Prática ditatorial

Juíza praticou censura prévia ao proibir notícias sobre delegado da "lava jato"

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1 de junho de 2016, 14h49

Em decisão liminar, a juíza Vanessa Bassani, do Paraná, determinou que o jornalista Marcelo Auler “se abstenha de divulgar novas matérias em seu blog com conteúdo capaz de ser interpretado como ofensivo” a um delegado, autor da ação. O que é uma notícia "capaz de ser interpretada como ofensiva" fica a gosto do freguês, mas na reportagem que deu origem ao processo, o repórter acusa delegados da Polícia Federal de vazar documentos na operação “lava jato” e, segundo a juíza, não provou as alegações.

Esta é uma das duas liminares da Justiça paranaense que obrigam Auler a retirar 10 reportagens de seu blog sobre a famigerada operação, também paranaense, "lava jato". O jornalista não foi ouvido antes de as liminares serem deferidas.

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Ministro aposentado Velloso aponta que censura prévia é vedada há quase 30 anos.
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Especialistas ouvidos pela ConJur afirmam que a decisão viola a garantia constitucional da liberdade de expressão e configura censura prévia, prática comum durante a primeira metade da ditadura militar (1964-1985), mas que deixou de ser aplicada ainda em meados dos anos 1970.

Para o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal Carlos Velloso, a decisão viola a Constituição Federal de 1988. “A censura prévia deixou de ter vigência no país e passou a ser inadmitida constitucionalmente com a Constituição Federal de 1988, porque antes havia brechas legais que a autorizavam. Portanto, faz quase 28 anos que a prática é vedada no Brasil”.

O jurista e colunista da ConJur Lenio Streck diz não ter dúvida de que a decisão da Justiça do Paraná seja censura prévia. Segundo ele, os jornalistas só podem ser responsabilizados posteriormente por suas reportagens.

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Jornalista tem responsabilidade, mas não pode ser tolhido previamente, diz Streck.
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“Evidentemente que o jornalista tem responsabilidade, mas ele não pode ser tolhido previamente sobre o que escreve. Examina-se sempre a posteriori, mas jamais se pode proibi-lo de escrever algo no futuro, isso seria proibição de pensamento. Estamos criando algo semelhante à sociedade vigiada do livro 1984, de George Orwell, na qual o controle não é só do passado, mas também do futuro. Se a moda pega, vou começar a pedir a censura prévia dos comentários críticos que recebo na ConJur”, ironiza Streck.

Nesse sentido, o advogado especializado em questões de imprensa e colunista da ConJur Alexandre Fidalgo aponta que a liminar contra Marcelo Auler também violou a decisão do STF na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130. Nessa ocasião, os ministros declararam a inconstitucionalidade da antiga Lei de Imprensa (Lei 5.250/1967), que fazia limitações à liberdade de expressão, como exigir diploma em Jornalismo para quem quisesse exercer a profissão. Os integrantes do Supremo chegaram à conclusão que não podem existir obstáculos ao exercício da liberdade de expressão.   

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Não cabe qualquer medida de impeça a imprensa de publicar algo, diz Fidalgo.
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“Não cabe, no Estado Democrático Brasileiro, qualquer medida de impeça a imprensa de publicar algo. Se, depois de publicado, houver abuso ou irregularidade, há instrumentos para punir. Mas não cabe punição prévia”, destacou Fidalgo.

O advogado de Marcelo Auler, Rogério Bueno da Silva, do Rogério Bueno Advogados Associados, impetrou mandado de segurança contra as duas liminares. Contudo, a ordem foi negada nessa segunda-feira (30/5).

Repúdio de jornalistas
Entidades de jornalistas também criticaram as decisões. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) afirmou em nota que "repudia as decisões dos Juizados Especiais de Curitiba, tomadas sem garantir o devido direito de defesa de Auler. O jornalista não foi ouvido antes de as liminares serem deferidas. Mais grave é a proibição de publicar futuras reportagens, que configura censura prévia — medida inconstitucional e incompatível com uma democracia plena".

Já a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) alegou que as liminares "representam também perigoso precedente ao exumar mecanismos de controle da expressão do pensamento usados sem parcimônia durante a ditadura militar. A Carta de 1988 garante o livre acesso à informação e à circulação de ideias, postulados que não podem ser violados sob qualquer pretexto".

Leia a nota da Abraji:

"A pedido de delegados da Polícia Federal, dois Juizados Especiais de Curitiba (PR) determinaram a retirada de 10 reportagens publicadas no blog do jornalista Marcelo Auler. Publicados entre novembro de 2015 e abril de 2016, os textos tratavam da Operação Lava Jato, apontando possíveis irregularidades em sua condução.

Em decisão de 30.mar.2016, o juiz Nei Roberto de Barros determinou que duas reportagens do blog de Marcelo Auler mencionando a delegada federal Erika Mialik Marena fossem retiradas do ar em até 24 horas. Barros acatou os argumentos da delegada na ação por danos morais, segundo a qual os textos "denigrem sua imagem".

Em 5.mai.2016, a juíza Vanessa Bassani, do 12º Juizado Especial Cível, também determinou a retirada de reportagens do blog. Desta vez, a decisão judicial atingiu textos que mencionam o delegado federal Maurício Moscardi Grillo. A juíza ainda proibiu Auler de publicar outras reportagens "com conteúdo capaz de ser interpretado como ofensivo" ao delegado. Os advogados do jornalista já entraram com recurso contra a decisão.

A Abraji repudia as decisões dos Juizados Especiais de Curitiba, tomadas sem garantir o devido direito de defesa de Auler. O jornalista não foi ouvido antes de as liminares serem deferidas. Mais grave é a proibição de publicar futuras reportagens, que configura censura prévia — medida inconstitucional e incompatível com uma democracia plena.

A Abraji espera que o Tribunal de Justiça do Paraná reverta as decisões e garanta o direito à informação previsto na Constituição.

Diretoria da Abraji, 30 de maio de 2016"

Leia a nota da ABI:

"A Associação Brasileira de Imprensa denuncia o restabelecimento da censura através da decisão da Justiça do Paraná ao determinar a remoção de textos e proibir reportagens sobre a Operação Lava-Jato e a Polícia Federal publicados no Blog do jornalista Marcelo Auler. A ABI entende, sem entrar no mérito das denúncias veiculadas pelo blog, que as liminares concedidas pelo 8º Juizado Especial e pelo 12º Juizado Especial Cível ofendem a Constituição e representam grave ameaça à Liberdade de Imprensa e ao Estado de Direito.

A medida proferida pela Justiça de Curitiba representa também perigoso precedente ao exumar mecanismos de controle da expressão do pensamento usados sem parcimônia durante a ditadura militar. A Carta de 1988 garante o livre acesso à informação e à circulação de ideias, postulados que não podem ser violados sob qualquer pretexto.

Na visão da ABI, as autoridades que se sentiram ofendidas pelo blog dispõem de outros instrumentos legais para se socorrerem das acusações a elas endereçadas, sem a necessidade de vivificar procedimentos de caráter autoritário que se acreditava sepultados para sempre com o fim do regime de 1964.

Domingos Meirelles
Presidente da ABI"

Clique aqui para ler a íntegra da decisão.

Processo 0016778-07.2016.8.16.0182 

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