Opinião

Novo CPC exige aperfeiçoamento do ensino da argumentação Jurídica

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27 de julho de 2016, 6h59

Uma das principais alterações do novo Código de Processo Civil é a introdução no processo e, fundamentalmente, nas decisões judiciais, dos avanços da teoria da argumentação. Essa é também a novidade que tem maiores chances de transformar a prática jurídica, tornando o diálogo jurídico mais coerente, harmonioso e previsível, dotando os argumentos jurídicos de maior peso e fazendo o próprio Direito mais justo, na medida em que mais racional e mais comprometido com a igualdade de tratamento de casos semelhantes.

Essas inovações estão consubstanciadas essencialmente no artigo 489, §§ 1º e 2º, do novo CPC, mas também nos artigos 10, 927 e 1.010, por exemplo. A carga argumentativa, a observação dos precedentes, a saturação do argumento, a proibição de decisão surpresa, a observância da ratio decidendi dos precedentes, com a possibilidade de distinção caso a caso, são o próprio espírito do novo código no que tem de mais frutuoso e promissor e, se forem bem compreendidas e trabalhadas, talvez resultem no seu maior legado.

Se forem bem compreendidas e trabalhadas. Para isso, já se tem dito à exaustão, é preciso uma mudança de atitude das cortes superiores e de todos os profissionais do direito: advogados, promotores, defensores e juízes. A mudança é lenta. O Superior Tribunal de Justiça ainda registra muitas divergências entre suas turmas. Ainda há mudanças de entendimento aparentemente injustificáveis, mesmo pelo Supremo Tribunal Federal. Basta lembrar da recente decisão do ministro Celso de Mello no caso da prisão por decisão condenatória de segundo grau, em sentido diverso do que havia decido o plenário pouco antes.

Tudo isso contraria o espírito do novo Código de Processo Civil e a própria racionalidade das decisões. Afinal, o novo CPC apenas tornou mais fortes e cogentes mandamentos que já eram impostos pela própria Razão. As novidades trazidas já deviam ser observadas por toda argumentação que se pretendesse racional e sistemática. A nova lei veio apenas reforçar ainda mais sua necessidade, como dizer que a racionalidade deve ser seguida também por força de Lei.

Para além desse mudança de mentalidade das cortes superiores e dos profissionais de Direito, talvez mais necessário e mais imediato fosse uma mudança nos currículos das faculdades de Direito. Ainda não estudamos adequada e sistematicamente a argumentação e o raciocínio jurídico. Não aprendemos a debater, a argumentar e a contra-argumentar. Não entendemos a decisão judicial (sentença e acórdãos) como a síntese de uma atividade argumentativa nem estamos atentos a todas as implicações disso.

De igual modo, nada disso é cobrado nos concursos públicos para cargos importantes do sistema de Justiça. Cito apenas um exemplo. No último concurso para o cargo de juiz substituto do Tribunal de Justiça do Piauí, a prova de sentença cível, elaborada pela prestigiosa Fundação Carlos Chagas (FCC), passou ao largo de todas essas questões. Trago à colação a prova de sentença porque é na sentença, assim como no acórdão, que a argumentação jurídica tem seu pleno desenvolvimento e culminância.

Pois bem. Pedia-se ao candidato, na referida prova, a elaboração de uma sentença em uma ação de anulação de negócio jurídico. Como de costume, a questão serviu como relatório, lá estavam elencadas todas as questões jurídicas e argumentos das partes. O interessante são os critérios de correção da prova, devidamente divulgados pela FCC. Ei-los:

Critério avaliado Pontuação
a. Rejeitar a preliminar de decadência porque todos os vícios alegados pelo autor determinam nulidade relativa do negócio sujeita a prazo decadencial de quatro anos. 1,50
b. Analisar os elementos necessários à configuração de dolo e rejeitar sua alegação, porque o fato que o caracterizaria (informação a respeito de desapropriação inverídica) não foi determinante para realização do negócio. 2,00
c. Analisar os elementos necessários à configuração de coação e rejeitar sua alegação, porque a alegação de exercício regular de direito não a configura. 2,00
d. Analisar os elementos necessários à configuração de lesão (prementene cessidade, inexperiência, preço de venda inferior a 2/3 do valor do bem na data do negócio e irrelevância de posterior desvalorização do bem) e acolher essa alegação. 3,00
e. Julgamento de procedência da ação. 1,00
f. Distribuição dos autos sucumbenciais. 0,50
Total 10,00

É claro que a banca examinadora tem ampla discricionariedade para eleger os critérios de correção que julgar mais adequados. Mas causa surpresa que todos os critérios estejam voltados ao direito material e não especificamente aos argumentos apresentados pelas partes. Sendo assim, a prova de sentença funcionaria quase como uma prova dissertativa.

Qual a habilidade principal que seria de se exigir do advogado, do defensor, do promotor e do juiz? Identificar as questões jurídicas controvertidas e os argumentos utilizados pelas partes. Para os profissionais do Direito, essa habilidade precede o próprio conhecimento do direito invocado. Antes de saber qual o prazo decadencial a aplicar, é preciso saber se a decadência está ou não em questão, se foi alegada ou se pode ser conhecida de ofício. Antes de saber o que é lesão, é preciso saber quais os argumentos utilizados pelo autor podem configurá-la e quais os argumentos usados pelo réu podem afastá-la.

O juiz, ao proferir a sentença, deve acolher ou rebater esses argumentos livrando-se da carga de argumentação. Uma vez que faça isso, e só então, a banca deve analisar também os próprios argumentos utilizados pelo julgador, se estão de acordo com a melhor doutrina e jurisprudência.

Fundamentalmente, os estudantes e candidatos a concursos devem ser preparados para identificar pontos controvertidos relevantes (questões), aqueles que podem influir no julgamento da causa. Assim como devem ser capazes de identificar os argumentos relevantes, aqueles que, em tese, podem infirmar as conclusões adotadas pela parte contrária ou pelo julgador.

Muitas vezes em uma prova, isso é mais importante que julgar procedente ou improcedente a demanda. O raciocínio jurídico coerente deveria ser mais valorizado que a adoção de uma ou outra tese; a menos, por óbvio, que referida tese já tenha sido decidida pela cortes superiores (artigo 927, do CPC).

Como se sabe, para acolher o pedido do autor, o juiz deve rebater todos os argumentos do réu que, em tese, sejam capazes de infirmar a conclusão adotada (artigo 489, § 1.º, inciso IV, CPC). Esse, portanto, seria sempre um bom critério a nortear a banca examinadora. Assim como, em sendo o caso, saber se o candidato rebateu os precedentes invocados, saber se saturou suficientemente os conceitos jurídicos indeterminados etc. É verdade que precisamos aprender qual a melhor forma de cobrar isso nos concursos e nem sempre é fácil.

Talvez tenha chegado a hora de, junto com o novo Código de Processo Civil, atualizarmos o modo como ensinamos o Direito, como ensinamos a argumentação e como cobramos o conhecimento dos candidatos a concurso público. Questões que peçam ao candidato para identificar que argumento ou quais argumentos melhor se contrapõem a uma afirmativa, por exemplo, são capazes de testar essa capacidade. Questões que peçam para o candidato identificar e enfrentar o argumento não enfrentado em uma determinada sentença poderiam substituir as questões meramente dissertativas com grande vantagem.

O novo CPC exige que se aperfeiçoem e que se explorem novas competências. O estudo da argumentação jurídica e da lógica informal sempre foi importante e sempre foi negligenciado pelas faculdades de Direito. Agora, não podemos mais deixá-lo de mão, por força de lei.

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