Olhar Econômico

A guerra influi no direito das pessoas jurídicas

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

28 de julho de 2016, 8h00

Spacca
João Grandino Rodas [Spacca]Iniciada a guerra 1914/1918, a legislação bélica francesa visou à interdição das relações comerciais com a Alemanha, Áustria-Hungria (decreto de 27/9/1914) e Bulgária (decreto de 7/11/1915). As proibições foram sancionadas penalmente (lei de 4/4/1915) e se entendeu serem as mesmas aplicáveis a pessoas jurídicas. Por seu turno, as circulares do Garde des Sceaux urgiram aos tribunais que determinassem o sequestro de bens pertencentes aos adversários. Tanto a legislação, quanto as circulares influenciaram grandemente a jurisprudência, cujas tendências foram tripartidas[1].

A primeira orientação corporificou o entendimento jurisprudencial pré-bélico: sede social indicativa da nacionalidade da sociedade, a qual possui individualidade própria, distinta da de seus membros (c. Lamotte – 1916 e Lillelund-1915).

A segunda, embora resguardando a teoria tradicional em sua essência procura impedir o comércio com o inimigo por meio da teoria da interposição de pessoa (c. Lentzbourg – 1915).

A última inclina-se para a aplicação de legislação excepcional, sequestrando sociedades com sede na França, mas sob influência inimiga, por força do capital ou nacionalidade dos diretores (c. Advogado-Geral c. Vulcan — 1915, Mante e Société Provençale de Charbons — 1913, Minas de Barbery — 1916 e Freitag — 1917).

Na Itália, a legiferação bélica foi gradual e por meio de decretos exarados pelo lugar-tenente do Rei. Inicialmente, os nacionais ou residentes austro-húngaros (Dec. 902/1915) e otomanos (Dec. 1.755/1915) tiveram suas alienações imobiliárias, bem como suas cessões de mercadorias, créditos e estabelecimentos comerciais, tidas como absolutamente ineficazes, além de lhes ter sido vedado o ingresso na justiça italiana. Posteriormente, tal tratamento foi estendido aos súditos e residentes de todos os Estados inimigos e dos territórios por eles ocupados (Dec. 864/1916). Finalmente, proibiu-se aos italianos e a qualquer pessoa em território italiano de comerciar com pessoas ou entes estabelecidos em território originário ou ocupado por Estados inimigos e seus aliados ou, ainda, constantes de lista aprovada por decreto. Tudo isso sancionado com penas de nulidade, confisco, reclusão e multa (Dec. 960/1916). Eventuais negócios de súditos de Estados inimigos e seus aliados em território italiano seriam submetidos a controle governamental, sequestro e liquidação (Dec. 961/1916).

Aplicando o Dec. 902/1915, uma sociedade anônima constituída na Itália e com sede oficial e objeto principal de empresa nesse país foi considerada como filial de sociedade austríaca, face a algumas evidências: nome austríaco, nacionalidade austríaca de administradores e acionistas, ter por objeto venda produtos austríacos e capital estatutário exíguo em comparação com suas operações italianas (c. Società Italiana Ganz – 1916). Ainda com base no mesmo decreto, uma sociedade em comandita simples teve sua nacionalidade fixada em consonância com a nacionalidade de seu gerente (c. Paolo Ferko).

Aplicando-se os dec. 960 e 961, decidiu-se que nomear italianos para administrar sociedade constituída na Itália, mas em que predominam interesses de súditos inimigos, não ilidia a aplicação de medidas de controle e sequestro (c. Borella – 1918)

A variada legislação de guerra alemã contemplou cronologicamente: denegação de jus standi a inimigos (declaração de 07/08/1914), controle de empresas sucursais (dec. de 04/08/1914, sequestro de bens inimigos (dec. 26/11/1914),declaração de bens inimigos (dec. de 07 e 10/10/1915),liquidação de empresas (decs. de 26/11/14 e 31/07/1916) e resilição de contratos (dec. de 16/12/1916).

Tanto a doutrina como a jurisprudência alemãs interpretaram literalmente a declaração de 07/08/1914 como retirando a capacidade postulatória ativa de qualquer pessoa física ou jurídica domiciliada fora do território alemão. Como o relevante foi o domicilio e não a nacionalidade, alemães residentes no estrangeiro ficaram impedidos de demandar, ao passo que estrangeiros domiciliados na Alemanha o conservaram.

O critério de que se serviu o dec. de 04/09/1914 para individualizar o inimigo foi o lugar de onde procede a direção e para onde acodem os benefícios. Daí a importância do domicílio dos diretores ou dos destinatários da remessa e não de sua nacionalidade.

Consoante o decreto de 26/11/1914, que estatuiu o sequestro, o importante era pertencer realmente a empresa, total ou majoritariamente, a nacionais dos países designados, embora terceiros de outras nacionalidades aparentassem ser proprietários.

A declaração de bens, nos termos dos decretos de 07 e 10/10/1915, alcançava bens pertencentes a pessoas jurídicas com sede em país inimigo; levava, entretanto, em linha de conta, também, a nacionalidade das pessoas titulares do capital social.

Conforme o decreto de 31/07/1916, podiam ser liquidadas empresas ou sucursais cujo capital pertencesse em sua maior parte a súditos inglês ou fossem dirigidas ou controladas a partir de território britânico. Eram relevantes a nacionalidade dos detentores do capital ou o local a partir do qual a empresa era dirigida ou controlada.

Finalmente, o decreto de 16/12/16, relativo à resilição de contratos, toma em consideração para estabelecer o caráter inimigo da sociedade, a nacionalidade do elemento preponderante.

Com o intuito de regular o comércio, editaram-se no Reino Unido proclamações reais, que confirmadas por leis, passaram a ter força legal e foram dotadas de penalidade.

Em fase inicial, somente poderiam ser consideradas como detentoras de caráter inimigo corporações estabelecidas em território inimigo (Proclamação 2/1914). Tais limites foram alargados para incluir também o território sob controle inimigo (proclamação de 16/02/1915). Passou a ser tida como inimiga qualquer pessoa jurídica que violasse as prescrições de comércio com o inimigo, mesmo que se tratasse de companhia inglesa (proclamação de 14/09/ 1945). Prisão e multa eram as penalidades para quem comerciasse com o inimigo (Trading with the Enemy Act, 1914). Na definição de súdito inimigo foi incluída a corporação que tivesse sido constituída em consonância com as leis de Estado em guerra com o Reino Unido (Trading with the Enemy Act, 1916).

Anteriormente à guerra, a jurisprudência fixara que unicamente companhia incorporada em país inimigo seria considerada inimiga, em nada concorrendo a nacionalidade ou residência dos acionistas (c. Driefontein – 1902).

Iniciando o confronto, excluiu-se das proibições bélicas firma incorporada no Reino Unido e com o escritório e fabrica nesse país, embora fosse inimiga a maioria de seus acionistas (c. Amorduct – 1914).

Companhia incorporada e com sede em país amigo, em razão de ter sido incorporada em local sob ocupação inimiga, foi, em primeira instância, nos termos da proclamação de 16/02/1915, considerada como inimiga. A Corte de Apelação, entretanto, reverteu tal consideração, por ter a mesma sido incorporada em consonância com as leis de país não inimigo (c. Société Anonyme Belge – 1915). Esse julgamento foi a causa da proclamação de 14/09/1915, que ampliou o significado de inimigo. Com base nessa proclamação, foi considerada inimiga companhia que, incorporada consoante as leis belgas, com escritório registrado em Antuérpia e, em razão da guerra, administrada a partir de Londres, realizar negócios em território sob ocupação (c. Central índia Mining).

Constitui, entretanto, leading case o c. Daimler, julgado pela Corte de Apelação em 1915 e reformado no ano seguinte pela Câmara dos Lordes. A Continental Tyre, incorporada no Reino Unido e com sede em Londres, era subsidiária de empresa alemã, objetivava a venda de pneus alemães no Reino Unido e quase a totalidade de seus acionistas era também alemã. Em apelação, confirmou-se a sentença de primeira instância, no sentido de não ser a referida empresa considerada como inimiga. Foi dito então, como fundamento, que u companhia inglesa não deixa de o ser em razão de seus acionistas serem estrangeiros, pois somente a incorporação em país inimigo faz com a companhia tenha tal característica. Diferente foi o supedâneo encontrado pelos lordes: inobstante uma companhia seja distinta de seus membros, o caráter destes não lhe é indiferente. Embora a residência da pessoa jurídica seja fixada pela incorporação, a residência ou domicílio comercial explicita-se pelo seu controle.

Por ser presumível que pessoas que agem em nome da companhia não contrariem quem a controla, é relevante perquirir acerca das pessoas físicas que a compõem e regem, mormente em tempo de guerra.

O controle acabou sendo consagrado legalmente. Companhia controlada pelo inimigo foi definida como a que possuísse em sua direção maioria de súditos inimigos, ou tivesse sua maioria acionária votante ou fosse controlada pelos mesmos ou, ainda, seus dirigentes fossem uma corporação controlada pelo inimigo ou por ela apontados [Trading with the Enemy (Amendement)Act, 1918]

Conforme a legislação de guerra dos Estados Unidos da América, a estrutura corporativa não pode ser afastada a fim de se verificarem os elementos que a compõem. Para fim de determinação do caráter inimigo; companhia incorporada em país inimigo também é inimiga; não será considerada inimiga companhia que haja sido incorporada nos Estados Unidos; e companhia incorporada fora dos mesmos e que comercie com o inimigo será inimiga (Trading with the Enemy Act, 1917).

Nos Estados Unidos, não se acolheu a doutrina do controle inserta no c. Daimler, nem se possibilitou que a empresa inglesa pudesse ser considerada inimiga. Comprovam tal asserção vários julgados.

Anteriormente à legislação acima, decidira-se que uma sociedade, incorporada segundo as leis do Estado de Nova Jersey e com a quase totalidade de suas cotas em mãos de alemães, poderia ser tida como inimiga e, consequentemente, ter acesso negado aos tribunais norte-americanos. Considerou o juiz, para tanto. ser necessário abstrair a entidade corporativa e verificar o perfil dos membros componentes. Acabou por concluir que, embora a maioria de seus diretores residisse na Inglaterra, o controle mantinha-se nas mãos de residentes (c. Fritz Schulz – 1917).

Sociedade incorporada em colônia britânica, com maioria de acionistas alemães, teve seus bens confiscados com base na legislação supra. O julgamento, baseado na exegese literal da referida lei, ordenou a devolução do que havia sido confiscado, por se tratar de corporação não inimiga, inobstante os interesses hostis (c. Behn, Meyer & Co. – 1925)

Companhia, admitindo que se tornava inimiga por ter comerciado com a Alemanha, requereu a devolução de apreciável quantia que havia depositado antes da guerra e que havia sido confiscada sob alegação de ser propriedade inimiga. Em primeira instância houve denegação, em virtude de ser a maioria das cotas possuída por súditos inimigos. Tanto a Corte de Apelação quanto a Suprema Corte mantiveram o julgamento, embora o tenham feito por maioria e com distinto fundamento (c. Swiss National Insurance Co.,1925)

Três companhias incorporadas em Nova Jersey tinham capitais em poder de uma companhia alemã e, sendo por isso consideradas inimigas, lhes fora negada a devolução de bens confiscados. A Corte Suprema acabou por reverter os julgamentos anteriores, reafirmando o princípio contido no c. Behn, Meyer & Co., que não permite que a nacionalidade dos membros influa no status de companhia(c. Hamburg-American Line – 1918).

Veicula o artigo 197 do Tratado de Versalhes a ideia de interesse e controle ao se referir às sociedades em que nacionais das potências aliadas ou associadas possuíssem interesse (a e e) e às sociedades controladas pelos alemãs (b).

Dentre os Tribunais Arbitrais Mistos, o franco-alemão inclinou-se pela teoria do controle. Sua jurisprudência deu decisiva importância aos interesses preponderantes e controladores da sociedade, verificáveis pelo exame da proveniência de seu capital, nacional, nacionalidade dos diretores, local da sede e lugar de realização de suas assembleias (c. Société du Chemin de Fer de Damas-Hamah – 1924 Société Anonyme du Charbonnage – 1921, Elmores Metall – 1924, Société Anonyme la Providence – 1924). Importante é relembrar as observações feitas no c. Société Anonyme du Charbonnage no sentido de que as sociedades anônimas não possuem nacionalidade propriamente dita; que sua personalidade jurídica foi resultado de uma ficção legal; que, além da pessoa jurídica da sociedade, é de se levar em conta a dos acionistas, que, por serem pessoas físicas, têm nacionalidade, sendo que a nacionalidade da maioria dos acionistas permite vislumbrar o caráter da empresa.

Embora outros tribunais mistos — o franco-búlgaro e o alemão-belga — seguissem a tendência acima, por vezes razões especiais causaram a aplicação da teoria tradicional (anglo-alemão: c. Chamberlain – 1922; anglo-búlgaro: c. James Dawson – 1923). Os árbitros do Tribunal Arbitrai autríaco-iugoslavo alertaram que, inobstante tivessem vários tribunais arbitrais mistos adotado o controle como indicativo da nacionalidade da sociedade, não se podia dizer que tivesse havido unanimidade (c. Òsterreichische Credit Anstalt – 1927).

A doutrina sublinhou, relativamente ao artigo 197 do Tratado de Versalhes, que sua redação elíptica ajudou a estabelecer a ideia de que a nacionalidade das sociedades relacionava-se com o controle; o caráter excepcional do critério do controle, inserto em um tratado, não permite sua utilização generalizada; e que o critério do controle não foi seguido, unanimemente, pelos tribunais arbitrais mistos.

Como regra, o governo brasileiro, no período em que foi neutro, não levou em consideração, para a definição da nacionalidade das sociedades, a dos seus indivíduos componentes. Eram tidas como brasileiras as que no país possuíssem sede, registradas nas juntas comerciais e que aqui exercessem a sua atividade.

Com a entrada na guerra, possibilitou-se ao governo determinar: sequestro, retenção de mercadorias; suspensão de direitos de propriedade industrial, de execução judicial ou de exportação; cessação de relacionamento comercial, liquidação de empresas; e internação em campos de concentração (Lei 3.393/1917). A referida lei deu guarida ao princípio do controle, ao estabelecer serem propriedades inimigas as pertencentes, em sua maior parte, a súditos inimigos.

Para Rodrigo Octávio, o citado dispositivo não trata de nacionalidade de sociedade, mas sim do caráter inimigo dos possuidores da maioria do capital.

Os poucos casos jurisprudenciais não chegaram a enfocar matéria de relevo. A doutrina parece ter aceito as restrições que alcançaram os estrangeiros componentes de sociedades como medida de salvação pública, tomadas em período de anormalidade.

As medidas estabelecidas pela legislação bélica não diferem fundamentalmente na Alemanha, Estados Unidos e Brasil. Basicamente proibiram-se as relações comerciais com súditos inimigos; declarou-se a ineficácia das inalienações e cessões feita por inimigos, bem como a retenção de mercadorias e suspensão de direitos; proibiu-se aos inimigos o acesso à justiça; e estabeleceram o acesso ao controle, sequestro e liquidação de bens inimigos. As proibições acima eram muitas vezes sancionadas penalmente.

O Brasil evoluiu da não consideração dos componentes da sociedade, enquanto esteve na neutralidade, para a adoção da teoria do controle, a partir do momento em que entrou em guerra. Isso demonstra que a doutrina do controle se relaciona com o estado bélico; que sua teleologia é delimitar a sociedade inimiga; e que sua aceitação, em princípio, restringe-se a períodos de anômalos[2].

Como na atualidade a guerra tradicional tem ficado em segundo plano, o direito excepcional que vem de ser retratado, acaba sendo utilizado parcialmente que seja, em situações similares.


1 Com referência ao período até 1914, ver: Rodas João Grandino,” Lei, jurisprudência e doutrina sobre pessoas jurídicas influenciam-se na prática”,Revista Eletrônica Conjur, 14/07/2016.

2 Rodas, João Grandino, Sociedade Comercial e Estado, São Paulo, Saraiva, 1995, p. 99/157.

Autores

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    é professor titular da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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