quando decidiu que o estado de Minas Gerais não poderia interferir decisivamente no licenciamento[9]. Ademais, é claro o desrespeito ao princípio da predominância do interesse, critério constitucional para a repartição de competências. Daí Paulo de Bessa Antunes[10] e Romeu Thomé[11] defenderem que a questão do único nível já está sacramentada.

É importante lembrar que o objetivo da a repartição de competência no Estado federativo é garantir eficiência e impedir a ocorrência de conflitos[12]. Logo, não faria sentido interpretar a novel ordem jurídica com olhares de antanho, notadamente porque a nova lei não dá margem a outros entendimentos nesse quesito.

Outro argumento contra a unicidade seria que o licenciamento múltiplo tornaria o controle ambiental mais rígido, pois a atuação de um maior número de órgãos ambientais diminuiria a possibilidade de falhas. É nesse contexto que Paulo Affonso Leme Machado[13] vislumbra uma melhor proteção do meio ambiente, o que guardaria consonância com os ditames constitucionais.

Essa convicção, contudo, também parece equivocada, pois não é possível esquecer que os padrões de qualidade a serem exigidos no licenciamento são os mesmos, de maneira que não pode interferir no controle ambiental o fato de o processo ser conduzido junto à União, ao Distrito Federal, aos Estados ou aos Municípios. Em que pesem as boas intenções, a prática demonstrou que foi exatamente essa indefinição que gerou a maioria dos conflitos, até porque existe a tendência dos órgãos ambientais disputarem as atividades mais interessantes do ponto de vista econômico, político e de mídia, deixando de lado o que não é atrativo. É essa a lição de Eduardo Fortunato Bim:

O licenciamento ambiental único, efetuado por um só órgão licenciador não é apenas um capricho legal, mas se funda na eficiência e na melhor prote­ção do meio ambiente. Não faria sentido que se duplicassem ou triplicassem os esforços para licenciar o mesmo empreendimento, com comprometimento dos escassos recursos humanos e materiais estatais, se o licenciamento por um só ente é suficiente para proteger o meio ambiente.

Ademais, esse desperdício de recursos humanos e materiais significa que o meio ambiente, em outras frentes ficará desprotegido pela ausência de Estado para fiscalizar e/ou operar os diversos instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente[14].

Com certeza, admitir a interpretação literal da competência comum em matéria de licenciamento ambiental sem qualquer ressalva é entregar os órgãos ambientais e os empreendedores à própria sorte, sem garantir necessariamente a melhoria da proteção ao meio ambiente. Não se vislumbra nenhum benefício para o meio ambiente em uma arena política dominada pela insegurança jurídica, conjuntura em que todos os interesses saem prejudicados, seja de forma mediata ou imediata. Certamente foi por isso que o licenciar em um único nível não foi objeto de questionamento na ADI 4.757 proposta pela Asibama em face da lei em tela.

É possível apontar como fundamento do único nível de licenciamento a eficiência, que é um dos princípios da administração pública, e a razoabilidade, já que dessa maneira o administrado perderia menos tempo, e o poder público, menos tempo e dinheiro. Não é razoável que dois entes federativos se proponham a licenciar um mesmo tipo de atividade enquanto uma série de outras atividades não está sendo licenciada por falta de alcance e de estrutura desses mesmos órgãos, problema esse que é de conhecimento público.

Se há um grande número de atividades que deveriam estar submetidas ao licenciamento, mas que não o estão por conta da falta de estrutura estatal, é recomendável que o mecanismo seja utilizado somente em um único nível de competência. A lógica é que os entes administrativos atuem em suas respectivas jurisdições, cada um trabalhando com determinados tipos de atividades, porque a atuação integrada tende a ser mais objetiva na consecução do objetivo maior do licenciamento, que é a concretização do direito fundamental ao meio ambiente equilibrado. Não é à toa que o licenciamento único é acolhido em todas as federações democráticas, consoante relembra Andreas J. Krell[15].

Por fim, calha lembrar que o parágrafo 1º do dispositivo transcrito dispôs sobre a participação não vinculante dos demais entes federativos, seja por meio dos órgãos ambientais ou de outros órgãos públicos interessados, que são os chamados órgãos intervenientes (Funai, ICMBio, Iphan etc.). Há autores que entendem que essa participação é vinculante, de forma que estaria a atuação do órgão licenciador condicionada aos demais órgãos. Entretanto, além de atentar contra a autonomia federativa, admitir a interferência vinculante seria invalidar a unicidade do licenciamento, premissa que permeia toda a lei em questão[16]. Ademais, isso seria um estímulo à permanência dos conflitos federativos, exatamente a situação que se pretendeu combater, uma vez que o ente não licenciador poderia tentar determinar o que poderia ou não poderia ser feito.

Existe uma lacuna, que é a falta de disciplinamento do momento e da forma dessa participação. Com efeito, até hoje não se sabe ao certo se a manifestação dos órgãos públicos interessados será antes, durante ou após a finalização do estudo ambiental, nem se deverá ocorrer um convite ou edital de convocação específico ou se a simples publicação do requerimento da licença será o suficiente. Como as interpretações têm resultado em insegurança jurídica, em virtude das divergências entre os órgãos interessados, é preciso regulamentar tais procedimentos por meio de decreto.


[1] BRASIL. Cartilha de Licenciamento Ambiental. Brasília: Tribunal de Contas da União, Secretaria de Fiscalização de Obras e Patrimônio da União, 2004, p. 32.
[2] KRELL, Andreas J. Discricionariedade Administrativa e Proteção Ambiental: o controle dos conceitos jurídicos indeterminados e as competências dos órgãos ambientais: um estudo comparativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 112.
[3] MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 489.
[4] FINK, Daniel Roberto; MACEDO André Camargo Horta de. Roteiro para licenciamento ambiental e outras considerações. In: FINK, Daniel Roberto; ALONSO JÚNIOR, Hamilton; DAWALIBI, Marcelo (orgs). Aspectos jurídicos do licenciamento ambiental. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 20-22.
[5] MACHADO, Paulo Affonso Leme. Legislação florestal (Lei 12.651/2012) e competência e licenciamento ambiental (LC 140/2011). São Paulo: Malheiros: 2012, p. 66.
[6] BARROSO, Luís Roberto. Transporte ferroviário, Federação e competências em matéria ambiental. In: Temas de Direito Constitucional: tomo IV. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 432-433. No mesmo sentido: BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional: tomo III. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 128. 
[7] ADI 2.544/RS. relator: min. Sepúlveda Pertence. Publicado no Diário da Justiça em 17/11/2006.
[8] SILVA, Bruno Campos. O licenciamento ambiental único e outros aspectos relevantes da LC 140/2011. Questões Controvertidas: Direito Ambiental, Direitos Difusos e Coletivos e Direito do Consumidor. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 238.
[9] Reclamação 3.074/MG, relator ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 30-9-2005.
[10] ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 14. Ed. São Paulo: Atlas, 2012. P. 202-203.
[11] THOMÉ, Romeu. Manual de Direito Ambiental. 2. Ed. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 255-256.
[12] BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 849.
[13] MACHADO, Paulo Affonso Leme. Legislação florestal (Lei 12.651/2012) e competência e licenciamento ambiental (LC 140/2011). São Paulo: Malheiros: 2012, p. 81-82.
[14] BIM, Eduardo Fortunato. Licenciamento Ambiental. 2. ed. Lumen Juris: 2015, p. 89-90.
[15] KRELL, Andreas J. Licença ou autorização ambiental? Muita discussão em torno de um falso dilema. Revista de Direito Ambiental. São Paulo v. 49, 2008, p. 60.
[16] MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. 8. dd. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2013, p. 794. 

Autores

  • Brave

    é advogado e professor da UFPB, mestre em Ciências Jurídicas (UFPB), doutor em Recursos Naturais (UFCG) e em Direito da Cidade (Uerj). Autor do livro “Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos” (5ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015).

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