Opinião

Novo CPC não esgota debate sobre incidente de desconsideração

Autor

  • Silvano José Gomes Flumignan

    é doutor mestre e bacharel em Direito pela USP professor adjunto da UPE e da Asces/Unita professor permanente do mestrado profissional do Cers ex-pesquisador visitante na Universidade de Ottawa ex-assessor de ministro do STJ procurador do estado de Pernambuco coordenador do Centro de Estudos Jurídicos da PGE-PE e advogado.

5 de julho de 2016, 7h44

A desconsideração da personalidade jurídica é um dos temas de maior relevância prática nos tribunais brasileiros. Os milhares de processos que versam sobre a matéria indicam uma aparente incoerência já que a superação da distinção entre os patrimônios do sócio e da pessoa jurídica deveria ocorrer excepcionalmente[1].

Ao se focar na constatação acima, é surpreendente que a legislação processual codificada tenha disciplinado o procedimento da desconsideração apenas em 2015. O tratamento específico abarcou diversos pontos cruciais, como cabimento, requerimento incidente, citação, tramitação, decisão, recursos e legitimidade. Especificamente ao último tópico, o texto pode levar a equívocos interpretativos. O artigo 133 do novo Código de Processo Civil atribui legitimidade ativa ao Ministério Público e à parte:

Art. 133.  O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.

O Ministério Público pode atuar como parte ou fiscal da lei ou da ordem pública. Quando atua como parte, já poderia fazer o requerimento. A ampliação da legitimidade ocorre em relação à segunda forma de intervenção. Não se pode afirmar que tal previsão chegue a ser uma novidade no direito brasileiro. O artigo 50 do Código Civil tratava o tema de maneira bastante similar:

Art. 50 do CC/02. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. (grifo nosso)

A previsão genérica, no entanto, teve a vantagem de despertar o debate sobre o requerimento pelo Ministério Público. O tratamento dado pelo novo CPC asseverou o caráter excepcional da medida, o que apenas autoriza o requerimento pelo Ministério Público quando não atua como parte em situações excepcionais.

O tema foi, inclusive, objeto de debate no Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC). Todavia, a redação do enunciado 123 não foi a mais feliz. Tratou o tema como uma faculdade do Ministério Público: “desnecessária a intervenção do Ministério Público, como fiscal da ordem jurídica, no incidente de desconsideração da personalidade jurídica, salvo nos casos em que deva intervir obrigatoriamente”. É evidente que não existe faculdade quando o Ministério Público não é parte e não atua como fiscal da lei e da ordem pública.

O tema da legitimidade ainda remete à noção de quem é parte[2]. Ela pode ser entendida como a protagonista da relação jurídica processual, ainda que não integre a relação material controvertida[3]. Sobre esse ponto, a doutrina se bipartiu em torno da opinião de G. Chiovenda e E. T. Liebman. O primeiro defende que parte é aquele que demanda e em face de quem se demanda[4].  O segundo associa ao conceito de parte a noção de contraditório, ou seja, quem está sujeito ao contraditório é parte e quem não participa é terceiro[5].

A estrita relação do direito material com o incidente de desconsideração faz com que até mesmo a pessoa jurídica possa ser legitimada ativa para requerer a desconsideração. O tema já foi objeto de análise na IV Jornada de Direito Civil:

Enunciado 285 da IV Jornada de Direito Civil – Art. 50: A teoria da desconsideração, prevista no art. 50 do Código Civil, pode ser invocada pela pessoa jurídica, em seu favor.

O novo CPC deixa a entender que a pessoa jurídica seria apenas legitimada passiva. A redação poderia dar a falsa impressão de que não teria legitimidade para pleitear sua própria desconsideração. Dessa forma, poderia haver previsão expressa nesse sentido.

A redação do novo CPC deixa a entender que não seria possível o reconhecimento de ofício pelo magistrado. Acontece que a legislação material permite o reconhecimento de ofício em algumas situações. É o que ocorre, por exemplo, com o Código de Defesa do Consumidor:

Art. 28 do CDC. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

O novo CPC não aborda o assunto, mas a legislação extravagante trata do tema. Nestes casos, seria razoável autorizar o magistrado a dar início ao incidente de ofício quando a legislação material assim fizer previsão. A legitimação passiva também apresenta alguns problemas. O novo CPC menciona como legitimado passivo o sócio ou a pessoa jurídica:

Art. 135. Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de quinze dias.

Ao utilizar apenas a expressão “sócio”, o legislador desprezou a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (Eireli).            Tal modalidade de organização empresarial não é composta por “sócio” e, mesmo assim, é possível a desconsideração. Esse é o teor da dos enunciados 470 e 472 da V Jornada de Direito Civil:

Enunciado 470 da V Jornada – Art. 980-A: O patrimônio da empresa individual de responsabilidade limitada responderá pelas dívidas da pessoa jurídica, não se confundindo com o patrimônio da pessoa natural que a constitui, sem prejuízo da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica.

Enunciado 472 da V Jornada – Art. 980-A: É inadequada a utilização da expressão “social” para as empresas individuais de responsabilidade limitada.

Outra incongruência é a ausência de previsão de intimação da pessoa jurídica a ser desconsiderada. A pessoa jurídica tem autonomia de personalidade mesmo com a desconsideração. Com a efetivação da desconsideração, não será extinta. Assim, poderá ter interesse em integrar o polo ativo ou passivo do incidente.

O incidente de desconsideração é uma importante inovação do novo CPC. O texto codificado tem várias virtudes, mas não esgota o debate. A análise da legitimidade ativa e passiva demonstra que a observância da legislação material é imprescindível para a compreensão do tema. A possibilidade de legitimidade ativa da própria pessoa jurídica, as limitações à atuação do Ministério Público, a possibilidade de instauração do incidente de ofício e a aplicação para a Eireli exigem uma resposta mais aprofundada que não foi dada pelo Código.


[1] Sobre o tema, publicamos o trabalho FLUMIGNAN, Silvano José Gomes. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica no Novo Código de Processo Civil. In: Revista Jurídica da Seção Judiciária de Pernambuco, v. 8, 2015.
[2] SICA, Heitor Vitor Mendonça. Notas críticas ao sistema de pluralidade de partes no processo civil brasileiro. In Revista de processo. v.36. nº 200. São Paulo: RT, Outubro de 2011, pp.13-70. “A evolução da ciência processual foi responsável pelo descarte de concepções que se assentavam sobre a análise da relação jurídica material, tendo-se por claro, hoje, que os conceitos de “parte” e de “terceiro” devem ser analisados em seu contexto processual.”
[3] CARNEIRO, Athos Gusmão. Intervenção de terceiros. 18ª ed.. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 3-5. Vide também: SICA, Heitor Vitor Mendonça. Ob. cit., pp.13-70. “Nesse passo, serão partes aqueles que se apresentam como protagonistas da relação jurídica processual, mesmo que não figurem como sujeitos da relação jurídica material controvertida. Se o sujeito do processo não integra a relação de direito material controvertida, reconhece-se sua ilegitimidade ad causam; entretanto, a parte ilegítima ainda assim é parte”.
[4] CHIOVENDA, Giuseppe. Istituzioni di diritto processuale civile. Trad. port. de J. Guimarães Menegale e notas de Enrico Tullio Liebman. Instituições de direito processual civil. v. 2. São Paulo: Saraiva, 1945, p. 234. Cassio Scarpinella Bueno também adota o posicionamento no direito brasileiro (Ob. cit., p. 123).
[5] LIEBMAN, Enrico Tulio. Manuale di diritto processuale civile. Trad. port. de Cândido Rangel Dinamarco. Manual de direito processual civil. v. 1. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 123. Cândido Rangel Dinamarco também é adepto do posicionamento no direito brasileiro (Instituições de Direito Processual Civil. v. 2. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 246).

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!