Presunção de culpa

"Prisão antes do trânsito em julgado da condenação gera equilíbrio social"

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5 de junho de 2016, 8h52

Spacca
Na opinião do carioca Antonio Saldanha, mais novo ministro do Superior Tribunal de Justiça desde abril deste ano, a virada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal autorizando prisão depois de decisão do segundo grau é importante para o equilíbrio social e a redução da sensação de impunidade.

Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, o ministro, integrante da 6ª Turma, que julga matéria criminal, defendeu a presunção de inocência, mas afirmou que o princípio perde força após um juiz de primeiro grau e três desembargadores se manifestarem a favor da prisão do réu. “Nesse caso, a presunção deixou de existir porque foi desconstituída por duas decisões judiciais. O que se presume é que há culpa”, disse, acrescentando que se trata de uma execução provisória.

Para Saldanha, que entrou no STJ na vaga aberta com a aposentadoria do ministro Sidnei Beneti, o aguardo do trânsito em julgado, devido ao número de recursos disponíveis, contraria a isonomia “porque favorece quem tem lastro financeiro para pagar um escritório de advocacia de grande porte”.

A atuação na área criminal não é novidade para ele. Quando entrou para a magistratura do Rio de Janeiro, no final dos anos 1980, após desistir de ser advogado na iniciativa privada, Saldanha foi juiz criminal nas cidades de São Pedro da Aldeia e Nilópolis. Nesta última localidade, na Baixada Fluminense, conta que presenciou um resgate de presos após uma audiência. “A matéria criminal é sedutora, porque lida com aquilo que existe de mais caro, que é a vida, a liberdade, valores relevantes para as pessoas e a sociedade. Estou voltando às minhas origens com muita motivação.” No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, no qual entrou em 2003, Saldanha julgava matéria cível.

Questionado se vê o Judiciário fragilizado por causa das acusações que têm surgido na imprensa de que ministros do STJ e Supremo Tribunal Federal poderiam ajudar réus em ações penais, o ministro Saldanha diz que os ataques, pelo contrário, fortalecem as duas instituições. Ele classifica a estratégia de “torpe, degradada e aviltante”. “São movimentos de pessoas que se sentem atingidas pela independência do Judiciário.”

Leia a entrevista:

ConJur — Qual é a sua avaliação a respeito da mudança de orientação do STF autorizando a prisão antes do trânsito em julgado?
Antonio Saldanha —
A presunção de inocência ou a presunção de não culpabilidade é uma orientação importantíssima. Existe o processo, um juiz de primeiro grau exerce um juízo de cognição plena, acha que o agente, em um determinado ato típico, é culpado e que merece uma punição, como a privativa da liberdade. O réu recorre, a reavaliação é feita por três desembargadores que também entendem que é o caso de confirmar a sentença de primeiro grau e privar a pessoa da liberdade por um tempo determinado. Nesse caso, a presunção já deixou de existir. Não é mais presunção de inocência, o que se presume é que há culpa. É uma execução provisória da pena porque a presunção foi desconstituída por duas decisões judiciais, uma de um juiz que colheu as provas, ouviu as pessoas e, presumindo-se a falibilidade humana, três desembargadores a confirmaram. Acredito inclusive que o aguardo do trânsito em julgado, devido aos vários recursos disponíveis, contraria a isonomia porque acaba favorecendo quem tem lastro financeiro para pagar um escritório de grande porte. Acredito que a mudança da jurisprudência é importante para o equilíbrio social e a redução da sensação de impunidade.

ConJur — O senhor vê o Judiciário fragilizado por causa das acusações que têm surgido na imprensa de que ministros do STJ e STF poderiam ajudar réus em ações penais?
Antonio Saldanha —
Não. Acredito que, ao contrário, são movimentos de pessoas que se sentem atingidas pela independência do Judiciário. A maneira de fragilizar é questionar a instituição, questionar a honorabilidade de quem materializa a instituição, que são os ministros. É uma estratégia torpe, degradada e aviltante.

ConJur — Fazia muito tempo que o senhor não atuava na área criminal. Como é voltar a julgar essa matéria depois de anos atuando na área cível?
Antonio Saldanha —
A matéria criminal é sedutora porque lida com aquilo que existe de mais caro, que é a vida, a liberdade, valores muito relevantes para as pessoas e a sociedade. Estou voltando às minhas origens com muita motivação. Já fui juiz criminal em Nilópolis, na Baixada Fluminense. Presenciei até resgate de preso na minha audiência, com troca de tiros.

ConJur — Como foi o episódio?
Antonio Saldanha —
Aconteceu em 1994. Estava no meio de uma audiência, com dois réus presos. Quando saíram, houve uma troca de tiros intensa para resgatá-los na entrada da sala de audiência. O caso começou porque um carro foi roubado em Nilópolis. Os dois homens foram presos, algum tempo depois, em Nova Iguaçu, com o carro. O juiz de Nova Iguaçu, que era um amigo querido, Edilson Chagas, meu colega de concurso, assumiu o caso. Como o roubo havia ocorrido em Nilópolis, mandou o caso para mim. Os presos já tinham sido interrogados, mas resolvi refazer o interrogatório para evitar nulidades. A minha falha foi não ter lido todo o inquérito do juiz Chagas. O documento dizia que o porta-malas do carro roubado estava cheio de armas. Eles eram os armeiros de uma quadrilha muito forte, pessoas essenciais para o grupo criminoso porque sabiam onde as armas ficavam armazenadas, sabiam consertá-las. Por isso houve a operação de regaste.

ConJur — As coisas são mais sossegadas no STJ…
Antonio Saldanha —
Aqui não vemos as pessoas, só vemos papel e os fatos. E mesmo assim é possível julgar com qualidade porque o STJ é uma corte de precedentes. O objetivo é estabelecer teses concretas para orientar as instâncias ordinárias. Acredito que o tribunal poderia melhorar esse trabalho de teses se julgasse menos processos.

ConJur — A valorização dos precedentes poderia diminuir o número de recursos que chegam aos tribunais superiores?
Antonio Saldanha —
Conceitualmente, sim. Mas precisamos de uma mudança cultural. Não temos uma cultura de precedentes, isso é do sistema anglo-saxão. Estamos mesclando sistemas, o que a doutrina chama de interpenetração. O pessoal do mundo anglo-saxão está legislando mais e nós estamos usando o precedente para evitar repetição de casos que já sabemos o resultado. Ainda estamos aprendendo a lidar com isso porque o brasileiro tem uma cultura positivista, de que “está na lei, a interpretação é minha e livre”. Pensa ainda que o precedente pode ser mudado, assim como a jurisprudência. O brasileiro é positivista na alma.

ConJur — O positivismo está na bandeira brasileira…
Antonio Saldanha —
Ordem e progresso. E está no jogo do bicho: “vale o que está escrito”. E nos avisos “não pise na grama”, “não bote o pé na parede”. Em minha opinião, não precisa estar escrito.

ConJur — O senhor acha boa essa mudança de paradigma?
Antonio Saldanha —
Atualmente, há a necessidade nos países de orientação anglo-saxônica de positivar muitas coisas, de legislar porque as relações sociais estão muito sofisticadas. Nós também temos essa necessidade. Mas o saudável é pegar o que há de melhor no mundo. Por que vamos ficar num sistema ou outro? Por que esse hermetismo? Vamos pegar o que existe de melhor em tudo o que é lado. Essa mixagem é um caminho para o Brasil, desde que seja adaptável à nossa cultura. Estamos vendo nessas grandes operações o uso da delação premiada, que é um instituto eminentemente estadunidense, com sucesso.

ConJur — Por que o senhor quis entrar para o STJ?
Antonio Saldanha —
A minha carreira no mundo jurídico foi delimitada. Fui advogado de uma multinacional durante quase 13 anos, trabalhei também nessa empresa na área de recursos humanos, lidando com negociações sindicais. Acabei me interessando pela matéria e cheguei a um posto executivo bastante destacado. Depois disso, resolvi fazer o concurso para a magistratura. Tinha 35 anos quando fiz o concurso e entrei na magistratura com 36 anos. Fui para São Pedro da Aldeia, uma cidade do litoral do Rio de Janeiro, onde fiquei quatro anos. Depois, fui para a Baixada Fluminense, atuando na área criminal. Cheguei ao TJ-RJ, fiquei na área cível. Por causa da minha experiência no setor privado, fui bastante solicitado para auxiliar na administração do tribunal algumas gestões. Trabalhei na corregedoria como juiz auxiliar e na presidência do TJ-RJ mais de uma gestão.

ConJur — Foi nessa época que o senhor conheceu os ministros Luís Felipe Salomão e Marco Aurélio Bellizze?
Antonio Saldanha —
Trabalhamos juntos na corregedoria e, depois, na presidência do TJ-RJ, como juízes auxiliares, e estreitamos a amizade. Trabalhei também com o ministro Luiz Fux também na corregedoria. Ele trabalhou comigo no setor privado. Foi uma coincidência de circunstâncias e fatores que levaram o ministro Fux para o STJ e depois ao STF. E o ministro Salomão e depois o ministro Bellizze ao STJ. Eu já tinha percorrido todas as etapas da minha carreira, não só jurídica. Era desembargador desde 2003. Chegar ao STJ seria uma complementação da minha carreira.

ConJur — O senhor não pensou em ser presidente do TJ-RJ antes?
Antonio Saldanha —
Pensei em concorrer para algum cargo administrativo, para corregedor, ou até para presidente. Surgiu essa oportunidade de concorrer à vaga no STJ, resolvi tentar. Até porque tinha o apoio muito forte dos meus colegas do Rio. [Luiz] Fux, [Luís Felipe] Salomão e [Marco Aurélio] Bellizze me apoiaram incondicionalmente.

ConJur — De que maneira a experiência na advocacia ajudou seu trabalho no Judiciário?
Antonio Saldanha —
O fato de ter trabalhado também do outro lado da mesa me deu uma visão diferenciada. O caminho para a empatia de quem tem a caneta do processo decisório é mais tortuoso se não conhece as angústias do postulante. Consigo vislumbrar com muita compreensão as angústias de quem está postulando. Sei das dificuldades, que são imensas, de chegar a um cartório, de acompanhar o processo, de ser recebido por um magistrado, de ser ouvido com atenção. Para nós, juízes, é mais um processo, mas para o advogado a importância é outra. Tenho uma visão bastante realista também do que é a angústia de um juiz de primeiro grau por ter percorrido todas as etapas da magistratura. O juiz de primeiro grau está na trincheira, vendo a situação, a aflição das pessoas. Por isso acho que essa experiência trabalhou minha sensibilidade. Num tribunal, os casos são resolvidos distantes do emocional. Decidimos com os precedentes.

ConJur — Como tem sido a adaptação à dinâmica do STJ?
Antonio Saldanha —
Faz pouco tempo que cheguei ao tribunal. Tenho que observar muito e tentar aprender com os outros colegas que estão há mais tempo. A rotina do exercício desse tipo de judicatura é diferente. O volume de processos é inimaginável. Via nas estatísticas, mas não tinha noção precisa da realidade crua que representa esse volume avassalador. Recebi por volta de 10 mil processos de acervo. Quando penso nessa questão como gestor, entendo que há algo de errado. Deve haver um caminho para resolver esse problema para não afetar a qualidade das decisões. Falo por mim. Acredito que os colegas já se adaptaram e lidam com a quantidade e qualidade, mas ainda não estou conseguindo. Estou procurando não afetar a qualidade do trabalho por causa da quantidade dos processos, mas sei que acaba afetando.

ConJur — Como gestor, o senhor já pensou em alguma sugestão para resolver esse problema?
Antonio Saldanha —
Ainda não tenho experiência no STJ, não poderia sugerir coisa alguma. Por enquanto, tenho muito é que ouvir.

ConJur — O senhor é conhecido pela atuação na administração do TJ-RJ, tem experiência em gestão. Acredita que o Judiciário deveria ter administradores que não fossem juízes?
Antonio Saldanha —
Acredito que os tribunais têm que ter pessoas com formação gerencial. Podem ser gestores que não sejam juízes e juízes com formação gerencial. Há muitos juízes já com uma vocação organizacional intrínseca. Pode haver administradores de fora, como também juízes de formação, que eu acho melhor. O juiz conhece a essência do trabalho, da atividade fim. A formação gerencial vai melhorar a prestação da atividade fim. Esse é o melhor caminho.   

ConJur — Então os juízes deveriam ter mais formação gerencial?
Antonio Saldanha —
Certamente. Qualquer juiz de um tribunal grande, pode ser o melhor jurista do mundo, vai fracassar se não for um bom gestor também. O volume de trabalho é imenso, não dá conta se não tiver um mínimo de noção de organização gerencial. O juiz vai fazer belas decisões, mas pontuais.

ConJur — O senhor atuou na área cível durante anos e deve ter se deparado com muitas ações sobre relações de consumo. O Judiciário desafogaria se essas relações fossem saneadas?
Antonio Saldanha —
As relações de consumo estão passando por uma transformação. Existem vários modelos no mundo, o Brasil precisa escolher como quer que o nosso consumidor seja tratado, como o fornecedor atue, e isso também é um trabalho de educação e mudança cultural. Atualmente, o fornecedor de produtos e serviços prefere pagar um corpo de advogados para se defender a mudar suas práticas. O empresário pensa economicamente, no resultado. Ainda é mais barato pagar as indenizações e os advogados do que mudar a relação com o consumidor. Se as agências reguladoras fossem eficientes, parte do problema poderia ser resolvido. Em caso de problema de telefonia, por exemplo, o consumidor não precisaria ir à Justiça, era só acionar a Anatel.

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