Direito Civil Atual

Traduttore, traditore: a crença ingênua do TRF-3 no Google Tradutor

Autor

  • Guilherme Brenner Lucchesi

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) doutor em Direito pela UFPR e master of laws pela Cornell Law School presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico secretário-geral do Instituto dos Advogados do Paraná e sócio-fundador do escritório Lucchesi Advocacia.

13 de junho de 2016, 8h05

Recente decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região reconheceu como válida a utilização da ferramenta Google Tradutor para a tradução de decisão judicial brasileira para idioma estrangeiro. O julgamento, proferido em sede de apelação criminal (Autos 0006151-21.2009.4.03.6119), discutia condenação de cidadão etíope preso em flagrante delito pelo envolvimento no envio ilegal de imigrantes africanos aos Estados Unidos, mediante a prática dos crimes de associação criminosa (artigo 288, CP), corrupção ativa (artigo 333, CP), falsificação de documento público (artigo 297, CP) e uso de documento falso (artigo 304, CP). Após condenação pelo juízo federal de primeiro grau, foi determinada a tradução da sentença para o idioma do réu, para que pudesse ter acesso a seu teor, diante da regra do Código de Processo Penal que determina a intimação pessoal do réu preso (artigo 392, I, CPP). No entanto, em vez de buscar “a obtenção de tradutor intérprete pelas vias mais convencionais”, amparando-se em determinação da Corregedoria Regional da Justiça Federal da 3ª Região (Expediente Administrativo 2011.01.0218 COGE), o juízo determinou que a tradução fosse feita pela ferramenta Google Tradutor, disponibilizada gratuitamente na internet.

Alegando ofensa às garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, o réu etíope, em seu recurso, sustentou a nulidade da tradução feita pelo Google Tradutor. Sua alegação foi rejeitada de plano pelo tribunal, chamando atenção a argumentação utilizada. A fundamentação do voto restringiu-se a duas frases: a primeira, ressaltando o amparo da decisão recorrida na determinação da Corregedoria, a qual “determinou que a Secretaria providenciasse a tradução da sentença para o idioma do réu […] através do ‘Google Tradutor’”; a segunda, argumentando que “eventual deficiência na tradução não causou prejuízo ao réu, na medida em que a Defensoria Pública da União apresentou razões de apelação pormenorizadas e abrangentes”.

Deixando de lado a análise acerca da observância das garantias constitucionais, o que mereceria estudo próprio, é curioso observar que em momento algum o tribunal cogitou questionar a validade do expediente normativo emitido pela Corregedoria. Segundo o documento, o uso da ferramenta Google Tradutor seria “uma boa prática processual, uma medida idônea, célere e com resultados satisfatórios”, por poupar o Judiciário de aguardar longos períodos de tempo pela localização de profissional habilitado a fazer a tradução.

A afirmação feita pela Corregedoria é problemática, pois aparenta favorecer a celeridade das traduções que a fidelidade de seu produto. Qualquer usuário da ferramenta sem dúvida reconhece a velocidade quase instantânea das traduções feitas, em especial quando o idioma de origem ou destino da tradução é o inglês. Embora a agilidade da ferramenta seja seu aspecto mais positivo, os resultados nem sempre são “satisfatórios”, como entendeu a Corregedoria: tratando-se as decisões judiciais — tais quais as normas jurídicas — de texto, as questões legais são invariavelmente atravessadas por questões linguísticas, formando complexo amálgama indissociável entre linguagem e Direito.

É certo que a ferramenta de tradução vem recebendo melhorias desde o seu lançamento, no ano de 2007, sendo adaptável e aprendendo com seus próprios erros apontados pelos usuários. No entanto, trata-se de processo levado a cabo por sistema automático de inteligência artificial, desprovido das nuances próprias da linguagem escrita. São comuns na internet piadas feitas com traduções incompreensíveis geradas a partir do Google Tradutor, revelando sua incapacidade de traduzir fielmente algumas frases ou expressões. Se o problema existe na tradução da linguagem comum, certamente serão agravados na tradução de textos redigidos em linguagem técnica, como é o caso de textos jurídicos.

Embora possam ser traçadas matrizes comuns aos sistemas jurídicos nacionais, cada ordenamento é um sistema único, dotado de suas peculiaridades e linguagem específica. Mesmo entre países que compartilham idiomas, nem sempre há correlação exata entre os termos e conceitos empregados. Ao se inserir nesse contexto um grau adicional de complexidade — a diversidade linguística —, a compreensão de um sistema por agentes externos se torna ainda mais difícil.

Em vista da necessidade de buscar um estudo dos diferentes sistemas jurídicos, visando não apenas o aprofundamento do conhecimento, como também a melhoria dos sistemas a partir da introdução de elementos externos, desenvolveu-se a disciplina do Direito Comparado, cuja metodologia identifica importante fonte de desenvolvimento jurídico nos chamados “transplantes jurídicos”, metáfora que, segundo Alan Watson, identifica o processo de transposição orgânica de dispositivos legais de um ordenamento jurídico para o outro[1]. Assim como em um transplante de órgãos, normas jurídicas não podem ser carregadas de um contexto legal para o outro sem os devidos cuidados em manter o destinatário intacto, pois é necessária cuidadosa implantação e cultivo em seu novo hábitat.

A esse método foram feitas importantes críticas, sobretudo por Gunther Teubner[2], que apontam à necessidade de adaptação do dispositivo legal ao novo ordenamento, de modo que este frequentemente imporá àquele novas funções, muitas vezes não condizentes com aquelas desempenhadas em sua origem. Muitas vezes, o “transplante” pode produzir “irritações” — isto é, desencadeia uma série de efeitos colaterais inesperados pelo jurista, que perturba a sintonia interna do sistema, que não se adapta à inserção do elemento alienígena.

Tais críticas não levam necessariamente à conclusão de que é impossível a importação bem-sucedida de normas jurídicas estrangeiras ao ordenamento jurídico nacional. Todavia, é importante que nesse processo sejam observadas as transformações que podem sofrer o dispositivo ao ser realocado de um sistema para o outro, mantendo o foco particularmente sobre o texto a ser traduzido. É nesse sentido que surge a metáfora da “tradução jurídica”, proposta por Máximo Langer[3], preocupada com aspectos sintáticos, semânticos e discursivos da norma em sua origem e seu destino. Por meio de adaptações textuais, é possível capturar as transformações a que é submetida uma ideia ou conceito nas suas relações com o sistema jurídico destinatário após a sua tradução original. Existem várias abordagens à forma de se efetuar a tradução de textos e ideias, podendo-se pautar pela literalidade estrita, pela composição de texto autônomo, mas fiel às ideias originais, ou pela variação material do texto original, de modo a reduzir a fidelidade, a fim de compor um texto sólido no idioma para o qual se traduz. Dessa forma, a depender do método empregado, é possível trazer ao ordenamento jurídico nacional conceitos e ideias de todo impertinentes ou inaplicáveis, por desejar ser fiel à origem, ou, ao contrário, deturpar institutos jurídicos na (vã) tentativa de os inserir em seu novo contexto legal.

Entende-se, assim, não ser possível a adoção indiscriminada de institutos jurídicos estrangeiros, pois é necessário observar as vicissitudes dos ordenamentos jurídicos originário e destinatário, a fim de perquirir a compatibilidade da norma ou conceito “transplantado(a)” ou “traduzido(a)” com o sistema em que se pretende inseri-lo(a).

Vê-se, assim, importante relevo dado à linguagem dos ordenamentos jurídicos, e uma boa compreensão de suas peculiaridades internas para possibilitar uma adequada tradução, de modo a evitar a tradução de “falsos cognatos” jurídicos: institutos cuja denominação é semelhante, mas cujo conteúdo é diverso nos sistemas jurídicos em que se inserem.

Dessa forma, não é possível a tradução descuidada de palavras ou expressões de um idioma para o outro. A crença ingênua do tribunal na tecnologia, além de absoluto desprestígio para com os estudiosos do Direito Comparado, periga a produção de verdadeiros nonsenses. Além do perigo se de produzir um texto incompreensível — o que se agrava ao traduzir para um idioma desconhecido, como o amárico, no caso do condenado etíope —, há, ainda, o risco de se produzir algo cujo teor seja diferente ou mesmo o oposto do texto original, derrotando por completo o objetivo de se disponibilizar uma tradução do documento.

Ainda que a decisão do Tribunal Regional Federal tenha aludido à compreensão pela defesa do acusado, não era a compreensão de seu patrono que a tradução objetivava, mas a da própria parte. A tradução pela ferramenta Google Tradutor, nesse sentido, cumpriria mera formalidade, de fidelidade e conteúdo duvidosos.

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Inauguro a minha participação na coluna Direito Civil Atual, dirigida pela Rede de Direito Civil Contemporâneo, sob a coordenação dos ministros Luís Felipe Salomão, Antonio Carlos Ferreira e Humberto Martins, ao lado dos professores Ignacio Poveda, Otavio Luiz Rodrigues Junior, José Antônio Peres Gediel, Rodrigo Xavier Leonardo e Rafael Peteffi da Silva, a quem agradeço a oportunidade.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).


[1] WATSON, Alan. Legal transplants: An approach to comparative law. 2. ed. Athens: University of Georgia, 1993.
[2] TEUBNER, Gunther. Legal irritants: Good faith in British law or how unifying law ends up in new divergences. Modern Law Review, London, v. 61, 1998, p. 12.
[3] LANGER, Máximo. From legal transplants to legal translations: The globalization of plea bargaining and the Americanization thesis in criminal procedure. Harvard International Law Journal. Cambridge, v. 45, n. 1, inverno de 2004, p. 30-31.

Autores

  • Brave

    é professor substituto da Faculdade de Direito da UFPR e doutorando em Direito pela mesma universidade. Mestre em Direito pela Cornell Law School (EUA), é membro do New York State Bar e pesquisador do Núcleo de Pesquisas de Direito Privado Comparado da UFPR.

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