Olhar Econômico

Em seu conjunto, as teorias desvendam a pessoa jurídica

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

17 de junho de 2016, 15h55

Spacca
João Grandino Rodas [Spacca]Tendo já sido examinadas a teoria da ficção e as teorias de superação ou teorias subjetivas[1], resta perpassar a teoria da realidade, para completar o conjunto teórico sobre a pessoa jurídica. Tais teorizações são importantes faróis para dissecar os meandros fáticos e legais e interpretá-los; com vistas a um entendimento mais profundo, e ao mesmo tempo mais cristalino desse fenômeno jurídico, cuja importância cresce com o passar do tempo.

Na sua essência, a teoria da realidade significa inexistir ficção na personalidade jurídica, quer para esconder patrimônio sem sujeito, quer simples indivíduos. A pessoa jurídica é, ao revés, dotada de personalidade real. Contudo, para deduzir tal conclusão, várias construções foram arquitetadas. Todas, entretanto, de algum modo, tomam como ponto de partida a teoria organicista de Platão, Hobbes e Montesquieu e a Genossenschaftstheorie de Besseler. A primeira acaba por considerar os Estados e as demais sociedades como um verdadeiro organismo, formado por órgãos, à maneira dos seres humanos. A última se utiliza da figura jurídica da Genossenschaft do direito germânico, desconhecida pelo direito romano. A teoria da realidade ganhou rapidamente espaço em detrimento da anterior teoria da ficção. Suas principais correntes são: a teoria organicista de Gierke, a teoria da vontade de Zitelmann e a teoria do direito subjetivo de Bernatzik e Michoud.

Gierke deixou-se influenciar pelo conceito germanístico de personalidade, mais relativo que o romano. Fiel também à tradição organicista, imaginou uma pessoa coletiva real — realer Gesammtperson —, que paira sobre o conjunto de pessoas que a constitui, sendo assim, ao mesmo tempo, um ser único e coletivo — teoria organicista. Ela é dotada de vontade e capacidade de agir próprias. A vontade plúrima e única consiste na vontade comum por todos declarada de maneira ordenada — Gesammtville. Já a capacidade de agir traduz-se na efetiva materialização da vontade geral em um ato — Gesammthandlung. A base estrutural de tudo é um corpo orgânico, cujos partícipes se amalgamaram mediante reunião corporativa. O todo coletivo, que é um organismo social, objetiva a consecução de fins comuns e pode surgir espontânea ou deliberadamente. A primeira modalidade se dá por intermédio de fatos histórico-sociais, enquanto a segunda, por meio de criação voluntária humana. De qualquer maneira, o reconhecimento estatal tem meramente valor declaratório, por não implicar criação.

A teoria da vontade de Zitelmann possui características menos sociológicas e mais metafísicas, tendo procurado realizar o princípio da unidade na pluralidade.

Há duas maneiras de junção de indivíduos. A simples união de A + B não cria nova individualidade. Entretanto, se intervier em tal reunião um vínculo de unidade orgânica, haverá a formação de C, ou seja, uma entidade real nova, dotada das mesmas qualidades dos componentes, inobstante dos mesmos distinta.

Em sufrágio de sua tese, aventa desde alusões à força unitária, que daria vida ao aglomerado de substâncias componentes do ser humano, até conceitos teológicos.

Para ele, não são as pessoas que se vinculam nas universitates personarum, mas sim as respectivas vontades. Sendo a vontade o pressuposto da personalidade jurídica e havendo na corporação um conjunto de vontades teleologicamente dirigidas para a finalidade comum, constitui-se a mesma em um todo orgânico, em uma unidade de querer com existência real e apta a ser sujeito de direito. No tocante às fundações haveria, ao invés, uma vontade objetivada pelo fundador que, para o atingimento de certas finalidades, cederia alguns direitos.

Bernatzik e Michoud, partindo de um entendimento próprio de direito subjetivo, acabaram por esboçar uma variação da doutrina de Gierke: a teoria do direito subjetivo.

Percebendo que a teoria da realidade da pessoa jurídica não havia dado ao conceito de direito subjetivo a devida importância, procuraram dar-lhe a necessária elaboração. Terminaram por alçar-lhe a posição ímpar, pois sua conceituação de pessoa jurídica somente é inteligível se primeiramente se aclarar tal conceito. Para eles pessoa ou pessoa jurídica é o ser ou coletividade humana, à qual a ordem jurídica reconhece a capacidade de ter direitos subjetivos.

Um querer, para obter o reconhecimento da ordem jurídica, deve visar a um objetivo. Dessa forma, toda pessoa, mesmo a jurídica, deve ter uma finalidade e ao mesmo tempo uma vontade que possa realizá-la.

A existência de pessoa jurídica subordina-se à presença de duas condições, que ao mesmo tempo são elementos do direito subjetivo: a) um interesse coletivo e permanente, e b) a possibilidade de o grupo materializar uma vontade coletiva que o possa representar. O reconhecimento estatal é tão-somente declaratório. Assim, titular de direito é um ser individual ou coletivo, cujo interesse é garantido juridicamente, pelo poder de representação e defesa, concedido a uma vontade.

Embora não estejam de acordo os seguidores da teoria em tela, relativamente à natureza da realidade — indo o largo espectro desta, da realidade biológica até a jurídica —, conseguiu tal teoria que fosse reconhecida à pessoa jurídica uma subjetividade própria, sem obrigatória referência ao ser humano. Os críticos da teoria da realidade iniciam por desconsiderar seu próprio âmago, ou seja, por negar que as formas sociais possuem existência autônoma — em si e por si —, pois isso seria um exercício metafísico que ultrapassaria a realidade. Por outro lado, não creditam vontade, fenômeno humano por excelência, a um ser coletivo. Neste, a volição continuaria a ser a dos associados; seria manifestação de uma coletividade e não de um ser místico. Nesse mesmo diapasão, não procede que o direito leve em consideração o homem, unicamente por ser capaz de querer. Mais do que um ser dotado de vontade, o direito vê o ser humano na sua inteireza. O reconhecimento legal não tem valor meramente declarativo, pois faz de um conjunto de pessoas singulares um novo sujeito de direito.

No que tange à cristalização da vontade do instituidor da fundação, que foi tida por Zitelmann como suficiente para estimulá-la permanentemente, assacou-se não ser apta à subjetividade jurídica a vontade destacada de um ser humano.

Quanto a Bernatzik e Michoud, fundamentalmente, é dito que deixaram de lado em sua concepção de direito o poder jurídico, privilegiando a vontade relacionada ao direito em seu momento dinâmico,

As teorias ditas clássicas, embora variegadas, coincidiam em um ponto: buscavam o substrato sociológico, a essência ontológica do que em direito se denomina pessoa jurídica. Já as doutrinas contemporâneas, cansadas do dogmatismo das teorias clássicas, veem a questão sob novo prisma, mormente porque os instrumentos jurídicos tradicionais não são aptos a enfrentar a conformação atual da pessoa jurídica. São características das doutrinas contemporâneas: o abandono da ultrapassada concepção unitária e absoluta da personalidade, a não-aceitação de construções apriorísticas e gerais, e a consideração da personalidade jurídica como meio técnico-jurídico de se alcançar certos objetivos.

Consoante Staudinger-Coing, pessoa jurídica nada mais é que uma expressão da técnica jurídica utilizada para indicar que um ente organizado e supra-individual foi tido como sujeito de direito pelo ordenamento jurídico.

Para Serick e Wolff, o conceito de pessoa jurídica carrega em si uma regra geral de reenvio, que faz com que as regras jurídicas criadas para serem aplicadas às pessoas físicas o possam ser também à jurídica. Consoante o segundo autor, a pessoa jurídica é um sujeito ao qual a técnica de direito concede capacidade jurídica — Rechtstechnisches Rechtsfähiges Zurechnungssubjekt.

Galgano testemunha que uma pessoa jurídica deixou de ser um ente, relativamente intransponível, colocado pelo direito entre os componentes da mesma e terceiros, para apresentar-se como útil instrumento de linguagem jurídica, que subsume uma complexa disciplina normativa de relações entre pessoas físicas. A pessoa jurídica é um disciplinamento especial, um conjunto de privilégios, previsto legalmente para certos grupos, que preenchem os respectivos pressupostos. Na presença, entretanto, de utilização abusiva, as normas especiais cedem passo à aplicação do direito comum.

Majo e Prestipino têm a pessoa jurídica como técnica de atribuição de vantagens, isto é, procedimento técnico que se materializa na concessão de certas vantagens a grupos de indivíduos e/ou complexos de bens, desde que se revistam dos requisitos exigidos pelo ordenamento, para o reconhecimento da personalidade jurídica. Quando componentes de um grupo social buscam uma finalidade digna de tutela, os poderes públicos outorgam tratamento favorecido. Essa atribuição de vantagens em que se resume o conceito de pessoa jurídica é, entretanto, relativa. Por força de disposição legal ou interpretação judicial, normalmente, é possível deixar de lado a forma-pessoa para se chegar aos indivíduos e bens subjacentes.

A progressiva conscientização da relatividade e historicidade da pessoa jurídica veio pari passu com a diminuição do interesse dos estudiosos do direito no que tange à conceituação à maneira tradicional da pessoa jurídica[2].

Cada uma das teorias clássicas, que acabamos de evocar, não consegue, de per si, explicar todas as miríades fáticas e jurídicas, que se sucedem no evolver da utilização da pessoa jurídica, nos quatro cantos do mundo. Contudo, dentre elas, haverá uma teoria apta a esclarecer aspectos obscuros; tanto na avaliação de questões de fato, no momento da interpretação de leis em vigor; quanto no momento de elaborar nova legislação.


1 Rodas, João Grandino, As teorias ajudam a interpretar as leis sobre pessoas jurídicas, Revista Eletrônica Conjur, de 2 de junho de 2016.

2 Rodas, João Grandino, Sociedade Comercial e Estado, Editora Saraiva, São Paulo, 1995, p.23/27.

Autores

  • é professor titular da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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