Opinião

Subsídio para servidores do Judiciário representa justiça social

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30 de julho de 2016, 9h30

A doutrina da separação dos poderes, como limitação do poder, foi colocada em prática nas revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII: Revolução Gloriosa – Inglaterra, 1688; Independência dos Estados Unidos, 1776 e Revolução Francesa, 1789, como resposta à concentração dos poderes nas mãos do monarca.

O sistema de freios e contrapesos pressupõe que os poderes se controlem reciprocamente, com o objetivo de estabelecer limites e manter a teoria da separação dos poderes preconizada por Locke e sistematizada por Montesquieu[1]:

[…]Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou mesmo um corpo de principais ou nobres, ou do Povo, exercesse estes três poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções públicas; e o de julgar os crimes ou as demandas particulares.[Grifei]

A Constituição Federal de 1988 manteve como um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil a separação dos Poderes e estabeleceu que o referido princípio é cláusula pétrea, sendo que o mecanismo de controle externo — legitimado pela teoria da separação dos poderes —, propõe um inter-relacionamento das atividades desenvolvidas pelos órgãos especializados, visando melhor eficiência do Estado. Neste sentido, leciona José Afonso da Silva[2] que hoje, o princípio não configura mais aquela rigidez de outrora, tanto que atualmente se fala em colaboração de poderes.

Brilhante é a leitura crítica de Eros Roberto Grau[3] sobre o princípio da separação dos poderes de MONTESQUIEU ao afirmar que o que importa verificar na construção de Montesquieu, é o fato de que não cogita de uma efetiva separação de poderes, mas sim de uma distinção entre eles, que devem atuar em clima de equilíbrio.

A ideia de controle destina-se a realizar a contenção do poder, seja qual for sua manifestação, eis que o objetivo do sistema é de que o poder detenha o próprio poder. Assim é que a atividade do Executivo é controlada pelo Legislativo e as atividades de ambos estão sujeitas ao controle do Poder Judiciário.

É importante assinalar que a década de 1990 foi marcada por uma onda de reformas constitucionais neoliberais com o advento de uma Constituição dirigente[4], a qual pressupunha um Estado intervencionista, destinado, como previsto no art. 3º da Constituição Federal de 1988, a construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

A globalização coerente com as orientações neoliberais substituiu a política pelo mercado, de modo que em vez de o Estado garantir a liberdade econômica e operar a regulamentação do mercado[5], este é quem regula o Estado.

A crise de identidade do Poder Judiciário se dá pelas transformações ocorridas nas relações entre as tradicionais funções estatais, diante da incapacidade do Poder Legislativo e do Poder Executivo em realizar as promessas contidas no projeto constitucional, fazendo com que haja um deslocamento do debate político para o âmbito jurisdicional, o que fica reconhecido como judicialização da política[6].

A litigiosidade, diante das infinitas demandas que surgem das relações sociais, resulta no que pode ser chamado de judicialização das relações sociais[7]. A esse caráter de litigiosidade, acrescente-se, o sucesso do Estado democrático em prover a cidadania de melhores meios de acesso à justiça[8].

Diante do protagonismo do Judiciário e em face do mandamento constitucional de prestação jurisdicional célere e eficiente temos uma barreira que dificulta a concretude dos direitos fundamentais: a morosidade do Judiciário, que consiste na mola mestre de atuação do Conselho Nacional de Justiça. A Emenda Constitucional 45/2004, acrescentou o inciso LXXVIII ao art. 5º da Constituição de 1988, e a razoável duração do processo passou a compor os direitos e garantias fundamentais, de forma que o acúmulo de serviço ou a falta de estrutura não justifica o descumprimento do direito fundamental à razoável duração do processo[9].

Nesse cenário, é imprescindível a valorização do corpo que compõe o  Judiciário, por meio de uma remuneração adequada e justa a magistrados e servidores, bem como a destinação de verbas para reaparelhamento da máquina.

É de opinião unívoca que o fortalecimento do Estado Democrático de Direito depende de efetiva prestação jurisdicional, a qual não dispensa o reconhecimento da importância dos servidores para o alcance de tal ofício.

E como materializar esse reconhecimento?

A Reforma do Judiciário centrou-se em configurar o exercício da magistratura à lógica gerencial[10], todavia, os servidores não tiveram sua importância reconhecida naquela Reforma. A lei não reconhece e a sociedade não compreende que a atividade judicante vai muito além das funções exercidas pelos juízes.

Nem mesmo estes últimos são capazes desse reconhecimento, com raríssimas exceções, como no caso do ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho, ao defender a necessidade de reforma do sistema de justiça atual e afirmar que existem três tipos de juízes:

i) o juiz voluntarioso, que aumenta a quantidade de trabalho e vai tentando dar conta, embora para isso comprometa sua saúde e sua relação com a família;

ii) o conformado, que vai levando as coisas e pensa “não fui eu que criei o problema, não serei eu a resolver, eu vou fazendo aqui o que eu posso”, e a pilha de processos vai aumentando; e

iii) aqueles que tentam uma posição de equilíbrio e começam a delegar a atividade jurisdicional.[11]

Ele denomina seus assessores de juízes de fato, em função do essencial trabalho de assessoria que desempenham. É notória a importância do servidor para a prestação jurisdicional, seja elaborando uma minuta de uma decisão ou um voto para um magistrado, ou quando desempenha o papel administrativo. Dentro do quadro de pessoal, verifica-se que servidores desempenhem a mesma atividade, com remunerações diferentes, de modo que o atual sistema fere cabalmente o princípio da igualdade, insculpido na Lei Maior.

Insta registrar que Lei 13.317/2016[12] confirma o desrespeito ao princípio da igualdade ao conceder reajustes de até 25% por cento para os Cargos em Comissão (CJ1, CJ2, CJ3 e CJ4) e nenhum reajuste para os ocupantes de Funções Comissionadas.

O Poder Judiciário há de reinventar sua gestão de pessoal para fazer frente aos novos desafios impostos pelo aumento dos processos. E essa reinvenção do Poder Judiciário perpassa pela implementação do Subsídio como forma de remuneração dos servidores, a exemplo dos magistrados.

O modelo atual é ultrapassado e não é mais capaz de adequar as distorções salariais presentes entre servidores novos e antigos. É preciso um novo paradigma que contemple a força de trabalho e tenha o menor impacto possível nas contas públicas. Cabe destacar que as carreiras do Poder Executivo já são remuneradas por subsídio[13].

Inadequado seria também não mencionar a necessidade de exigência de nível superior para os novos concursos do Poder Judiciário da União. Nesse sentido caminha a jurisprudência do STF no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 4303, Rel. MIn. Cármen Lúcia, julgado em 5.2.2014. O referido precedente é histórico e justo, levando-se em conta que a grande maioria dos técnicos realiza análise e pesquisa de legislação, doutrina e jurisprudência; elabora pareceres jurídicos; minutas de decisão e sentença; de relatório e voto; atividades de gerência e planejamento; coordenação; supervisão técnica; assessoramento; e execução de tarefas de elevado grau de complexidade, inclusive de diretor-geral de Tribunal.

Atente-se que a competência para estabelecer a forma de remuneração dos seus servidores é privativa do Poder judiciário, nos termos do art. 96, II, b da Constituição. Além disso, a Constituição, em seu artigo 99, assegura ao Poder Judiciário como consequência de sua independência o poder privativo de propor projetos de lei ao Legislativo sobre matérias relativas a seu autogoverno.

O Poder Judiciário tem autonomia para propor a alteração da forma de remuneração de seus servidores, imprescindíveis para a realização da justiça. Sendo assim, segundo a proposta as funções comissionadas seriam reduzidas de forma que somente as chefias das seções (FC-6) permaneceriam. Os valores referentes a essas funções seriam destinados a “bancar” a implementação do subsídio como forma de remuneração da carreira. Sobre os cargos em comissão observar-se-á a garantia de os magistrados poderem nomear os assessores de sua confiança na proporção de 50% na forma do §7o do art. 5º da Lei 11.416/2006.

Cabe destacar ainda, com a devida vênia, que a proposta de carreira própria para o STF é incoerente, eis que um dos seus fundamentos é “notadamente equivocado tratar de forma idêntica um servidor que assessora um Ministro da mais alta Corte do país com outro que atue, por exemplo, perante um juiz federal substituto. Em razão disso, é evidente que os servidores devem merecer tratamento diferenciado na mesma proporção de importância do órgão e das autoridades a ele vinculadas.”[14]

Com o devido respeito e fazendo um contraponto, essa visão é enviesada porque não há que se falar em distinção, por exemplo, entre um servidor do TJ-DF e um servidor do STF. Qual seria a diferença em elaborar uma minuta de decisão para um magistrado, um voto para um desembargador, uma decisão ou um voto para um ministro do Supremo?

Portanto, a adoção do subsídio como forma de remuneração dos servidores do Poder Judiciário representa uma nova fase de justiça social, valorizando o cargo efetivo e resgatando a dignidade daqueles que compõem o Sistema de Justiça. Todavia, quando da implantação do subsídio há que se considerar uma equivalência entre os valores dos servidores do Poder Judiciário da União com os das carreiras típicas de Estado.

Por fim, essa proposta não traz ônus financeiros adicionais ao Estado e está em plena consonância com um dos macrodesafios do Poder Judiciário 2015-2020, estabelecidos pelo CNJ[15], notadamente no que se refere à valorização dos servidores e à modernização das carreiras.


[1]MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. Tradução de Pedro Vieira Mota. 5. ed. Saraiva, 1998. p. 167-168.

[2]José Afonso da Silva.Curso de Direito Constitucional Positivo. 28ª Edição, Malheiros Editores, São Paulo, 2006. pág. 109.

[3]GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2003. pág. 230.

[4]CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2001.

[5]GRAU, Eros Roberto. Por Que Tenho Medo Dos Juízes. 6ª Ed. Malheiros. 2016. p. 15.

[6]BOLZAN DE MORAIS, José Luis. As crises do estado e da constituição e a transformação espaço-temporal dos direitos humanos. 2. ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.

[7]VIANNA, Luiz Werneck et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.

[8]CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.

[9]HOFFMAN, Paulo. Razoável duração do processo. São Paulo: Quartier Latin, 2006.

[10]CALHAO, Antônio Ernani Pedroso. Justiça Célere e Eficiente: uma questão de governança. São Paulo: LTr, 2010.

[11]MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. Justiça precisará de uma nova reforma. Valor Econômico. 17.12.2014. Acesso em: 04.1.2016.

[13]BRASIL. Lei 12.775 de 28 de dezembro de 2012. Acesso em: 21.07.2016

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  • Brave

    é bacharel em direito pela faculdade Processus - Brasília. É especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho. É pós-graduando em Direito Administrativo (Universidade Cândido Mendes). É graduado em história pelo Centro Universitário de Brasília (Uniceub). Foi diretor técnico do departamento de pesquisas judiciárias no Conselho Nacional de Justiça; chefe de gabinete de ministro do Supremo Tribunal Federal; assessor da Presidência do Supremo Tribunal Federal e assessor parlamentar na Câmara dos Deputados; assessor-chefe do gabinete do diretor-geral do Tribunal Superior Eleitoral; assistente de ministros do TSE e STF. Atualmente é servidor do TSE e bacharel em direito atua como colaborador da defensoria pública do distrito federal desde 13.7.2015.

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