Interesse Público

Quando o reajuste salarial contraria o interesse público

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23 de junho de 2016, 8h05

Spacca
Muito se tem escrito no Direito brasileiro sobre interesse público. Discute-se se o interesse público tem a natureza de princípio informativo do Direito Administrativo. Eu mesma já escrevi sobre o assunto em diferentes oportunidades.

O tema volta a preocupar-me a propósito de alguns projetos que estão em tramitação no Congresso Nacional, em especial um que cria 14 mil cargos públicos e outro que concede reajuste salarial a determinadas categorias de servidores, gerando despesa pública que, para dizer o mínimo, é inteiramente inadequada e inaceitável para o momento extremamente difícil vivido por toda a nação brasileira.

É sabido que não se pode falar em um interesse público único, porque podem coexistir, inclusive conflitar, interesses públicos de diferentes setores da sociedade ou voltados a proteção de bens jurídicos de natureza diversa. O interesse na proteção do meio ambiente pode conflitar com a execução de determinadas obras públicas, que também sejam de interesse da sociedade. O interesse na redução de despesas públicas pode conflitar com o interesse na proteção à saúde, à educação, à segurança, à moradia. O interesse público de uma maioria pode conflitar com o interesse corporativo de uma minoria. E o interesse público pode conflitar com direitos individuais, como ocorre na desapropriação, no exercício do poder de polícia, no tombamento, em situações em que o interesse público acaba prevalecendo sobre o direito individual.

Quando o interesse público diz respeito a toda a nação, ele praticamente se confunde com a ideia de bem comum, considerada como objetivo e justificativa da própria existência do Estado.

Na tese sobre Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988, publicada pela Atlas em 1991, tomei por base a lição da autora Marie-Pauline Deswarte, para apontar as características do bem comum, dentre elas as que me permito ora transcrever:

1. Ele se fundamenta na natureza humana, sendo por isso mesmo universal: ele considera um conjunto de valores humanos feitos de direitos e deveres, que não podem privilegiar uns em detrimento de outros;

2. Ele deve ser adaptável segundo o progresso da época, dinâmico, voltado para o futuro, porque ele deve enraizar-se no concreto e oferecer aos indivíduos valores de ordem e de justiça, o que traz algumas consequências: a) o interesse geral não é apanágio do Estado, porque cada indivíduo e cada pessoa jurídica tem uma parcela de responsabilidade social; b) isso supõe que a sociedade não seja considerada como um sujeito à parte, transcendente, que fará cumprir a vontade do grupo; c) isso supõe também que se trate de um verdadeiro bem, de conteúdo moral, e não de simples interesse utilitário, pois este gera o egoísmo;

3. O bem comum é superior ao bem individual; a dignidade de todo homem quer que ele possa participar de um bem maior que o seu próprio bem: é isso que o torna um ser social.

Sinteticamente, pode-se dizer que o bem comum é universal, porque não pode privilegiar uns em detrimento de outros; é variável no tempo e no espaço; é superior ao bem individual; a participação do cidadão em um bem maior faz parte da dignidade do ser humano.

Talvez o preâmbulo de nossa Constituição sintetize bem a ideia de bem comum ao colocar como objetivo do Estado Democrático de Direito assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

Como a sociedade brasileira, diante da crise econômica, política e moral, a que assiste e vivencia, estupefata, espera que seja cumprido o objetivo maior que é o bem comum?

Sem ter procuração para falar em seu nome, fácil é deduzir que a sociedade espera que a moralidade seja restabelecida, pelo combate à corrupção que se instalou nos poderes públicos instituídos. Espera que a crise econômica seja superada pela garantia de emprego e salários compatíveis com a existência digna. Espera que seja garantida a igualdade de oportunidades, essencial para que se possa falar em sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Espera que sejam equilibradas as contas públicas, para que se supere a tão falada crise econômica, tão danosa para todos os setores da sociedade. Espera sejam assegurados direitos sociais mínimos, especialmente nas áreas da saúde, educação e segurança. Em resumo, o que a sociedade espera é que seja garantido o bem comum. E a sociedade sabe fazer valer os seus objetivos.

A autorização para que fosse iniciado o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff foi dada pelo Congresso Nacional. Porém, resultou de exigência da grande maioria da sociedade brasileira. No curso de sua história, a sociedade tem imposto a sua vontade em diferentes ocasiões. Basta lembrar a Marcha da Família com Deus pela Liberdade (de 1964), que levou à deposição do presidente João Goulart, bem como o movimento das Diretas Já, com os “caras pintadas” saindo às ruas para exigir eleições diretas para escolha do presidente da República. Nos dois movimentos, como o de agora, a favor do impeachment, a vontade popular se impôs.

Com a instauração do processo de impeachment, a esperança se instaurou no coração de cada brasileiro.

No entanto, o que se nota e causa profunda preocupação é o descaso, que ainda se sente em nossas instituições, pelo bem comum, traduzido pela ideia de interesse público, entendido como interesse maior da totalidade da nação brasileira. É imensa a distância entre o ideal almejado pela sociedade e o que se pratica na realidade. A atuação dos partidos políticos — já chamados de balcões de negócios — objetiva a tudo, menos o bem comum.

O momento de crise que o Brasil atravessa exige união de esforços, exige sacrifícios por parte da sociedade, exige bom senso, exige razoabilidade, exige honestidade de propósito por parte dos poderes instituídos.

Por isso mesmo, causa profundo desânimo e desesperança a aprovação, pela Câmara dos Deputados, de projetos de lei de reajuste salarial de algumas categorias de servidores públicos, dentre os quais o dos membros do Poder Judiciário. Trata-se de projetos que teriam resultado de acordos com a presidente Dilma Rousseff e que, segundo se alega, não causariam impacto maior sobre a crise orçamentária de todos conhecida. Tais projetos nos fazem indagar se estaria sendo respeitado o artigo 37, X, da Constituição, pelo qual a revisão anual deve ocorrer sempre na mesma data e sem distinção de índices.

As justificativas são inaceitáveis. Protege-se o interesse corporativo de algumas categorias de agentes públicos em detrimento do interesse maior de toda a sociedade brasileira. É um interesse público menor em confronto com o interesse público maior, confundido com a ideia de bem comum, como objetivo do próprio Estado.

É difícil convencer a sociedade de que um reajuste dessa ordem (cerca de R$ 58 bilhões, que têm sido divulgados) não causa impacto profundamente negativo sobre as contas públicas. E é inteiramente irrazoável que o Supremo Tribunal Federal lidere a pressão em favor do reajuste, quando se sabe que seus integrantes têm o maior nível de subsídio pago pela União — e que serve de teto e referência para toda a magistratura, federal e estadual, para o Ministério Público Federal e estadual, para a advocacia pública de todos os níveis de governo e para a Defensoria Pública (conforme artigo 37, XI, da Constituição).

Além de aprofundar o rombo financeiro que enfrenta a União, difícil imaginar como estados-membros vão arcar com o acréscimo de despesa, quando se empenham, junto ao governo federal, em obter acordo que torne viável o pagamento de suas dívidas e quando alguns têm encontrado dificuldade para pagar os próprios servidores.

A medida fere o princípio da moralidade, porque aumenta o sacrifício da maioria de cidadãos em benefício de uma minoria privilegiada. A medida afronta o princípio da razoabilidade, porque não é necessária, não é adequada, não é proporcional, quando examinada a situação dos beneficiados pelo reajuste diante do tamanho do rombo financeiro do Estado e diante da situação de dificuldade que vem sendo enfrentada por parcela considerável da sociedade brasileira. A medida fere o princípio do interesse público, porque privilegia uma pequena minoria em detrimento da grande maioria dos cidadãos brasileiros. A medida é, portanto, de constitucionalidade bastante duvidosa, porque afronta princípios elementares do Estado Democrático de Direito.

Se a procura de soluções para a crise econômica exige sacrifícios, é preciso que os mesmos sejam repartidos igualmente por toda a sociedade. Não se pode impor sacrifícios a uns enquanto outros são beneficiados.

E seria preciso verificar se a sua apresentação obedece ao disposto no artigo 169, parágrafo 1º, da Constituição, que exige, para a concessão de qualquer vantagem ou aumento de remuneração, a criação de cargos, empregos e funções, bem como a admissão ou contratação de pessoal: (I) prévia dotação orçamentária suficiente para atender às projeções de despesa de pessoal e aos acréscimos dela decorrentes; e (II) autorização específica na lei de diretrizes orçamentárias.

A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, em texto publicado no jornal O Estado de S. Paulo, de 26/11/2015, p. A8, assim afirmou, a propósito de denúncias contra Delcídio do Amaral, líder do governo no Senado:

“Houve um momento em que a maioria dos brasileiros acreditou que a esperança tinha vencido o medo. (No mensalão) Descobrimos que o cinismo tinha vencido a esperança. Agora o escárnio venceu o cinismo”.

A mesma frase, em sua parte final, pode ser repetida agora a respeito do reajuste salarial proposto para algumas categorias de agentes públicos: a medida constitui um escárnio perante os 12 milhões de desempregados; perante os que lutam para equilibrar as contas públicas; perante os trabalhadores que têm de ser convencidos de que a reforma previdenciária constitui sacrifício exigido como garantia de manutenção do sistema e de continuidade dos benefícios sociais que outorga; constitui escárnio contra os que têm esperança na reconquista da estabilidade econômica, indispensável para que todos, e não uma minoria de privilegiados, possam desfrutar de um mínimo de condições sociais que permitam falar em existência digna. Esse é o bem comum a ser conquistado pelo Estado. Esse é o interesse da totalidade da sociedade brasileira.

O que se espera é que, em algum momento da tramitação do projeto de reajuste, prevaleça o bom senso e a consciência de que a sua aprovação, no momento, é contrária ao interesse maior da sociedade brasileira.

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