Opinião

A EBC como garantia institucional de direitos fundamentais

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16 de junho de 2016, 6h03

A controvérsia instaurada em relação à Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) com a exoneração extemporânea de seu diretor-presidente, e a consequente impetração de mandado de segurança junto ao Supremo Tribunal Federal, transformou-se numa boa oportunidade para o debate público de um tema central para a democracia brasileira passados quase 28 anos da promulgação da Constituição de 1988.

De fato, a efetivação plena das normas constitucionais relacionadas à comunicação social ainda é um desafio considerável, como por exemplo, no cumprimento das normas que vedam o monopólio ou oligopólio no setor (§ 5º do artigo 220) ou das que vedam a propriedade de empresas de comunicação por parlamentares (artigo 54), além do desrespeito sistemático e contundente dos princípios éticos e morais previstos para a produção e programação das emissoras concedidas (artigo 221). Agora, o caso EBC, além de demonstrar um preocupante desconhecimento generalizado no assunto, revela o perigo real de retrocesso do que já alcançado em termos de cumprimento da previsão constitucional.

Daí que a decisão de mérito que o Supremo Tribunal Federal tomará no julgamento do referido MS será histórica e crucial para o destino da comunicação social em nosso país. Será, sem dúvida, um dos mais importantes julgamentos do ano, pois definirá o entendimento sobre questões centrais nessa área cada mais sensível para as democracias contemporâneas, inclusive no que diz respeito aos direitos fundamentais relacionados.

Já se pode antever essa gravidade na acertada e bem embasada decisão liminar do ministro Dias Toffoli no mandado de segurança referido, que, ao suspender o ato impugnado de exoneração imotivada do diretor-presidente da EBC e determinar seu retorno ao cargo, aplicou fundamento adotado em precedente (ADI 1.949/RS) relacionado às agências reguladoras, no qual se fixara o entendimento de que não se admite, em relação a essas autarquias especiais — destinadas à regulação e à fiscalização de serviços públicos —, a exoneração discricionária dos seus conselheiros, dada a necessária autonomia de que se revestem.

Sustentou o ministro que tal fundamento aplicado às agências reguladoras não lhes é exclusivo, pois a lei pode conferir, como no caso da EBC o fez, características próprias e específicas às entidades da administração indireta que cria, consideradas as razões da sua criação e os objetivos a ela conferidas. Trata-se de examinar o regime jurídico que lhe foi outorgado.

Com efeito, se há o mesmo fundamento — necessidade de autonomia do órgão perante o poder executivo —, deve-se aplicar o mesmo direito — impedimento da exoneração discricionária. É a correta aplicação da regra de interpretação ubi eadem ratio, ibi eadem jus — onde se encontra a mesma razão, deve-se aplicar o mesmo direito.

É por tal motivo — autonomia perante o governo — que a Lei da EBC (Lei 11.652/08) prevê o mandato de quatro anos para o diretor-presidente (§2º do artigo 19), além de outras regras e princípios de respeito à pluralidade e independência programática, como a “VI – não discriminação religiosa, político partidária, filosófica, étnica, de gênero ou de opção sexual” (artigo 2º); “VIII – autonomia em relação ao Governo Federal para definir produção, programação e distribuição de conteúdo no sistema público de radiodifusão” (artigo 2º); e a “IX – participação da sociedade civil no controle da aplicação dos princípios do sistema público de radiodifusão, respeitando-se a pluralidade da sociedade brasileira” (artigo 2º).

Cabe ressaltar que o mandato conferido por lei ao corpo dirigente é um dos corolários da autonomia e da independência necessárias de uma empresa pública de comunicação. Estudos internacionais sustentam tal posição no tema, inclusive da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), órgão das Nações Unidas que tem entre seus objetivos trabalhar para “a livre circulação de ideias através da palavra e da imagem”.

Em estudo encomendado e publicado pela Unesco intitulado Serviço Público de Radiodifusão: um Estudo de Direito Comparado, de 2011, o pesquisador canadense do tema, Toby Mendel, analisou e comparou sistemas públicos de comunicação pelo mundo. Na questão específica da autonomia cabe citá-lo:

“A necessidade de proteger as emissoras de serviço público contra interferências políticas e comerciais já é quase universalmente reconhecida. A necessidade dessa independência já está bem estabelecida como uma questão de direito internacional e comparado (veja abaixo). É em grande medida óbvio que partido político, governo ou poder do aparato estatal não deve exercer influência sobre emissora de serviço público com o objetivo de promover seus próprios interesses, uma vez que essa emissora é financiada com recursos públicos. É igualmente óbvio que isso impedirá a capacidade de as emissoras públicas cumprirem suas programações, uma vez que suas energias e recursos seriam desviados, a fim de atenderem às necessidades de seus patronos políticos.

(…)

O esforço de garantir a independência, na prática, deve estar enraizado nas estruturas institucionais de cada país, levando em consideração o ambiente político e cultural. Porém, alguns princípios gerais podem ser estabelecidos. A Recomendação (1996)10 do Conselho da Europa é a mais detalhada declaração de tais princípios. Ela estipula que o arcabouço jurídico que rege as emissoras de serviço público deve garantir a independência editorial e a autonomia institucional, especialmente em relação às grades de programação, aos programas, às notícias e a outras questões, incluindo as finanças internas e a organização (Princípio I).

A Recomendação apela aos “órgãos de supervisão” (órgãos diretores), para que sejam indicados de maneira a evitar que eles corram “o risco de interferências políticas ou de outra natureza”, para que sejam “abertos e pluralistas” e para que eles “representem coletivamente os interesses da sociedade em geral”. Ela também clama por proteção do seu mandato (ou seja, a proteção contra demissões arbitrárias), por regras para lidar com conflitos de interesses, por regras claramente definidas sobre remuneração, e proíbe que os membros recebam instruções ou mandatos de qualquer pessoa que não seja quem as indicou, exceto em casos excepcionais determinados pela lei (Princípio III).” (grifo nosso)[1]

Do mesmo modo, torna-se relevante que o STF, no julgamento de mérito do MS, avance para a justificativa da autonomia de tais órgãos, trate do próprio mérito da matéria ao cuidar da importância da existência desses órgãos de comunicação pública no sistema brasileiro e discorra sobre o papel que desempenham na efetivação da complementaridade exigida pela Constituição, condição necessária para a concretização do direito fundamental à informação (inciso XIV do artigo 5º da CF) e da realização, na esfera da comunicação social, do princípio fundamental do pluralismo político (inciso V do artigo 1º da CF).

Com efeito, é preciso advertir que a Carta da República de 1988, depois de dispor que “Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio” (§ 5º do artigo 220), consagra um princípio central na estruturação do setor, de observância obrigatória na outorga e na renovação das concessões de rádio e TV, que é o da “complementaridade dos sistemas privado, público e estatal” (artigo 223).

Esse arranjo organizacional da Comunicação Social que prevê a complementaridade tem por objetivo ser um sistema adequado e capacitado a garantir o desenvolvimento pleno e saudável da liberdade de expressão e de pensamento e, do mesmo modo, e com a mesma ênfase, da livre e ampla produção, circulação e acesso da informação. Ou seja, pretende que a informação, observados os parâmetros e limites constitucionais e legais, como bem essencial da vida social, em todas as suas dimensões e de forma plural, possa ser produzida, transmitida e recebida sem obstáculos e constrangimentos, e sem mediação de interesses privados ou governamentais, que podem distorcê-la, deturpá-la, restringi-la ou mesmo impedi-la de circular livremente.

Em suma, pode-se dizer que a ordenação constitucional da Comunicação Social, da forma como estabelecida, constitui-se em pilar central da liberdade de expressão e de pensamento, do direito de expressão e do direito à informação, todos direitos constitucionais fundamentais — Artigo 5º, IX e XIV.

E para tanto, para que seja possível que esse sistema se revista da almejada “complementaridade”, é que ao lado das hoje existentes redes de comunicação estatal (TVs/rádios Justiça, Senado, Câmara e NBR) e privada (Globo, SBT, Bandeirantes, Record, além de inúmeras outras emissoras de TV e rádio) exista e funcione adequadamente uma rede de comunicação pública, assim entendida como aquela que atua com autonomia perante o governo e em relação aos interesses privados, comerciais. Exemplos no mundo não faltam: BBC na Inglaterra, RAI na Itália, TV France na França.

Esse modelo, os exemplos mundiais confirmam, decorre de experiências já consolidadas e inclusive indicadas pelos organismos internacionais, como vimos. A propósito, como já se manifestara em texto explicativo sobre o sistema público a Unesco, em 2001, ressaltando a importância da existência de tal modelo de comunicação. O documento, do qual transcrevemos trecho relevante, intitula-se Public Broadcasting: Why? How?:

“Três modelos principais foram desenvolvidos, refletindo as sociedades que os produziram, e na maioria dos casos, ainda determinam a evolução da radiodifusão: o modelo comercial, o modelo de Estado e o modelo de serviço público de radiodifusão, o último nascido a partir das fraquezas dos dois primeiros modelos e das preocupações que eles geraram, bem como da visão e dos sonhos que alguns possuíam para os novos meios de comunicação do dia.

(…)

O sistema público, ao mesmo tempo em que decorre da visão que alguns tinham para o rádio, também foi baseado em desconfiança: desconfiança da capacidade dos mecanismos de mercado para cumprir determinados objetivos, e desconfiança da capacidade do Estado para cumprir os mesmos objetivos, geralmente agrupados sob grandes expectativas que ainda hoje se aplicam ao sistema público de radiodifusão, quais sejam, as de informar, educar e entreter. Esta visão do papel e da importância do sistema público requer uma entidade pública, a serviço dos cidadãos, da cultura e da democracia.

Alguns países rejeitaram a noção de que o interesse público, na radiodifusão, poderia ser servido pelos interesses de empresários privados, com interesse principal no lucro. Ao mesmo tempo, porém, as pessoas suspeitavam do Estado nesses países. Por causa do potencial social, cultural e política da radiodifusão, considerou-se que a participação direta do Estado em um campo relacionado de uma maneira geral ao pensamento e expressão não era desejável. Esta é geralmente a distinção menos óbvia entre o sistema público e estatal de radiodifusão quando os diferentes modelos são comparados.

Uma noção básica que reflete essa diferença é bem conhecida na Grã-Bretanha, nomeadamente a relação de “concorrência” entre o Estado e a emissora pública de radiodifusão. Em vez de colocar a radiodifusão diretamente sob a autoridade do Estado, foi decidido confiá-la a uma entidade que iria agir no interesse público e gozar de independência suficiente para impedir a interferência política ou burocrática.

O sistema público de radiodifusão foi então baseado na ideia de que nem o mercado nem o Estado poderiam satisfazer adequadamente os objetivos de serviço público da radiodifusão e atuar no interesse público; na verdade, sentia-se que o interesse público não coincide nem com interesses particulares, nem com os interesses dos poderes políticos.”[2]

É nesse contexto e nessa experiência reconhecida internacionalmente que se insere o esforço nacional de criação e preservação da Empresa Brasileira de Comunicação, a EBC, constituída com o propósito de desempenhar, em nosso país, o papel do sistema público de comunicação, fundamental para a democracia e para os direitos fundamentais.

Protegida pela lei em aspectos como mandato de seus dirigentes, presença de controle social, autonomia programática, entre outros, atua a EBC como garantidora da concretização de direitos fundamentais, revestindo-se, desse modo, de um manto jurídico protetor de matiz constitucional, que a torna, ela própria, uma garantia institucional (institutionnelle Garantien)[3] de natureza pública, instituída pelo poder público para sustentar e possibilitar o exercício de direitos fundamentais, uma verdadeira tábua de salvação de direitos subjetivos, um órgão imantado de constitucionalidade em face do papel que desempenha.

Ainda incipiente, de criação recente, a EBC não se encontra em seu estágio ideal, como uma BBC da Inglaterra e outras no mundo, mas seus erros passados e presentes não podem justificar sua destruição como empresa pública, e não estatal, de comunicação. Assim, ações governamentais que possam atentar contra os pressupostos que regem a sua natureza jurídica autônoma e independente, como o caso do mandato dos dirigentes ou interferências na programação, ou que busquem restringir sua capacidade de atuação, como na restrição orçamentária, violam a lei de sua criação e a própria Constituição.


1 Toby Mendel é Diretor Executivo do Center for Law and Democracy, uma ONG internacional de direitos humanos com sede no Canadá. O documento da UNESCO, pode ser acessado em: http://unesdoc.unesco.org/images/0021/002147/214765por.pdf

As parte citadas encontram-se nas fls. 7 e 16.

2 UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Public Broadcasting: Why? How? UNESCO, May 2001, p. 9-10. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001240/124058eo.pdf

Acesso em: 14.06.2016.

Utilizei-me, no ponto, da tradução livre efetuada em Ação Civil Pública ajuizada pelo Fórum Nacional Pela Democratização Da Comunicação (FNDC) em face da demissão arbitrária.

3 A teoria das garantias institucionais é originária do gênio do constitucionalista alemão do século passado, Carl Schmitt, em formulação que vem sendo adotada por vários desde então. Conferir, entre outros, J.J Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 1998, p. 363/364; Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, 2012, p. 57/58. E por todos, com maiores detalhes, Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 2002, p. 491/500 

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