Opinião

A reforma política e o recall através da Constituição de 1988

Autor

  • Maria Garcia

    é coordenadora do Programa de Direito Constitucional da Pós-Graduação da PUC-SP; professora; procuradora do estado de São Paulo; diretora-geral do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional IBDC; membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas; e vice-presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo Triênio 2016 – 2018.

8 de julho de 2016, 6h40

*Artigo publicado na Revista dos Tribunais, vol. 967/2016 (Caderno Especial Corrupção), e disponível na Revista dos Tribunais Online Essencial.


A Constituição de 1988 e o princípio da moralidade
Constata-se que, após sucessivas constituições, a Constituição Federal de 1988 (LGL19883), no artigo 37, inaugurando a ordenação da Administração Pública, determina:

"A administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (…)" (grifamos).

E no artigo 5º, inciso LXXIII, nova referência, no caso relativamente à ação popular:

"Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência" (grifamos).

O que não significa, evidentemente, que o principio da moralidade pública não se contivesse, implicitamente, no sistema de normas constitucionais do país, desde a primeira Constituição Brasileira, de 25 de março de 1824.

Porquanto Heráclito registrou, há muitos séculos:

"Ethos anthropos: daímon" ("o ethos do homem: o daímon").1

É dizer: "O destino do homem: a ética". Ou, nas palavras de Goffredo Telles Junior:2

"A ordem ética é a disciplina da convivência humana."

O que significa, também, "do grego ethos, caráter, a ação correta, retidão, portanto".3 Lembre-se:

"Reta. 1. Linha, traço ou risco que segue sempre a mesma direção. 2. Conceito fundamental da geometria cuja posição se define univocamente por dois pontos" (Dicionário Aurélio).

"Como e por que um Estado se corrompe" (Dobel)
Em Desobediência Civil, direito fundamental,4 comentamos a "Teoria da Corrupção":5

"Como e por que um Estado se corrompe?"

Esta é a indagação que inicia um ensaio sobre a Teoria da Corrupção, formulada por John Patrick Dobel, "como uma explicação alternativa da decadência da confiança, da lealdade e do interesse entre os cidadãos de um Estado":

"A teoria da corrupção compreende as seguintes proposições:

  • 1. Certos padrões de lealdade moral e virtude cívica são necessários para manter uma ordem política justa, equitativa e estável. A privatização das preocupações morais e a decorrente ruptura da lealdade e da virtude cívicas são os atributos cardeais de um Estado corrupto.
  • 2. A grande desigualdade de riqueza, poder e status, criada pela capacidade humana de egoísmo e orgulho, gera a corrupção sistemática do Estado. Os membros das classes mais altas sacrificam sua lealdade civil básica para ganhar posições ou mantê-las, e a desigualdade estabelecida solapa a lealdade e o bem-estar substantivo dos cidadãos em geral.
  • 3. Essa mudança da qualidade moral da vida do cidadão, combinada com a desigualdade, gera facções. As facções são centros objetivos de riqueza, poder, polícia e política que, por sua própria dinâmica, usurpam funções políticas e governamentais de importância vital. A política facciosa acarreta a tentativa sistemática de corromper as agências públicas e a lei. Ser membro de uma facção e praticar o faccionismo muda o caráter moral das pessoas, solapa sua lealdade à comunidade e estimula o egoísmo radical ou lealdade limitada às próprias facções.
  • 4. O conflito de facção e a contínua desigualdade estendem a corrupção a toda a cidadania. A violência torna-se cada vez mais o substrato dominante de todas as relações e o discurso político fica reduzido a uma racionalização transparente. A função pública, a lei e a justiça transformam-se em instrumentos das facções e das classes. A população destituída e as classes altas tornam-se cada vez mais polarizadas. A política facciosa e demagógica, os levantes esporádicos e a cooptação passam a marcar as relações políticas, à medida que a sociedade gira num ciclo irrequieto de tentativas abortadas de 'restauração' e 'reforma', rumo à alienação, à violência e à anarquia institucional cada vez maiores.
  • 5. A socialização da educação, da vida familiar, da religião e dos militares também sustenta os valores comunais e a lealdade, por vezes até mesmo depois da corrupção do processo político. A corrupção final do Estado envolve o fracasso dos cidadãos em apoiar voluntariamente essas estruturas primárias".6

Verifica-se, portanto, que Dobel prestigia o que denomina "estruturas primárias" da sociedade que, efetivamente, existem desde sempre, em especial a família e a educação, bens que, estendidos a todos, se constituem nos pilares sociais, conforme faz considerar o artigo 205 da Constituição.

O mandato político e o recall
Dispõe o parágrafo único, artigo 1º da Constituição:

"Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição".

E, em sequência, o artigo 14 estabelece:

"A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

I – plebiscito;

II – referendo;

III – iniciativa popular".

Tratando das formas semidiretas de democracia, Meirelles Teixeira7 explicita:

"Vimos, ao tratar da democracia representativa, isto é, da Teoria da Representação Política que muitos autores, impressionados com certas ficções em que a representação repousa, e ainda mais, pelas falhas, abusos e erros de que se reveste na prática de quase todos, se não de todos os países, acabam por atacá-la rudemente, negando mesmo sua própria existência".

Daí, prossegue: "Que se houvesse buscado ou mudar totalmente a própria essência da representação (…) encontrar expedientes destinados a controlar, pela ação direta do povo, isto é, do corpo eleitoral, o exercício do poder legislativo pelas assembleias representativas".

Assim, chega-se às práticas da democracia semidireta, adotadas junto ao regime representativo: o plebiscito, o referendum, a iniciativa popular da lei e o recall.

"O recall, ou revogação apresenta-se como um direito, atribuído ao povo, de suprimir os efeitos (revogar) dos mandatos de seus representantes, isto é, de 'certos atos legislativos' julgados inconvenientes para o interesse coletivo, ou mesmo de revogar o próprio mandato".8

Em Os poderes do mandato e o recall,9 sublinhamos precisamente essa questão de "revogação do próprio mandato", conforme coloca Meirelles Teixeira, lembrando a origem do termo, derivado do latim mandatum, mandare, "composto de manus dare (dar a mão) que tecnicamente significa dar poder, ou autorizar. Mandato é formado, assim, de manus data (mão dada) (que) bem exprime o contrato que designa duas vontades, uma dando à outra uma incumbência. Outra, recebendo-a e aceitando-a, para que se realize ou execute o desejo do mandante".10

Por sua vez, o mandato político, adverte De Plácido e Silva:11

"Não é instituído com uma soma de poderes determinados, cabendo ao mandatário, no desempenho de sua missão, praticar todos os atos que se enquadrem dentro das atribuições conferidas ou assinadas nas leis, sem outra limitação que a decorrente da licitude de ação do mandatário”.

Portanto, conforme afirmamos, "não se poderá abstrair do mandato popular aquilo que significa a essência do vocábulo mandato, a sua razão de ser: manus dare, pelo que o mandato popular requer os elementos lealdade e fidelidade".

É, assim, "o cumprimento de todos os deveres atribuídos em virtude de encargo, contrato ou de qualquer outra obrigação", completa o citado autor.

Temos, portanto, um mandato vinculado ao seu sentido original, envolvendo seu caráter político e se assim se estabelece, a conclusão é de que não há mandato sem possibilidade de sua revogação, mediante iniciativa do cidadão.

Conforme expusemos, "se qualquer pessoa pode promover a cassação do mandato eletivo com provas de abuso de poder econômico, corrupção ou fraude" (parágrafos 10 e 11 do artigo 14 da CF/1988 (LGL19883)) poderá o cidadão intentar, pelos mesmos motivos, a revogação do mandato político.

Considere-se que a cidadania é um dos fundamentos do Estado, nos termos do artigo 1º, II e dela decorrem todos os direitos previstos na Constituição, os poderes expressos e implícitos das prerrogativas inerentes da qualidade de cidadão e do compromisso firmado pelo mandato político.


1 Heráclito. Fragmentos contextualizados. Tradutor: Alexandre Costa. Rio de Janeiro: Difel, 2002, p. 181, 199. "O daímon poderá ser pensado como a própria divindade, o destino, o nome dos anjos, a voz interior, o espírito, o demônio, o que fosse". (p. 230).

2 A criação do Direito. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 476.

3 Simon Blackburn. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

4 Maria Garcia. Revista dos Tribunais. 2004, p. 174 – 176.

5 Como e por que um Estado se Corrompe. InO Estado de S. Paulo, 24-2-1980, p. 117 a 119 e p. 141. Vide também: Constituição e Estado de Direito: refletindo sobre a Teoria da Corrupção de J. P. Dobel. In Revista de Direito Constitucional e Internacional, n. 70/210.

6 O autor explica: "Focalizamos a igualdade por causa de sua relação com o bem comum. Conforme está implícito nas palavras, o bem comum traz consigo, ao menos parcialmente, a ideia de bens que são igualmente comuns a todos os cidadãos. Dado o egoísmo humano e os conflitos normais de um Estado, manter o bem comum exige certa lealdade aos outros homens e às políticas e instituições que garantem aquele bem. A lealdade declina sob a pressão da desigualdade quando os indivíduos buscam objetivos puramente egoístas ou agem segundo o interesse limitado de uma facção. Ambas as atividades visam beneficiar desigualmente indivíduos ou grupos, sem levar em consideração as consequências para a distribuição equitativa dos bens comuns. Os métodos de procura desses benefícios aumentam a corrupção do povo e minam as estruturas destinadas a cuidar do bem comum". (p. 176, nota 36).

7 J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Conceito, 2011, p. 435 e ss.

8 "A ideia de revogação de mandatos ou de atos dos representantes do povo não é absolutamente nova, pois já Robespierre, na Revolução Francesa, afirmava que 'todos os funcionários públicos nomeados pelo povo podem ser removidos por este'. Mas foi nos Estados Unidos que essa ideia encontrou, modernamente, maior aceitação, ao admitir-se ali, em certos casos, a revogação popular do mandato de representantes do povo, nas legislaturas modernas, bem como de funcionários eletivos". (p. 440-441).E embora refira que ocorram opiniões "apontando as desvantagens dos controles democráticos diretos", conclui: "De um modo geral, pode-se afirmar que os controles democráticos diretos correspondem plenamente às ideias e princípios democráticos, constituindo desenvolvimento e aplicação lógica dos mesmos; que utilizados com certa cautela, para as grandes questões do governo, poderão prestar excelentes serviços em qualquer país; pequenas comunidades políticas, como por exemplo na esfera municipal, podem constituir excelentes processos de educação política e de governo eficiente, de acordo com o interesse público". (p. 444).

9 Maria Garcia. Revista de Direito Constitucional e Internacional, n. 50/2005, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo.

10 De Plácido e Silva. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1991.

11 Idem, ibidem.


*Artigo publicado na Revista dos Tribunais, vol. 967/2016 (Caderno Especial Corrupção), e disponível na Revista dos Tribunais Online Essencial.

*Texto alterado às 16h04 desta terça-feira (18/10/2016) para correção.

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    é coordenadora do Programa de Direito Constitucional da Pós-Graduação da PUC-SP; professora; procuradora do estado de São Paulo; diretora-geral do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional IBDC; membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas; e vice-presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo Triênio 2016 – 2018.

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