Interesse Público

Entre os conceitos de ilegalidade e improbidade administrativa

Autor

7 de julho de 2016, 8h05

Spacca
Em um dos últimos artigos desta coluna, o professor Fabrício Motta — procurador-geral do TCM-GO e professor adjunto, 20 horas, da UFG, em regime lícito de cumulação de cargos — versou o tema da contratação direita de advogados notórios especializados pelo poder público. Sua contribuição, sobretudo no que toca à caracterização da singularidade dos serviços contratáveis, certamente servirá ao objetivo de auxiliar importantes julgamentos administrativos e judiciais em curso no país, com destaque para a repercussão geral no RE 656.558, relator ministro Dias Toffoli em trâmite no STF[1].

Esse processo é resultado do provimento ao AI 7981.811/SP, interposto contra a inadmissão de recurso extraordinário no STJ — e de admissão de recurso extraordinário do Ministério Público de São Paulo no TJ-SP —, convertido em recurso extraordinário com repercussão geral, versando justamente o tema da contratação direta de advogados e da possível caracterização do ato de improbidade administrativa em caso de irregularidade da contratação.

O acórdão recorrido do STJ é muitas vezes — e sem maiores preocupações — citado como paradigma em ações de improbidade movidas país afora, apresentando a seguinte ementa:

ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. SERVIÇO DE ADVOCACIA. CONTRATAÇÃO COM DISPENSA DE LICITAÇÃO. VIOLAÇÃO À LEI DE LICITAÇÕES (LEI 8.666/93, ARTS. 3º, 13 E 25) E À LEI DE IMPROBIDADE (LEI 8.429/92, ART. 11). EXECUÇÃO DOS SERVIÇOS CONTRATADOS. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO AO ERÁRIO. APLICAÇÃO DE MULTA CIVIL EM PATAMAR MÍNIMO.

1. A contratação dos serviços descritos no art. 13 da Lei 8.666/93 sem licitação pressupõe que sejam de natureza singular, com profissionais de notória especialização.

2. A contratação de escritório de advocacia quando ausente a singularidade do objeto contratado e a notória especialização do prestador configura patente ilegalidade, enquadrando-se no conceito de improbidade administrativa, nos termos do art. 11 caput e inciso I, que independe de dano ao erário ou de dolo ou culpa do agente.

3. A multa civil, que não ostenta feição indenizatória é perfeitamente compatível com os atos de improbidade tipificados no art. 11 da Lei 8.429/92 (lesão aos princípios administrativos), independentemente de dano ao erário, dolo ou culpa do agente.

4. Patente a ilegalidade da contratação, impõe-se a nulidade do contrato celebrado, e, em razão da ausência de dano ao erário com a efetiva prestação dos serviços de advocacia contratados, deve ser aplicada apenas a multa civil, reduzida a patamar mínimo (10% do valor do contrato, atualizado desde a assinatura).

5. Recurso especial provido em parte. (STJ – REsp 488842/SP, rel. Ministro João Otávio Noronha, j. 17/04/2008, DJ. 05/12/2008)

Depreende-se da ementa do julgado do STJ (que poucos estudiosos notam tratar-se precisamente daquele que se encontra impugnado na repercussão geral anteriormente mencionada), a despeito da restrição da penalidade à multa de 10% do valore do contrato, que a configuração do ato de improbidade administrativa se apresentaria como reflexo automático da patente ilegalidade na contratação do advogado, uma vez ausente a singularidade do objeto exigida pelo artigo 25, II da Lei 8.666/93.

A conclusão desse acórdão é, com a devida vênia, contrária à própria jurisprudência do STJ sobre a caracterização do ato de improbidade administrativa. A esmagadora maioria das decisões do STJ faz a distinção entre ilegalidade e improbidade, consignando que a “a má-fé é premissa do ato ilegal e ímprobo e a ilegalidade só adquire o status de improbidade quando a conduta antijurídica fere os princípios constitucionais da administração pública coadjuvado pela má intenção do administrador" (STJ – REsp 807.551/MG. relator ministro Luiz Fux. DJ 5/11/2007). No mesmo sentido, cf. REsp 1.149.427/SC, relator ministro Luiz Fux, 1ª Turma, julgado em 17.8.2010, DJe 9.9.2010; AgRg no AREsp 81.766/MG, relator ministro Humberto Martins, 2ª Turma, julgado em 7/8/2012, DJe 14/8/2012).

Também a doutrina registra orientações nesse sentido, ao sustentar que o conceito de improbidade administrativa está delimitado na Constituição apenas de maneira implícita. A Carta do país relaciona o conceito de ato de improbidade com a atuação administrativa contra o princípio da moralidade. As severas penas previstas na Constituição para aqueles que praticam ato de improbidade (artigo 37, parágrafo 4º) já conduzem à conclusão de que ato de improbidade não é uma simples violação da ordem jurídica. A moralidade administrativa, para fins de probidade, não pode ser considerada como sinônimo de legalidade[2].

Parece indisputável, portanto, a distinção entre os conceitos de ilegalidade e improbidade, exigindo-se que a configuração desta última se dê a partir de uma ilegalidade (pressupondo desrespeito à lei) coadjuvada pela lesão aos princípios da moralidade da boa fé (pressupondo violação a tais princípios).

Nesse sentido, Fábio Medina Osório descreve que, em matéria de improbidade (que exige observância dos princípios da legalidade e tipicidade proibitiva), a propugnada superioridade axiológica dos princípios sobre as regras (violar um princípio é mais grave que violar uma regra) “há que ser vista com reservas e cautelas, visto como princípios constitucionais que presidem o direito punitivo recomendam a incidência de normas com maior densidade e segurança na formação dos tipos. A exigência de lesão grave aos princípios não exclui a lesão às regras que lhe são subjacentes. A lesão há de ser dúplice: aos princípios e às regras, inclusive aí reside parte da gravidade exigível [para a configuração do ato de improbidade]. Simultaneamente, a ação ímproba vulnera regras e princípios. Não existe ação que venha a vulnerar tão-somente princípios, ou apenas as regras. A incidência há de ser simultânea e obrigatoriamente conjunta”[3].

Sobre ser necessário o caráter simultâneo da lesão a regras e princípios, apresentam-se, do ponto de vista fático, algumas possíveis situações que não raro impediriam desnecessárias discussões sobre o cometimento dos atos de improbidade administrativa:

(a) se o agente administrativo segue uma lei, que goza de presunção de constitucionalidade (e não foi declarada inconstitucional), não comete ato de improbidade administrativa, pois que seu ato não viola regra e princípio simultaneamente. E isso se passa independente de o autor da ação considerar que a lei não é boa ou é inconstitucional. A ação é de improbidade administrativa e não de improbidade legislativa.

(b) se o agente administrativo aplicou a lei, com base em doutrina e jurisprudência, as quais suportam a interpretação dada para o caso, não comete ato de improbidade administrativa. É que o direito, naturalmente polissêmico e dinâmico, com conexão inarredável com os fatos sociais, não comporta uma única interpretação. Ação de improbidade administrativa (que é ação de caráter punitivo) não é lugar para discutir perspectivas sobre a melhor interpretação do direito;

(c) se a matéria envolvida na decisão for naturalmente controvertida, comportando variadas interpretações, com jurisprudência vacilante num ou noutro sentido, sem que haja posição definitiva em ADI, ADC, ADPF, repercussão geral, súmula vinculante (STF), descabe a ação de improbidade administrativa, a não ser que os órgãos prolatores das decisões judiciais utilizadas passem a ser litisconsortes do agente processado.

d) se o agente administrativo estiver diante de hipóteses excepcionais em que os princípios jurídicos devam prevalecer sobre as regras, para o cumprimento das finalidades da Administração Pública (= derrotabilidade da regra pelos princípios)[4] também aí o agente público não cometerá ato de improbidade administrativa[5]. Nesse caso, a violação da regra não é simultaneamente violação do princípio, de modo que não se configura o ato de improbidade administrativa.

Portanto, não basta invocar o artigo 11, I da Lei 8.429/92, como fez o acórdão acima transcrito do STJ, para dizer que o agente público cometeu ato de improbidade administrativa. A densidade punitiva implícita ao ato de improbidade administrativa e as pesadas sanções previstas no artigo 12 da Lei 8.429/92 demandam, mercê do princípio constitucional da proporcionalidade, que as condutas impugnadas tenham suficiência para o enquadramento respectivo, sob pena de falta de justa causa.

Nesse sentido, é que o Poder Judiciário brasileiro, ao fazer o juízo de delibação preliminar para o recebimento da ação de improbidade administrativa (artigo 17, parágrafo 8º da Lei 8.429/92) — e independente da aplicação do princípio in dubio pro societatis — tem o dever de circunscrever o objeto da lide à discussão exclusiva da ilegalidade do ato (se é que o ato é ilegal, conforme a jurisprudência do STF sobre a contratação de advogados notórios especializados), quando ausente a perspectiva de violação dúplice de regras e princípios. Essa possibilidade dimana da própria redação do artigo 17, parágrafo 8º da LIA, quando autoriza a rejeição ab ovo da ação de improbidade quando o julgador estiver “convencido da inexistência do ato de improbidade, da improcedência da ação ou da inadequação da via eleita”.

Significa dizer que em casos dessa natureza (lesão isolada de regra ou princípio) é dado ao juiz ou ao tribunal, por ocasião do recebimento da ação de improbidade administrativa ou da apreciação do respectivo recurso, separar o joio do trigo, admitindo a sequência da ação civil pública unicamente para discutir a validade ou a invalidade do ato administrativo impugnado, nos termos da Lei 7.437/85, e não da Lei 8.429/92.

Em suma, não se pode confundir, sob pena de banalização dos conceitos, a ilegalidade (mesmo que patente) com a improbidade administrativa, que pressupõe lesão dúplice e simultânea a regras e princípios (moralidade, boa fé), existindo ações civis públicas adequadas para ambos os casos no nosso ordenamento jurídico.


[1] A contratação direta de advogados notórios especializados tem sido sucessivamente admitida pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a ver: RHC 72.830, ministro Carlos Velloso, 2ª Turma, DJ 16/2/1996; HC 86.198/PR, ministro Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, DJ 29/6/2007, AP 348/SC, ministro Eros Grau, Tribunal Pleno, DJ 3/8/2007, INQ 3.077, ministro Dias Toffoli, DJe 188, publicado em 25/9/2012 e, finalmente, o INQ 3.074/SC, ministro Roberto Barroso, DJe 193, publicado em 3/10/2014.
[2] PORTO NETO, Benedicto Pereira. PORTO FILHO. Pedro Paulo de Rezende. Violação ao dever de licitar e a improbidade administrativa. In. BUENO, Cássio Scarpinella. PORTO FILHO, Pedro Paulo de Rezende. Improbidade Administrativa: questões polêmicas e atuais. 2. ed., São Paulo: Malheiros, 2003. p. 114-116.
[3] OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 331.
[4] Na doutrina, sobre o tema é imprescindível a leitura de BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Argumentação Contra Legem: a teoria do discurso e a justificação jurídica nos casos mais difíceis, Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
[5] No STJ, sobre a preponderância dos princípios jurídicos sobre as regras em casos difíceis, confira-se: REsp 950.489/DF, relator ministro Luiz Fux, 1ª Turma, julgado em 3/2/2011, DJe 23/2/2011.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!