Processo Familiar

Discurso da igualdade de gênero diminuiu injustiças também nas relações jurídicas

Autor

  • Rodrigo da Cunha Pereira

    é advogado presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) doutor (UFPR) e mestre (UFMG) em Direito Civil e autor de vários artigos e livros em Direito de Família e psicanálise.

12 de junho de 2016, 8h00

Que diferença a mulher e o homem tem? Muitas. Como já cantou Gonzagão, em sua música, magnificamente interpretada por Gal Costa e o próprio Gonzagão em um disco de 1989, embora tenha brincado que “tem pouquinha diferença”. Fato é que as tais diferenças continuam equacionando a igualização de direitos entre o gênero masculino e o feminino. O velho bordão feminista “viva a diferença, com direitos iguais” continua atual e nos instigando a continuar pensando muito mais na diferença do que na igualdade de direitos. A igualdade é fácil. Ela já está posta na lei. O difícil mesmo é lidar com as diferenças, pois são biológicas, físicas e químicas. Não é sem razão que o tempo para aposentadoria da mulher é menor que a do homem, que a lei Maria da Penha é aplicável apenas quando a vítima é mulher ou transexual feminino.

O discurso da igualdade é importante e já ajudou a diminuir injustiças nas relações jurídicas e sociais, como a pensão alimentícia compensatória. Porém, tão importante quanto a igualdade é compreendermos as diferenças. Vê-se isso claramente no momento em que o Brasil anda atônito com o estupro coletivo praticado contra uma adolescente de 16 anos. Mulheres jamais estuprariam homens, até mesmo por razões anatômicas e biológicas. No entanto, a cultura do estupro, que está arraigada no mundo masculino, não pode ser justificada pela provocação das mulheres. É o mesmo que justificar o assalto porque o meu carro de luxo é que provoca o assaltante. A provocação não justifica e nem pode absolver o criminoso.

Freud dizia que há um abismo entre homens e mulheres. E a diferença fundamental está muito além da anatomia. Até porque anatomia é o destino, dizia ele. Vejo isso em minha Clínica do Direito. Por exemplo: ainda povoa o imaginário feminino que o pai, ou outro homem (marido ou companheiro), irá sustentá-las. Felizmente, e para o próprio bem delas, os tribunais têm se recusado cada vez mais a conceder pensão alimentícia para mulheres jovens, saudáveis e com capacidade laborativa. Por outro lado, e embora seja recente o número de mulheres que sustentam seus maridos ou companheiros, é raríssimo pedirem pensão às ex-companheiras. O machismo fala mais alto.

Uma das diferenças significativas, e confirmando o abismo entre o universo masculino e o feminino, está nas modernas e atuais relações amorosas. Uma das tormentas que os tribunais brasileiros têm enfrentado é decidir se determinada relação é namoro ou união estável. De um namoro não decorre nenhuma consequência jurídica. Porém, se caracterizada a união estável, pode haver partilha de bens adquiridos na constância da relação e até mesmo pensão alimentícia. Os elementos objetivos que distinguiam uma relação da outra já não existe mais: não é necessário cinco anos para caracterizar a união estável; não é preciso mais morar junto ou ter filhos; e relações sexuais são um ingrediente saudável e desejável tanto no namoro quanto na união estável. Diante desses confusos, e difusos, elementos caracterizadores de um núcleo familiar, não se pode nem mais namorar em paz. E eis aí uma diferença fundamental: os homens sempre acham que estão só namorando. As mulheres, porém, pensam que aquela mesma relação é além de um namoro. No final da relação, o amor, quem diria, foi parar na Justiça, para que um terceiro (juiz) venha dizer se ali já havia se constituído um núcleo familiar, ou se se tratava apenas de um namoro e que, portanto, não há consequências jurídicas e patrimoniais. Tudo por conta dessa diferença do olhar masculino e feminino.

Foi a resignação histórica das mulheres que proporcionava a duração eterna dos casamentos. Tinham que aguentar a qualquer custo, até que se começou a respeitar e a considerar que as mulheres, assim como os homens, são sujeitos de desejo e de direitos. Daí o movimento feminista, que influenciou a quebra do princípio da dissolubilidade do casamento, permitindo que se instalasse o divórcio no Brasil (1977). Aliás, o movimento feminista foi a grande revolução do século XX e interferiu drasticamente nos ordenamentos jurídicos com a proclamação da igualdade formal entre homens e mulheres. Na sequência dessa revolução feminista, surgiram várias outras leis para ajudar a consolidar o principio da igualdade de direitos dos gêneros masculino e feminino.

Todas as atuais leis que ajudaram a fazer o Direito de Família evoluir são consequências da proclamação da igualdade de direitos. Até mesmo a Lei da Guarda Compartilhada, embora seja fruto da luta dos pais que eram impedidos de conviver com seus filhos igualitariamente, vem na esteira da evolução do movimento feminista. Com a guarda compartilhada, as mulheres podem dividir responsabilidade e tempo com os pais de seus filhos. Obviamente terão mais tempo para si mesmas.

Cerca de 80% da iniciativa dos divórcios e dissoluções de uniões estáveis é por parte da mulher, mesmo que tenha sido o homem a estabelecer uma relação extraconjugal. Por mais que as mulheres tenham aumentado sua taxa de infidelidade, com a conquista de um lugar de sujeito de direitos e de desejo, ainda é um índice muito pequeno se comparado ao dos homens. Elas estão muito mais interessadas em uma relação com mais qualidade afetiva: eis aí uma outra diferença entre o mundo masculino e o feminino. Os homens, com raciocínio muito mais no campo da objetividade, estão mais preocupados e ligados a aspectos patrimoniais, enquanto as mulheres continuam sonhando com o amor perfeito, mesmo sabendo que é perfeitamente impossível.

No espectro das diferenças entre os gêneros, que se expressa e se constrói socialmente, e aí se cria hierarquias e segrega pessoas, está a forma como cada um usa o seu corpo. Já deveríamos ter evoluído o bastante para entender que a mulher tem todo o direito de se valer de sua beleza física, de se mostrar como objeto, se assim o desejar, sem que isso a torne inferior ou justifique ser estuprada. No entanto, isso não funciona da mesma forma para os homens. Por mais que ele mostre ou aparente seus atrativos físicos, essa não é uma arma muito poderosa. Em outras palavras, o corpo como capital também funciona de formas muito diferente para o mundo masculino e o feminino.

As mulheres, por mais que usem seus atrativos físicos para seduzir, sabem mais sobre o amor. Nesse aspecto, temos que aprender com elas. Talvez assim as diferenças deixem de ser tão abissais, e possamos melhorar a equação igualdade e diferença de direitos entre homens e mulheres e nos aproximemos um pouco mais da quase impossível resposta à pergunta feita por Freud: o que querem as mulheres?

Autores

  • é advogado e presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), mestre (UFMG) e doutor (UFPR) em Direito Civil e autor de livros sobre Direito de Família e Psicanálise.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!